O senhor Carlos e a D. Leonor moram numa torre na Praceta contígua à minha.
A D. Leonor foi-me apresentada por uma grande amiga, sua vizinha, de quem era
também muito amiga e que, infelizmente, já não está entre nós. Sempre os conheci
já com bastante idade, mas agora estão mesmo velhotes. Têm uma loja de roupas
de homem e senhora muito próxima de casa e a vida deles é da loja para a casa e
da casa para a loja. Às vezes, ao domingo, ele pegava no carro e lá iam dar
uma voltinha e era tudo.
Nunca tive contacto com ele mas com ela sim. De vez em
quando cruzávamo-nos na rua e cumprimentávamo-nos, sendo que me
falava com muito agrado, muita simpatia, muita educação, mas sobretudo com
muito carinho. E algumas vezes desabafava comigo situações da sua vida
familiar. Foi ela que cuidou dos pais e dos sogros até ao fim das suas vidas e
falava-me disso com algum sofrimento, mas sempre com um imenso respeito por
todos eles, nunca demonstrando aborrecimento pelo cansaço ou sobrecarga que isso
lhe tenha causado, o que seria normal. Era uma senhora impecável, sem nada a
apontar. E comigo, era de um carinho tão grande, que dava
gosto cumprimentá-la. Sempre tinha um sorriso bonito - porque ela era
bonita -, nada forçado, com que terminava a conversa e falava-me mesmo com
muita meiguice. Falava do marido com uma imensa ternura e dos vizinhos com toda
a amabilidade. Era uma pessoa que demonstrava um grande equilíbrio emocional e
sempre me pareceu bem adaptada à vida com uma resistência incrível. O marido
muito cedo montou o negócio da loja, que por sinal até tem o nome dela e disso
viveram sempre.
Nunca tiveram filhos. Viviam um para o outro. Como já disse, ela cuidou dos
pais e dos sogros até ao fim, até que ficaram sozinhos, agora mais tranquilos,
mais sossegados e a vida deles era muito pacata, muito tranquila. Muitas vezes,
da minha varanda eu a via à janela, espreitando. Acenava-lhe e ela fazia-me
adeus, muito contente. Era uma senhora muito agradável e até doce.
Mas tudo isto parece que faz parte de outra vida. É que as coisas mudaram.
E mudaram drasticamente. O senhor Carlos continua a ser o mesmo. Alto,
magro, velhote como sempre, mas direito que nem um fuso, sempre com seu charuto
na mão e a fumaça no ar, nele nada mudou. Pelo menos aparentemente. Já ela… não
é mais a mesma, com grande pena minha.
De longe em longe ainda a vejo à janela, por entre os vidros e as cortinas
corridas de lado a lado para que ninguém possa ver o que está para lá. Mas há
pessoas que são assim. As janelas não se podem abrir para os outros não
“espreitarem”(!). Quanto à D. Leonor, a questão é que comecei a perceber que já
não me falava como dantes. Ela até ficava contente quando me via e a partir de
certa altura começou a ignorar-me, a esconder-se ainda mais. Lá teria os seus
motivos, mas não dei especial importância. Talvez problemas de visão, talvez.
Entretanto, precisei de um tecido fino para acrescentar um forro de um
vestido e para não ter que ir mais longe, fui até à loja do senhor Carlos.
Normalmente era ela que estava ao balcão e ele ficava cá fora a apanhar ar e a
dar as suas fumaças de cachimbo, com ar de patrão. Mas como já disse, tudo
mudou. E como!
Entrei e ao balcão estava agora ele, o “patrão”. Estranhei, mas ainda
assim, não dei especial importância. Mas, de repente, vejo a D. Leonor sentada
num banco, num canto da loja junto à parede, olhando através da grande montra
cheia de roupas completamente ultrapassadas. A posição dela e o ar distante e
frio foram iguais desde que entrei até que saí. Cheguei, cumprimentei-os, disse
o que queria, que por acaso não consegui e tive que ir a outro lado, mas o que
importa é que foi ele que me atendeu, sempre senhor do seu nariz, com a sua
postura de costume, como se nada estivesse a acontecer. A D. Leonor nada disse,
não se moveu, não saiu da apatia em em que estava, não se desligou da ausência
completa que a absorvia e na qual estava mergulhada, sem a menor vontade de
regressar à realidade, ao aqui e agora. Estava longe, longe, completamente
perdida no infinito. E foi assim que os deixei.
