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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A lei do retorno - 32


A Clara tem agora cinquenta e sete anos e é a minha muito querida prima/irmã, quase uma filha, porque cuidei muito dela em pequena, na qualidade de irmã mais velha. Amo a Clara como ela é, com todas as suas maluquices e doidices, que não são poucas.

 

Dos cinco, dos quais eu faço parte, ela sempre foi a que mais trabalho deu. Só fazia aquilo que queria e não tinha medo de nada nem de ninguém. Sempre que a levávamos a passear no parque, o que normalmente acontecia comigo ou com o avô, onde houvesse água, fonte, lago, apesar de todas as nossas recomendações, a Clarinha enfiava-se lá, obrigando-nos a esperar, esperar, quase como uma tortura porque, apesar de todas as ameaças que lhe fazíamos, nomeadamente, advertindo-a de que nos iríamos embora deixando-a sozinha, nada adiantava. Ela sabia que eram só ameaças e que, na verdade, jamais o faríamos. E assim, invariavelmente, chegava a casa encharcada da cabeça aos pés, feliz e contente, ignorando tudo e todos, até os piores sermões da avó, que sempre nos culpava por aqueles incidentes, achando que não tínhamos nunca o cuidado suficiente com a “menina”.

 

A Clara cresceu e tornou-se uma mulher de sucesso, que se empenha a fundo na sua vida profissional. Um pouco materialista para o meu gosto, mas cada um é o que é. É inteligente e mata-se a trabalhar. Mas, quando é preciso, a Clara está presente e em situações muito difíceis da minha vida, foi a Clara que me tirou do sufoco. Foi a Clara que me “salvou”, por três vezes, na minha acidentada caminhada. E de todas as vezes o fez sem me questionar ou me atribuir culpas, limitando-se a disponibilizar-se, de acordo com a natureza da minha necessidade e apenas isso. Por isso e por muito mais, estou-lhe infinitamente agradecida e para mim ela é e sempre será muito especial. E porque a amo muito, também me dói muito, quando faz coisas que me parecem indignas dela.

 

Quando éramos crianças, a nossa tia avó materna, Maria Vergycosck, de descendência russa, nessa altura já com a idade muito avançada, tinha muitas joias. E todo esse ouro, que há muito já não usava, até porque já nem saía de casa, guardava religiosamente numa gaveta da sua cómoda grande e muito antiga, envolto num pano de feltro preto, por baixo da roupa. Segundo se contava, parte desse ouro já tinha servido para tirar do sufoco a família, nalgumas situações difíceis. Por exemplo, quando a minha tia, mãe da Clara, precisou de vir para Lisboa estudar e os meus avós não podiam fazer face às despesas. Ainda assim, ficara muita coisa. E de vez em quando, nós três, crianças, meninas, gostávamos de dar uma olhadela e admirar aquelas obras de arte que brilhavam pelo ouro e pelas pedras bonitas que tinham. E como ninguém tinha autorização para abrir aquela gaveta, de longe em longe, pedíamos à tia/avó que nos mostrasse, o que ela fazia com toda a sua boa vontade e a maior paciência do mundo, porque era uma dessas criaturas raras, que passam por esta vida apenas para cuidarem e se preocuparem com os outros, dando tudo sem nada receber e muito menos exigir. A sua capacidade de abnegação e resiliência era total. Ajudou a criar os irmãos, os sobrinhos, os sobrinhos netos e mais não fez porque chegou a sua hora de partir. Uma longa vida de dedicação e entrega, uma vida da qual nada teve a não ser o que deu e que não foi pouco. 

 

E apesar do ouro ser sempre o mesmo, lembro-me de que nem por isso deixava de nos fascinar, como se o víssemos sempre pela primeira vez, admirando aquilo que, como ela dizia, um dia seria nosso. Com certeza esse dia chegaria, mas eu achava que nenhuma de nós três pensava nisso. Nós amávamos aquela tia que era o nosso consolo, porque nos aturava a toda a hora com todas as nossas impertinências de crianças.

 

Tudo isto era tranquilo e não tinha nada de extraordinário. Mas a Clara, a mais nova das três, era a que sempre se mostrava mais apegada às joias. Muitas vezes percebi que ela as via com um olhar diferente, com uma certa impaciência e como que se achando com mais direitos… sem dúvida alguma.

