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quinta-feira, 30 de março de 2017

Os tios padres - 36


Era o ano de 1980, ano em que o meu filho nasceu. Eu estava nos Açores, mais propriamente em Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, onde vivia e trabalhava, mesmo no início das Delegações da RTP nas ilhas, o que foi uma bela experiência. 

E foi também nesse ano que, no quinto mês de gravidez, deixei os Açores e retornei à base, Lisboa, acompanhada pelo meu marido, uma vez que ele já tinha percebido que lá, todo o seu potencial profissional e intelectual sempre seria subaproveitado, sem a mais pequena possibilidade de o expandir e fazer crescer. 

Mas não foi exactamente essa a razão que nos fez regressar. Isso, sim, mas principalmente a minha gravidez. Nos Açores não havia médico da especialidade, havendo dois médicos de clínica geral que se dedicavam a isso de modo muito particular. E eu queria um obstetra a sério, em quem pudesse confiar, o que fazia, necessariamente, com que o meu filho nascesse em Lisboa e que, de facto, aconteceu. Com cinco meses de gravidez lá viemos nós, de armas e bagagens para o Continente, onde o futuro nos aguardava. 

Enquanto estava nos Açores, quase todos os dias ia a casa da senhora minha sogra que vivia com um dos irmãos padres. Eram dois, mas o outro era prior na Lagoa onde vivia, não muito longe, porque ali nada é longe. As distâncias são todas pequenas. E a minha sogra vivia no seu enorme casarão com o irmão padre de quem cuidava, sendo que o da Lagoa ia lá muitas vezes. Era normal chegar e encontrá-lo. Sempre que tinha um tempinho metia-se no carro e ia a Ponta Delgada ver a irmã, o irmão e os sobrinhos. E como eu morava praticamente ao virar da esquina, todos os dias passava por lá. Às vezes almoçávamos, outras vezes jantávamos e por ali andávamos, entre uma casa e outra. 

Os tios padres eram muito engraçados. De estatura baixa, cheinhos, gostavam de comer e comer bem, as coisas da terra e à moda da terra, que a minha sogra tão bem sabia fazer, pois era uma excelente cozinheira e nunca deixava uma refeição ao acaso, isto é, todas as refeições eram especialmente bem preparadas, regadas com uma boa pinga e tudo bem apimentado com a pimenta que nunca podia faltar. 

Os tios padres, toda a vida habituados a serem bem tratados, se alguma coisa estivesse menos bem, logo tratavam de reclamar. Em nada poupavam a irmã, que era uma santa senhora e nunca se cansava, por mais esfalfada que estivesse. Mas, em nome da igreja, do senhor santo Cristo e mais não sei o quê, tudo ali andava ao sabor da santa madre igreja. E eu sempre aproveitava para os picar quanto ao vinho, dizendo-lhes que os padres não podiam beber e outras coisas, ao que eles se mostravam muito indignados, reclamando: “ora essa, nã podem beber vinho? Quem disse uma cosa dessas?” 

Eu não lhes perdoava. Mal pusessem o pé em ramo verde, já estava em cima, lembrando-os de que eram padres. Também é verdade que se estavam nas tintas, murmurado entre dentes e desdenhando as minhas observações. Mas era tudo na reinação. Por mim, queria lá saber do que eles faziam ou diziam! Era lá com eles. Não era eu que era padre nem freira!... 

Um dia, entrando em casa, subi as escadas de acesso ao primeiro andar e fui direita à cozinha, onde estava a minha sogra, para a cumprimentar e passando no escritório, estava o padre Domingos fazendo umas arrumações na sua vasta biblioteca pessoal. Mas não estava sozinho. O padre Agostinho, sentado numa cadeira e fumando – outra coisa com que eu sempre os chateava, o tabaco - observava, indiferente, os afazeres do irmão. 

A páginas tantas, o padre Domingos puxa de uma cadeira para junto de uma das estantes e leva consigo um livro, enquanto faz um esforço para subir na cadeira e chegar à dita estante a guardar o livro. De pé na cadeira com a sua figura engraçada: cabelo bem grisalho, cujas pontas formavam caracóis pequeninos; óculos descaídos na pontinha do nariz, com armações pretas a condizer com a roupa sempre preta e o seu aspecto de barrilinho - porque toda a sua gordura crescia em direcção à barriga; tanto de baixo para cima, como de cima para baixo, tudo se acumulava de vez à volta do umbigo, dando-lhe a forma de um verdadeiro barril -, para não ter de descer novamente, pede ao irmão que lhe chegue um outro livro que estava sobre a sua secretária. 

Naquela bela pronúncia açoriana bem cerrada e comendo as sílabas, que um continental não acostumado nada entende, dirigindo-se ao irmão que continuava sentado com um ar bem tranquilo, para não dizer preguiçoso, de quem não está realmente à espera de nada nem ninguém que interrompa a sua mui digna e apreciada lazeira, diz-lhe: “oh Agostinho, chega-me aí aquele livro”. De cigarro numa das mãos, com a outra apoiada no joelho da perna traçada e fazendo um notório esforço para ter de falar, limita-se a responder “qual livro?” 

