Translate

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Cenas da vida conjugal - 52



Meu marido nunca gostou de se levantar cedo. Por sorte tinha um trabalho que lhe permitia escolher o horário que lhe conviesse e por isso estava quase sempre à noite, o que fazia com que pudesse dormir até bem tarde. Um horário assim significava entrar às quatro horas da tarde e terminar mais ou menos à meia-noite, dependendo do alinhamento da emissão. Além disso, independentemente da hora a que chegava a casa, ia direito para o computador, sendo que a hora a que se deitava entrava pela noite dentro. Já eu não podia fazer o mesmo porque, como a maioria dos trabalhadores, o meu horário era de dia e sempre o mesmo, manhã e tarde.

 

Isto era bastante complicado de gerir, não para ele que só fazia aquilo que queria, mas para mim que tinha que levantar o meu filho à mesma hora, sair comigo, levá-lo à ama e mais tarde à escola e por aí adiante. No regresso a cena repetia-se. Eu ia buscá-lo e regressávamos os dois a casa. O pai nunca, ou raramente, estava connosco. E quando assim não era, a verdade é que era ainda pior porque, se ele podia dar-se ao luxo de entrar atrasado, já eu não podia, pelo menos em teoria. Anos a fio, dava-me uma grande sobrecarga sob todos os aspectos, porque nunca andávamos a par e passo.

 

Mas aí, chegou o dia em que começou a sentir uma necessidade de se habituar a levantar mais cedo e até fazer uma tentativa de escolher um horário de dia e aproveitar o tempo de maneira diferente. Isto era uma verdadeira fantasia, porque o que ele fazia fora da empresa, fosse a que horas fosse, era sempre o mesmo: trabalhar. Esse era o mundo dele. Não estarei errada se pensar que nunca na vida preparou uma refeição, nem que fosse só para ele, muito menos para a família. Nem me lembro de alguma vez ter ido ao supermercado para fazer compras para casa… era assim.

 

Mas realmente dizia que queria “mudar de vida”. Como então? Começar a levantar-se à mesma hora que eu e o filho. Era isso que ele queria, ou dizia que queria, mas todos os dias acontecia o mesmo. Nós levantávamo-nos, despachávamo-nos e ele lá, entre vale de lençóis, dormindo sem fazer o menor esforço para se levantar. Em todo o caso, todos os dias se lamentava, dizendo que queria tanto levantar-se cedo(!)… queria, mas não se tinha levantado. E todos os dias era a mesma cena, lamentações por causa de não se ter levantado cedo. Até que se lembrou que eu tinha que chamá-lo, isto é, acordá-lo. Era isso que era preciso. A partir daí a minha missão, além do que já tinha para fazer, era ser o despertador dele. A mim ninguém me chamava, mas tudo bem. Estava combinado, eu passaria a acordá-lo todas as manhãs. Se era essa a solução para resolver o problema de se levantar de manhã, como parecia tanto querer, porque não? Acordá-lo-ia conforme seu pedido.

 

E começou a minha tarefa de chamá-lo todos os dias. Despachava-me a mim e ao filho e já na hora de saída ou enquanto tomávamos o pequeno almoço, lá ia eu chamá-lo. E embora eu estivesse simplesmente a ir ao encontro de um pedido dele, era difícil, porque ele não reagia nada bem e era um constrangimento e tanto. Uma grande chatice. Mas nada que não fosse previsível. E todas as manhãs tínhamos esta saga. Se ao menos resultasse, enfim, mais sacrifício menos sacrifício... o pior é que não resultava. Balbuciava, virava-se para o outro lado e ficava. Levantar-se era exactamente o que não fazia. E a cena repetia-se todos os dias, o que me deixava terrivelmente frustrada, saindo de casa já aborrecida.

