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quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

No Deserto - 33


Eram os últimos dias de uma espectacular viagem pelos Emirados Árabes e que não podia terminar sem uma ida ao deserto, que eu ansiava desde o primeiro dia, embora soubesse que estava reservado para o final. 

Deserto era tudo aquilo. Mas quem se lembraria de pensar nisso, quando à nossa volta víamos a grandiosidade dos edifícios e a terra a perder de vista transformada em verdadeiras florestas!? 

E não é que eu não achasse uma maravilha, pois era um mega empre-endimento, isso, sem dúvida alguma. Tudo aquilo era um colosso. 

Mas agora sim, estávamos em pleno deserto, onde as dunas pareciam dançar, enfeitiçando a terra com suas formas sensuais de movimento ondular irregular, palco de mistérios insondáveis, de lendas que se estendem pelo tempo, fantasiando a mente humana sob as noites de mil estrelas e das histórias das mil e uma noites ao som dos ventos que se desdobram na imensidão do vazio interminável, onde tudo se conjuga numa onda de solidão varrida de loucura, em busca duma qualquer, mas total liberdade harmoniosa, sui generis… tudo, menos vulgar. 

O deserto é lindo, na sua forma primária de cores da terra em tonalidades marcadas pelas sombras que só o sol é capaz de desenhar. O deserto é a forma mais bruta da natureza e por isso também a mais ousada. 

Tínhamos acabado de almoçar no restaurante mais alto do mundo e de regresso ao hotel, lá estavam os jipes, cada um com seu motorista, a fim de nos proporcionarem uma viagem de sonho pelo deserto. Eu estava ansiosa, como não podia deixar de ser. Já tinha estado no deserto, mas é sempre diferente, sempre irresistível e apaixonante. 

Kabir era indiano. Tinha emigrado para o Dubai porque ganhava bastante bem para sustentar a sua família na Índia e ainda fazer uma boa reserva. Era jovem, alto e fisicamente bem constituído. Usava uns óculos de sol bem escuros e largos, que lhe tapavam completamente os olhos e lhe davam um ar cheio de “estilo”, todo moderno. Era decidido e desenvolto. Por isso, depois de observar todos os motoristas, decidi que iria com ele. Dirigi-me ao seu jipe informando-o da minha decisão e logo ele me mandou sentar no banco da frente, bem ao seu lado. 

Ao todo eram cinco jipes e além de mim, seguiam ainda quatro mulheres e um homem, que faziam todos parte de um mesmo grupo. Eram divertidos e riam por tudo e por nada, pelo que a viagem foi muito divertida. Enquanto eles se divertiam com as suas charadas, Kabir e eu já conversávamos animadamente, com toda a familiaridade, o que facilitou muito a viagem, mais adiante veremos porquê. Além disso, falávamos Inglês e Hindy, tudo à mistura, pelo que, volta e meia, havia alguém que sussurava “mas em que língua estão eles a falar?”… 

Entrámos no deserto e os jeeps aguardaram a chegada de todos, para fazermos o mesmo percurso em fila indiana e não nos perdermos uns dos outros. Kabir era muito bom condutor e percebia-se que tinha prática do deserto, o que nos aliviou muito, embora as mulheres estivessem sempre a gritar e a agarrar-se a tudo, com um certo receio do jeep tombar, queixando-se das inevitáveis subidas e descidas. 

E logo um pouco depois da partida surgiu um problema que nos obrigou a parar. Um jeep, que não fazia parte do nosso grupo, ficou com uma roda traseira enterrada na areia e não havia maneira de tirá-lo de lá. E quanto mais o motorista forçava, mais ele se afundava. Ele não ia na nossa rota, mas Kabir avistou-o e apercebendo-se de que estava metido em apuros, logo se dirigiu para lá, fugindo assim ao nosso grupo. Todos solidários com o jipe empanado, Kabir pediu que ninguém saísse do jipe. Felizmente que, este ninguém, não me incluía. Kabir era perspicaz e percebeu de imediato o meu espírito aventureiro, pelo que me deixou à vontade para fazer o que quisesse, o que muito apreciei. 

Assim, saímos os dois ao encontro do motorista empanado e ao cabo de uma boa meia hora, lá foi possível desencalhar o jipe. Os dois cavaram até onde foi necessário e colocaram uma tábua de madeira junto à roda. Prenderam um carro ao outro com cordas fortes e com muito empenho, força e destreza, lá foram fazendo manobras em cima de manobras, até que o jeep saiu do buraco passando para a tábua e finalmente se movimentou sobre as areias já normalizadas. Esta foi a primeira aventura no deserto do Dubai. Mas não foi a única. 