Eu estava de parte. Não chegava a ter entrado e perante aquele quadro, em relação ao qual antevia uma boa risada para mais tarde continuar quando contasse ao meu marido, fiquei onde estava. O bom do tio padre Domingos, insurgindo-se, retorquiu: “Oh home, nã vez ali em cima da secretária?” Mas como o outro não lhe dava jeito ver o livro, continuou “Adonde?”... 

“Acolá”, dizia o outro, já mais energicamente, para não dizer encolerizado. Mas o Padre Agostinho não fazia mesmo a mais pequena intenção de ver ou dar atenção. Ele queria era não ser incomodado de jeito nenhum. Era outro barril, mas um barril mais uniforme. A gordura distribuía-se mais por todo o corpo. Comer, beber, fumar e dormir, eram coisas que não dispensava. E ainda fazer a sua propagandazinha política, insinuando os fiéis, durante a homilia, a votarem na "mãzinha" fechada, conforme ele próprio mostrava.

Os dois eram bem diferentes no tocante à personalidade. Padre Domingos era padre da cabeça aos pés. Mesmo quando não estava "fardado", a sua indomentária, bem como a sua postura, eram de um padre. Em qualquer circunstância, enquadrado em que cenário fosse, olhava-se para ele e via-se um padre, escarrado e pintado. Tinha sempre um ar sério, compenetrado e invariavelmente andava sempre com a sua bíblia atrás, dando-lhe um ar de seriedade, compenetração e de uma certa tranquilidade. Já Padre Agostinho era totalmente diferente. Só quem o conhecia é que o via como padre. Ao contrário do irmão, andava sempre à paisana, com roupa perfeitamente normal. Além disso, não tinha o hábito de andar com a bíblia nas mãos. O que eu lhe via sempre era um cigarro. E só usava o hábito em plena missão litúrgica.  

“Na querem lá ver, agora tenho que me levantá pa te dá o livro?!” – “Custa-te munto?” - perguntava o outro. “Pôs claro que me custa!”... Valha-me Deus, que nesta altura eu já ria a bom rir, só por dentro (já tinha história).  Padre Domingos: “Oh Agostinho, dá-me o livro, fazes favôoor!”. Agora já era uma ordem, já não era um pedido. Padre Agostinho, sem se livrar da sua calma, apaga o cigarro já no fim, levanta-se pachorrentamente e aproximando-se da secretária pergunta: “é este livro?” 

“Sim, chega-me cá, se fazes favor” diz o padre Domingos já impaciente. Padre Agostinho dá mais dois passinhos na direcção do irmão e com uma mão enfiada no bolso e a outra segurando o livro responde: “toma”. Só que o livro estava um pouco - para não dizer muito - abaixo da altura do outro. E não era nada difícil chegar-lhe por ele ser de baixa estatura, mas conhecendo-o como o conhecia, sabia que era intencional. 

Naquele momento, para mim, ambos tinham deixado de ser quem eram, dois padres, dois adultos, para serem duas crianças brincando. Só que não era brincadeira, era sério. E eu cada vez mais deliciada, imaginando a cara e o riso do meu marido quando lhe contasse a cena. Ele sempre ria com gosto das cenas que lhe contava. E aquela não fugiria à regra. 

Padre Domingos, percebendo que o livro estava muito abaixo, não foi de modas: “oh home, chega cá o livro, se fazes favor”, dando-lhe aquela acentuação bem carregada, ao que o outro respondeu: “se queres o livro, tá aqui” – sem o levantar um só milímetro. Não havia dúvidas, a festa estava a começar. E eu sozinha, para presenciar, porque a minha sogra, entretanto, tinha passado para a sala de estar e estava entretida com os seus tricots, entregue aos seus pensamentos e tudo lhe passava ao lado, até porque já era um pouco surda. 

E então começa um despique que nunca mais acabava. Um dizia “chega aqui acima”, o outro dizia “chega cá abaixo, na te podes baixar um bocadinho?” Depois o outro dizia “és tu que tens que chegar aqui a cima” e o outro respondia “és tu que tens que te baixar pa apanhar o livro”. Eu realmente estava passada. Só queria ver os “fiéis” a assistirem àquela brincadeira de garotos embirrentos. Ninguém ia acreditar. Era surreal. Por isso mesmo, dei um pulinho à sala onde estava a minha sogra e contei-lhe o que se estava a passar, o que não a perturbou muito, pois já estava habituada. Deu um sorriso e continuou imperturbável, apreciando o seu sossego. Voltei ao posto de observação e a cena continuava com os dois desafiando-se. Ambos querendo ter razão, ambos se achando com mais direitos que o outro. És tu que… não, és tu que… 

“Na querem lá ver”, dizia um. “Na podes fazer um esforçozinho(?)”, perguntava o outro. Aquilo era demais. E quando já tinha o papo cheio da brincadeira, entrei, tirei o livro da mão do que estava em baixo e dei ao que estava em cima. De um lado ouvi a palavra “obrigado”, do outro “ele que viesse buscá-lo”. Pronto - disse eu -, está resolvido o problema. Mas não estava, porque continuaram a discutir quem é que devia a quem. O sexo dos anjos, pensei. Males de família.