 

Mas as coisas conseguiram piorar. Durante o dia, quando nos encontrávamos no trabalho e ele se confrontava com o facto de continuar a não se levantar e a entrar tarde, teve outra ideia magnífica. A culpa era minha(!?) Era minha porque não fazia muito esforço para o acordar, isto é, tinha que ser mais insistente, mais firme, porque ele queria mesmo levantar-se de manhã. Sorte malvada! Só deus sabe o que me custava toda aquela situação a somar a todas as outras que não vêm ao caso e ainda assim, claro, a culpa era minha. Até porque a culpa era sempre minha, fosse do que fosse, nem podia ser de mais ninguém.

 

Mais empenho, mais vezes a chamá-lo, a dizer-lhe que era ele quem tinha pedido, se é que se tinha esquecido disso, enfim, uma verdadeira luta que se repetia diariamente, sem solução aparente. E a cada vez que o chamava ele respondia que já ia, que já tinha ouvido, mas continuava na cama. O meu dia começava sempre com uma significativa carga negativa. E as desculpas iam sempre no sentido de me fazer sentir incompetente e culpada. Pois claro. Começou a desculpar-se, dizendo que nem me tinha ouvido  chamá-lo, que se tinha respondido era inconscientemente, que eu não queria saber, não o ajudava… etc… etc.

 

Até ao dia em que me cansei e decidi pôr ponto final. E quando eu decido uma coisa não há quem me demova. Está decidido, está decidido. Não sei se é bom ou mau, mas é assim, desde que me conheço. Ele sabia perfeitamente que eu o chamava e sabia o esforço que eu fazia para ele se levantar. Se não se levantava, decididamente, era porque não queria e agora eu não estava mais disposta a continuar a deixá-lo brincar comigo daquela maneira. Ele sabia que estava a mentir e que eu sabia disso. Estava a fazer de mim parva. Então, eu só tinha que fazer o jogo dele, mais nada. E pensei, se ele não está disposto a reconhecer que o problema é dele e se joga para cima de mim, indeterminadamente, que não o chamo, que não ouve, etc…, sabendo perfeitamente que isso não é verdade, então vamos jogar os dois e vamos ver quem ganha.

 

E a partir daí deixei, simplesmente, de me dar ao trabalho de sequer o chamar ou acordar. Fim de capítulo. Se quisesse que fosse à luta. De qualquer maneira ele já fazia questão de me atirar à cara que era eu que não o acordava, pois era isso que eu iria fazer. Eu não lhe daria mais o trabalho de me mentir descaradamente. E pronto, acabou-se a saga. E agora era ele que vinha ter comigo dizendo que não o tinha chamado. De facto não o tinha chamado. Ele tinha toda a razão. Mas isso eu não lhe dizia. Tinha chegado a minha vez de “fingir”. E perante toda a indignação dele em relação ao facto de o não ter chamado, reagi como de costume, dizendo que o tinha acordado, sim, como todos os dias o fazia e mais uma vez ele tinha ignorado, o que era falso porque, na verdade, eu não o tinha chamado. Primeiro ficou na dúvida, depois talvez até tenha acreditado, tendo em conta tudo o que estava para trás.

 

No segundo dia voltou a questionar-me e tranquilamente voltei a dizer-lhe que o tinha acordado como todos os dias e que já estava habituada à reacção dele e portanto já não tinha nada para dizer. Nesse dia a dúvida ficou. E no terceiro dia a cena repetiu-se, voltei e mentir, o que me deu um enorme gozo, e mais calma do que nunca, encolhi os ombros, respondendo simplesmente que era o costume, sem mais reacção da parte dele. 

 

A ficha tinha caído. Ele agora sabia que eu estava a mentir e era essa a minha intenção. E como não estava em posição de exigir nada porque sabia que durante todo o tempo tinha estado a "brincar" com a minha paciência, calou-se de vez e o assunto acabou, o que já não era sem tempo.

 

Amor com amor se paga e "para grandes males, grandes remédios”!...

 


Sem comentários:

Enviar um comentário