Esta cena incomodou-me demais. Saí de lá arrasada com o que tinha acabado
de testemunhar. A D. Leonor estava numa completa solidão, ignorada por si
mesma, mas também pelo marido que não foi capaz de pronunciar uma só palavra
sobre o estado da mulher, sabendo que nós nos falávamos tão bem. O que se
passaria com a senhora? Aquilo não era uma briga de casal. Fui-me embora a
pensar naquilo e a ficha caiu. Aquilo tinha um nome: Alzheimer! Só podia.
Passaram-se uns dias e novamente precisei de linha preta que tinha acabado.
Como não me apetecia ir mais longe, decidi uma vez mais ir à loja do senhor
Carlos. E assim também podia ser que conseguisse saber mais alguma coisa da
coitada da D. Leonor, que me estava a incomodar muito.
Aproximei-me da loja e desta vez ela estava à porta. E uma vez mais ele ao
balcão. A situação costumava ser inversa. Não que eu fosse lá muitas vezes, mas
quando passava ali via sempre ela lá dentro e ele à porta a fumar. Para eu
poder entrar ela teve que se desviar um pouco, o que o fez sem nada pronunciar.
Todavia, o olhar que me lançou foi um olhar feroz, como se a culpa de ela estar
assim fosse minha. Claro que percebi que o problema não era esse. O problema
era exclusivamente dela. Entrei e ela foi direita para o seu lugar, o canto da
sala, e mais uma vez ficou a olhar para o exterior, aparentemente indiferente a
tudo e todos.
O senhor Carlos atendeu-me e eu queria ter a coragem ou o atrevimento de
perguntar por ela, mas foi como se ele me tivesse lido o pensamento e sem mais
nem menos começou a falar. E dizia que a mulher não estava bem. Que toda a vida
tinha sido uma companheira dedicada. Tratava da casa, cozinhava, tratava da
roupa, enfim, fazia tudo em casa e ainda estava o dia todo na loja e agora não
fazia nada, o que muito atrapalhava a vida dele. Já tinha pensado em ir para um
lar com ela, mas achava que isso era “morrer”. Gostava de estar cá fora e fazer
o que queria e a ideia de um lar não lhe agradava em nada. E continuava a
queixar-se de ela agora não querer fazer nada. Estava a ser medicada para a
“doença” que ele recusava admitir, mas a medicação não adiantava muito. Claro
que a doença era Alzheimer e não era preciso dizer nada. Mas o facto
de ele não o admitir era bastante sintomático e relevante.
E enquanto ele falava eu olhava discretamente para ela, lendo-lhe os
pensamentos. O problema da D. Leonor era apenas o problema de um casamento
“perfeito” de toda uma vida. Tinha uma óptima casa. Tinha tido uma
vida de certa forma tranquila. Mas estava na ponta final e a tomada de consciência
fazia-se presente, dizendo-lhe que tinha feito uma travessia inútil ou quase
inútil. Que não tinha vivido a vida que queria ter vivido. Que tinha feito tudo
em função dos outros e não tinha tirado partido de nada para si mesma. Uma boa
casa, para quê, se nem filhos tinha? A loja onde toda a vida tinha sido
empregada do marido, o “patrão”. Uma vida de trabalho, dedicada aos outros,
onde ela própria se tinha anulado por completo. E só agora ela via isso e como
se arrependia! Tarde de mais. Estava velha e cansada. As rugas tinham tomado
conta de todo o seu rosto e de todo o seu corpo. No olhar, era visível a
revolta da sua alma, a raiva contida e o desprezo por tudo o que a rodeava.
Nada mais lhe interessava. Era apenas uma pesada carga ao cima da terra. Como
tinha sido tão estúpida consigo mesma? Como se tinha deixado levar até àquele
ponto? Tudo tinha passado e não restava nada. Agora não havia mais volta a dar
e toda a sua vida tinha sido um vazio e uma inutilidade tremenda, pois tudo
ficara por viver.
Era isso tudo que passava na cabeça dela. É claro que isso mexia com ela de
forma doentia e o “Alzheimer” tinha tomado conta dela. E agora, mais do nunca,
chegara a sua vez de ser cuidada, mimada, de ter um pouco de atenção e
compreensão da parte de quem mais o devia, o marido, o “patrão”.
E enquanto eu tirava o dinheiro da carteira para lhe pagar, ele continuava
com as suas queixas do que ela já não fazia, etc, etc, etc… coitado dele que
agora tinha que fazer tudo sozinho, etc… etc… etc…, mas o que mais me impressionou
e me deixou completamente perplexa e sem palavras foi quando ele disse que é
claro que ele sabia muito bem como aquilo tudo lhe passava em dois tempos – e
fiquei curiosa -, com dois fortes estalos na cara e ela ficava boa de vez(!?)…