Meu
marido nunca gostou de se levantar cedo. Por sorte tinha um trabalho que lhe
permitia escolher o horário que lhe conviesse e por isso estava quase sempre à
noite, o que fazia com que pudesse dormir até bem tarde. Um horário assim
significava entrar às quatro horas da tarde e terminar mais ou menos à
meia-noite, dependendo do alinhamento da emissão. Além disso, independentemente
da hora a que chegava a casa, ia direito para o computador, sendo que a hora a
que se deitava entrava pela noite dentro. Já eu não podia fazer o mesmo porque,
como a maioria dos trabalhadores, o meu horário era de dia e sempre o mesmo,
manhã e tarde.
Isto
era bastante complicado de gerir, não para ele que só fazia aquilo que queria,
mas para mim que tinha que levantar o meu filho à mesma hora, sair comigo,
levá-lo à ama e mais tarde à escola e por aí adiante. No regresso a cena
repetia-se. Eu ia buscá-lo e regressávamos os dois a casa. O pai nunca, ou
raramente, estava connosco. E quando assim não era, a verdade é que era ainda
pior porque, se ele podia dar-se ao luxo de entrar atrasado, já eu não podia,
pelo menos em teoria. Anos a fio, dava-me uma grande sobrecarga sob todos os
aspectos, porque nunca andávamos a par e passo.
Mas
aí, chegou o dia em que começou a sentir uma necessidade de se habituar a
levantar mais cedo e até fazer uma tentativa de escolher um horário de dia e
aproveitar o tempo de maneira diferente. Isto era uma verdadeira fantasia,
porque o que ele fazia fora da empresa, fosse a que horas fosse, era sempre o
mesmo: trabalhar. Esse era o mundo dele. Não estarei errada se pensar que nunca
na vida preparou uma refeição, nem que fosse só para ele, muito menos para a
família. Nem me lembro de alguma vez ter ido ao supermercado para fazer compras
para casa… era assim.
Mas
realmente dizia que queria “mudar de vida”. Como então? Começar a levantar-se à
mesma hora que eu e o filho. Era isso que ele queria, ou dizia que queria, mas
todos os dias acontecia o mesmo. Nós levantávamo-nos, despachávamo-nos e
ele lá, entre vale de lençóis, dormindo sem fazer o menor esforço para se
levantar. Em todo o caso, todos os dias se lamentava, dizendo que queria tanto
levantar-se cedo(!)… queria, mas não se tinha levantado. E todos os dias era a
mesma cena, lamentações por causa de não se ter levantado cedo. Até que se
lembrou que eu tinha que chamá-lo, isto é, acordá-lo. Era isso que era preciso.
A partir daí a minha missão, além do que já tinha para fazer, era ser o
despertador dele. A mim ninguém me chamava, mas tudo bem. Estava combinado, eu
passaria a acordá-lo todas as manhãs. Se era essa a solução para resolver o
problema de se levantar de manhã, como parecia tanto querer, porque não?
Acordá-lo-ia conforme seu pedido.
E
começou a minha tarefa de chamá-lo todos os dias. Despachava-me a mim e ao
filho e já na hora de saída ou enquanto tomávamos o pequeno almoço, lá ia eu
chamá-lo. E embora eu estivesse simplesmente a ir ao encontro de um pedido
dele, era difícil, porque ele não reagia nada bem e era um constrangimento e
tanto. Uma grande chatice. Mas nada que não fosse previsível. E todas as manhãs
tínhamos esta saga. Se ao menos resultasse, enfim, mais sacrifício menos
sacrifício... o pior é que não resultava. Balbuciava, virava-se para o outro
lado e ficava. Levantar-se era exactamente o que não fazia. E a cena repetia-se
todos os dias, o que me deixava terrivelmente frustrada, saindo de casa já
aborrecida.