Quando finalmente chegámos ao acampamento, já todos estavam no churrasco, nos comes e bebes, mas ninguém se lembrava de perguntar porque nos tínhamos atrasado tanto. Se calhar pensaram que tínhamos andado a passear pelo deserto!... Por isso já tinham iniciado a “festa”. 

Sentada no chão, com que prazer eu apreciava os sabores exóticos de aromas tão suaves como excitantes, numa conversa variada de diferentes idiomas. Cada um com as suas preferências e o buffet circulava livremente, continuando a oferecer de tudo um pouco. Tudo para mim estava perfeito e toda a gente se divertia, cada um procurando o que mais prazer lhe dava, tirando todo o partido possível de uma experiência no deserto, antes que a noite começasse a cair, enchendo o céu de mil estrelas, as mais brilhantes, as mais cintilantes: estava montada a magia do deserto. 

E o encantamento aumentou, quando uma jovem dançarina começou a sua exibição de dança oriental – dança do ventre - com todo o tilintar das moedas a cair na anca e os lenços de seda pura esvoaçantes, de cores exóticas, sob a luz das estrelas, onde ela se movimentava com toda a beleza e graciosidade. 

Quando tudo acabou era noite cerrada e escura. No acampamento, as luzes eram mínimas. Só a lua e as estrelas iluminavam o deserto e todos começavam a procurar os respectivos carros para o regresso ao hotel. No meio de tudo isto não consegui encontrar os restantes do meu grupo, nem o jipe, nem Kabir, meu motorista preferido. Por algum tempo me senti perdida, sem saber que direcção tomar. A verdade é que só via os jipes a debandarem e o acampamento a ficar cada vez mais vazio. Mas não era possível que se tivessem ido embora sem mim!?... 

Olhando em redor, apercebo-me de um pequeno grupo de pessoas todas muito juntinhas. Quem seriam? O que fariam? Não me restando alternativas, vou na direcção delas que, curiosamente, ficaram muito animadas à minha chegada. Só então me apercebi de que era todo o meu grupo, como eu ou mais que eu, assustadas, sem saberem o que fazer. Ah… então o problema não era meu. 

Perguntaram-me pelo motorista e respondi que não fazia a menor ideia, pois nunca mais o tinha visto. E todas encolhidinhas e agarradas umas às outras, perguntavam “e agora, o que fazemos?” Pensei, “temos que ir à procura dele, porque tem de nos levar de volta”. Já todos tinham partido, só nós ali desterradas na imensidão do deserto. Mas elas não estavam com a menor vontade de sair dali para o procurar. Pedi-lhes que se mantivessem no mesmo sítio, para não nos perdermos, enquanto eu iria procurá-lo. 

E lá fui eu. Missões impossíveis sempre estão guardadas para mim. Andei e andei, avistando umas luzes que não percebi muito bem o que eram. Mais perto, percebo que eram luzes de um carro parado, com a porta do lado do motorista aberta. Percebi também que havia duas luzinhas vermelhas, movendo-se lentamente, que só podiam ser cigarros, logo, pelo menos, de duas pessoas se tratava. 

Pouco à vontade, chego junto e pergunto se sabem de Kabir. Um dos dois indivíduos levantou-se, falou qualquer coisa ao outro, que não entendi e logo se afastou, enquanto o que ficou abriu a porta para eu entrar. Na verdade não o reconheci. Não reconheci o rosto dele. E enquanto fomos buscar os outros do nosso grupo, que ficaram numa enorme alegria quando me viram chegar com ele, Kabir comentou com uma certa curiosidade o facto de eu não o ter reconhecido. Respondi que estava tudo na escuridão e que ele estava sem óculos. Mas ele não aceitou e não sem um certo espanto da minha parte, disse “qualquer outra mulher no mundo inteiro podia não me reconhecer, mas tu não”. 

Hum?… eu nem queria acreditar no que ele dizia… mas pensando um pouco, entendi que ele se referia ao facto de eu ser indiana e daí a nossa afinidade. E mais, face a toda a minha experiência de vida, por questões muito peculiares, no seu entender, ele achou que eu devia tê-lo reconhecido, sem qualquer hesitação. Pedi-lhe desculpa, apenas porque aquilo que aparentemente parecia ser uma nota negativa a meu respeito, não era senão um elogio. Interessante!... Ainda mais porque eu tinha idade suficiente para ser mãe dele. 

E lá fomos nós, o último jipe, sempre o último, por isto ou por aquilo. Mas a esta altura eu já me sentia bastante segura. Kabir era confiável e corajoso. Até já tinha esquecido que, na verdade, e foi mesmo por um triz, quase fiquei no deserto. E aí ficava mesmo. Mas, só não fiquei, como aprendi uma preciosíssima lição. 