 

As crianças cresceram, tornaram-se adultas, a tia cada vez mais velhinha, cansada e chegou um dia em que a Clara decidiu não esperar e sem mais nem menos, pediu as joias à tia, o que conseguiu, de forma leviana e abusiva, ignorando tudo e todos. A minha irmã, presenciando a cena, veio ter comigo, reclamando. Mas nós já sabíamos que ela era assim. Ela sempre foi assim. Não tinha regras. Simplesmente fazia e dizia o que queria. Por mais que a chamássemos à atenção, ela não queria saber disso para nada. Ela era como era e ponto final. A minha irmã não conseguiu ficar indiferente com aquela situação. O facto é que a tia era dona daquilo e podia fazer o que muito bem entendesse. 

 

É claro que percebíamos perfeitamente que a Clara se tinha aproveitado da já tão adiantada fragilidade dela, que já não tinha uma percepção tão clara das coisas, nem forças para reagir. E pedir-lhe contas por isso seria uma enorme injustiça. E talvez até tenha pensado que ela a repartisse connosco, por exemplo. Por isso, disse à minha irmã que simplesmente esquecesse e fizesse de conta que aquilo nunca tinha existido.

 

Por seu lado, a Clara estava triunfante. Ela tinha-se adiantado, o que nunca o deveria ter feito, mas enfim… ela tinha reclamado e quem éramos nós para julgar as suas atitudes?! A única coisa que para mim era importante era continuarmos sempre unidas, porque era assim que era a nossa vida, apenas isso. Do resto, a vida, ela própria, se encarregaria de cuidar. Efectivamente.

 

A Clara casou, já tinha um filhote com menos dez anos que o meu, a vida não estava propriamente fácil e eu comprava no supermercado uns cereais para o pequeno almoço que, mediante uns cupões fornecidos nas embalagens, davam direito a uns cremes de rosto de uma certa marca bastante razoável e assim eu poupava algum dinheiro. Como gastava muito daqueles cereais, juntava alguns cupões e para tirar o máximo partido daquela facilidade, quando atingia o limite, precisava de uma morada diferente da minha para ter direito a mais cremes.

 

Nessa altura, a minha irmã já vivia no Brasil, por se ter casado com um brasileiro e, portanto, não podia contar com ela. Restava a Clara. Falei com ela e expliquei-lhe o assunto, pedindo-lhe para receber os “meus” cremes na morada dela, o que ela logo aceitou sem objeção alguma, como era natural. O que não era natural era recebê-los e ficar com eles para ela, porque não foi esse o acordo. Mas ela ficava com eles e por conta das minhas reclamações, simplesmente respondia que, se iam para a morada dela, eram dela, deixando-me completamente sem palavras. Ela não tinha necessidade daquilo e não foi esse o trato que fizemos. Ela apenas faria o favor de os receber, no que ela concordou, mas não respeitou, porque decidiu apoderar-se deles. 

 

Fiquei incomodada com aquela situação, nem tanto por ficar sem os cremes, mas por não entender a atitude dela, até que um belo dia ela teve o desplante de se queixar que a empregada recebia o correio e ficava com os cremes para ela, o que a deixava muito indignada! A empregada “roubava-lhe” os cremes.

 

Voltando ao ouro da tia, que a Clara guardava em casa a sete chaves, no último andar do prédio onde morava, um dia em que não estava ninguém em casa, os ladrões entraram pelo telhado e lá se foi todo o ouro. A Clara informou-nos da tão imprevisível tragédia que, claro, era só dela. A nós em nada nos incomodou. E nem um pouco chateadas ficámos, nem pena nenhuma sentimos, para grande espanto dela, que queria que estivéssemos solidárias e condoídas com a perda dela!

 

A Clara é inteligente, culta, com muita bagagem, muita estrada, muita vivência, muito tudo. A Clara é antropóloga, tem dois filhos e uma vida muito rica, porque muito aproveitada e eu amo a Clara com todo o meu coração. O ouro e os cremes, etc… não têm a menor importância. O que importa é que, apesar de tudo, a Clara até hoje não aprendeu o básico da vida, desconhecendo as leis universais.

 

O facto é que, apesar de saber tanta coisa, até hoje, a coisa mais simples, o mais elementar da vida, a Clara ainda não aprendeu, desconhece ou ignora – a lei do retorno.