Mas
as coisas conseguiram piorar. Durante o dia, quando nos encontrávamos no
trabalho e ele se confrontava com o facto de continuar a não se levantar e a
entrar tarde, teve outra ideia magnífica. A culpa era minha(!?) Era minha
porque não fazia muito esforço para o acordar, isto é, tinha que ser mais
insistente, mais firme, porque ele queria mesmo levantar-se de manhã. Sorte
malvada! Só deus sabe o que me custava toda aquela situação a somar a todas as
outras que não vêm ao caso e ainda assim, claro, a culpa era minha. Até porque
a culpa era sempre minha, fosse do que fosse, nem podia ser de mais ninguém.
Mais
empenho, mais vezes a chamá-lo, a dizer-lhe que era ele quem tinha pedido, se é
que se tinha esquecido disso, enfim, uma verdadeira luta que se repetia
diariamente, sem solução aparente. E a cada vez que o chamava ele respondia que
já ia, que já tinha ouvido, mas continuava na cama. O meu dia começava sempre
com uma significativa carga negativa. E as desculpas iam sempre no sentido de
me fazer sentir incompetente e culpada. Pois claro. Começou a desculpar-se,
dizendo que nem me tinha ouvido chamá-lo, que se tinha respondido era
inconscientemente, que eu não queria saber, não o ajudava… etc… etc.
Até
ao dia em que me cansei e decidi pôr ponto final. E quando eu decido uma coisa
não há quem me demova. Está decidido, está decidido. Não sei se é bom ou mau,
mas é assim, desde que me conheço. Ele sabia perfeitamente que eu o chamava e
sabia o esforço que eu fazia para ele se levantar. Se não se levantava, decididamente,
era porque não queria e agora eu não estava mais disposta a continuar a
deixá-lo brincar comigo daquela maneira. Ele sabia que estava a mentir e que eu
sabia disso. Estava a fazer de mim parva. Então, eu só tinha que fazer o jogo
dele, mais nada. E pensei, se ele não está disposto a reconhecer que o problema
é dele e se joga para cima de mim, indeterminadamente, que não o chamo, que não
ouve, etc…, sabendo perfeitamente que isso não é verdade, então vamos jogar os
dois e vamos ver quem ganha.
E a
partir daí deixei, simplesmente, de me dar ao trabalho de sequer o chamar ou
acordar. Fim de capítulo. Se quisesse que fosse à luta. De qualquer maneira ele
já fazia questão de me atirar à cara que era eu que não o acordava, pois era
isso que eu iria fazer. Eu não lhe daria mais o trabalho de me mentir
descaradamente. E pronto, acabou-se a saga. E agora era ele que vinha ter
comigo dizendo que não o tinha chamado. De facto não o tinha chamado. Ele tinha
toda a razão. Mas isso eu não lhe dizia. Tinha chegado a minha vez de “fingir”.
E perante toda a indignação dele em relação ao facto de o não ter chamado,
reagi como de costume, dizendo que o tinha acordado, sim, como todos os dias o
fazia e mais uma vez ele tinha ignorado, o que era falso porque, na verdade, eu
não o tinha chamado. Primeiro ficou na dúvida, depois talvez até tenha
acreditado, tendo em conta tudo o que estava para trás.
No
segundo dia voltou a questionar-me e tranquilamente voltei a dizer-lhe que o
tinha acordado como todos os dias e que já estava habituada à reacção dele e
portanto já não tinha nada para dizer. Nesse dia a dúvida ficou. E no terceiro
dia a cena repetiu-se, voltei e mentir, o que me deu um enorme gozo, e mais
calma do que nunca, encolhi os ombros, respondendo simplesmente que era o
costume, sem mais reacção da parte dele.
A
ficha tinha caído. Ele agora sabia que eu estava a mentir e era essa a minha
intenção. E como não estava em posição de exigir nada porque sabia que durante
todo o tempo tinha estado a "brincar" com a minha paciência, calou-se
de vez e o assunto acabou, o que já não era sem tempo.
Amor
com amor se paga e "para grandes males, grandes remédios”!...
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