A páginas tantas, quando já tinha experimentado toda a comida e a dança ainda não tinha começado, ainda era dia e resolvi, para não variar, por minha conta e risco, dar a minha voltinha, sozinha. 

Quase todos tinham ido para os camelos e como já não era novidade para mim, preferi investigar o deserto, do meu jeito. Assim, comecei a caminhar, afastando-me um pouco do acampamento, o que foi um erro. Havia dunas e poços de areia, alguns dos quais, com alguma vegetação própria do deserto. E a páginas tantas deixei-me levar e cometi outro erro, desci pela duna abaixo, até ao fundo, ao poço de areia. 

Enquanto me deixei escorregar achei que era uma sensação e tanto. Eu por ali abaixo e a areia atrás de mim. Senti-me uma criança, apreciando a brincadeira ingénua, com o perigo à espreita, ao qual eu estava completamente alheia. Levantei-me do chão, dancei, fiz umas maluquices e achei que estava na hora de voltar à base. Foi então que tomei consciência da burrice que tinha feito. Uma burrice sem tamanho. Foi tão bom descer… mas… e agora para subir? Um pé à frente e outro atrás, mas estava sempre no mesmo sítio. É claro, não havia a mais pequena firmeza nas areias. Mais um pé e outro e eu só descia. Contra tudo e todos, descia, descia. 

Olhei para o alto e percebi que dali não sairia. Comecei a entrar em pânico. Estava longe do acampamento, não adiantava gritar por socorro. A coisa estava feia. Fiquei quieta, parada, no silêncio, entregue a mim mesma. Que fazer? 

Olhei para o cimo da duna e pensei que tinha que sair dali. A areia não havia de ser mais teimosa do que eu. E mais uma vez, quanto mais esforço fazia, maior era o desastre, mais depressa escorregava e voltava ao fundo. O meu coração começou a bater fortemente e a minha inquietação era desesperante. Senti-me completamente impotente. Aquilo não era uma brincadeira e eu estava seriamente em apuros. Depois de várias tentativas infrutíferas, começo a ficar muito cansada fisicamente e as minhas forças a irem-se. O que fazer? O que tinha ido fazer ali? Para quê?  

Havia uns arbustos com umas hastes bem compridas, se eu conseguisse alcançá-las talvez me ajudassem na corrente contra as areias e caso não se partissem, iria passando de umas para as outras. Esperei um pouco para recuperar as forças e me tranquilizar. E mais uma vez lá fui lutando contra as areias que, por sua vez, tanta luta me davam, parecendo divertir-se às minhas custas, fazendo-me sentir completamente derrotada e com aquele horrível sentimento de impotência a devastar a minha alma e a derrubar consistentemente toda a minha paciência. 

E eu já não sabia mesmo o que fazer nem pensar. Estava morta, fragilizada e tão zangada comigo mesma.  Mas embora exausta não podia desistir, porque isso era desistir de mim e desistir é próprio dos fracos. Foi então que tive outra ideia que decidi pôr em prática. Deixar de competir com as areias, deixar de forçar, ter muita paciência e dentro de um espírito completamente diferente, pus um pé e parei, deixando as areias virem ao meu encontro numa corrida feliz e contente. Deixei-as vir, sem luta e sem medo. Quando estabilizaram, dei apenas mais um passinho pequeno, pequenino e as areias limitaram-se a uma descida proporcional. Parecia que também se tinham cansado. Novamente fiquei a apreciar e dei mais outro passo ainda mais pequeno. E as areias desceram, sim, mas levemente, suavemente, e de cada vez que me movimentava a passada era mesmo a mais curta possível e assim as areias foram sossegando e de repente estava quase a chegar ao arbusto dos ramos compridos. 

Foi então que percebi que todo o esforço que tinha feito anteriormente tinha sido em vão, porque queria subir tudo aquilo de uma só vez. Eu tinha esquecido completamente que estava no deserto. As areias estavam a trabalhar a minha inteligência, mas acima de tudo a testar a minha paciência. Era belo, o deserto, mas a minha relação com ele sempre tinha sido superficial, sempre tinha passado pelos benefícios, as fantasias, as ilusões e naquele momento eu estava a vivenciá-lo na sua plenitude. Com estes pensamentos, calma e tranquilamente cheguei ao arbusto onde me segurei firmemente, com unhas e dentes. E de ramo em ramo, finalmente, consegui atingir o topo, onde de novo me encontrei a salvo. 

De regresso ao acampamento, se eu admirava o deserto, a minha admiração só aumentou e agradeci a lição de paciência e persistência a que ele me tinha acabado de submeter. Tinha aprendido uma das mais duras lições da minha vida e tinha plena consciência disso.  Ali mesmo, no deserto.