Era o mês de
Agosto e a Clara já andava há algum tempo a dizer que queria ir passar uma
semaninha com a mãe a Setúbal. Assim, pegaria na Sara e no Afonso, para também
estarem com a avó e comigo seríamos cinco. A mãe iria apreciar. Depois, estar
com a Clara é sempre uma aventura, mas acima de tudo uma grande incógnita.
Depende dos “ventos” …
O Verão decorria, os dias passavam e a Clara continuava a falar naquilo que
seria uma semana, mas que sempre que falava ia encolhendo. Já não era uma
semana, mas cinco dias, que depois passaram para três e finalmente encolheu ao
ponto de irmos num dia e voltarmos no outro. Uma semana compacta, digamos,
porque os acontecimentos, esses seriam extensos, extensos, sem nunca mais
acabar.
E o famigerado dia chegou, sendo que até esse foi avançando, avançando… já
não podendo ser de manhã, nem depois do almoço e nem à tarde, por isso, à
noitinha lá fomos nós finalmente, alegres e contentes buscar a mãe, que não
parava de reclamar por causa da semana que tanto tinha encolhido.
Já a caminho de Setúbal, a Clara várias vezes fez notar que no dia seguinte
logo de manhã, iríamos para Tróia, portanto, que ninguém se atrasasse. Era
quase uma ordem. Contudo, sendo que a Sara não pôde ir connosco por causa de um
festival de música qualquer e só no dia seguinte se juntaria a nós em Setúbal,
eu já não estava muito bem a perceber como é que ela queria ir logo de manhã
bem cedo, a ponto de ter que fazer um aviso prévio. Ainda por cima, não sabia a
que horas ela chegava. A coisa começava a ficar enrolada, bem ao jeito dela.
Mas eu nem me dava ao trabalho de fazer perguntas. Só a mãe estava
constantemente a perguntar “e a Sara, quando é que chega(?)” e a Sara quando é
que chega. Mas não havia mesmo resposta para lhe dar, o que muito a enervava.
No outro dia logo de manhã, com efeito, comecei a ouvir a mesma cantilena
de que tínhamos que nos despachar. Ainda eu estava na cama já ouvia a Clara com
o mesmo disco. Mas a Sara ainda não estava e nem se sabia a que horas chegaria?!
Se calhar nem praia ia haver. Mas isso para mim também não importava nada. O
certo é que a mãe se tinha levantado bem cedo, para fazer face aos planos
furados da Clara. E agora perguntava: “então e a Sara quando é que chega”? E a
resposta era sempre “não sei”. Posto isto, olhava para mim e entre dentes
murmurava: “mas esta rapariga é maluca ou quê!?”
Por ali ficámos toda a manhã, até que a Clara informou que afinal a Sara só
chegava à hora do almoço, pelo que logo a seguir iríamos para Troia. Mais um
aviso à tripulação. E para isso tratou de marcar almoço na churrascaria ao lado
de casa, para termos mesa a horas e nos despacharmos para ir, mesmo sem saber
ainda bem, a que horas chegaria a Sara, porque vinha de boleia com uma amiga.
Está bem, pensei comigo mesma. Por mim, estava sempre tudo bem. O Afonso também
tanto lhe fazia. Só a mãe estava numa inquietação cada vez maior. Ela só via o
tempo a passar e nada a andar.
O almoço foi devidamente encomendado, para não haver atrasos e ao meio-dia,
a pontualidade imprevisível da Clara, insistiu, para que tomássemos os nossos
lugares na churrascaria e até fôssemos pedindo o que já estava encomendado,
para não perdermos tempo. Sendo que não poderíamos ir sem a Sara, como é que se
justificava tanta pressa? Era daquelas coisas assaz estranhas! Parecia uma
gozação com o povo. Mas como era a “semana” da Clara, tínhamos que nos ajustar.
Sem comentários.
As sardinhas vieram para a mesa, a salada, o pão, as azeitonas e a Clara,
que ainda não tinha tomado o assento dela, porque andava dentro e fora, fora e
dentro, sem conseguirmos perceber qual era a tarefa, lá veio finalmente e
quando pensávamos que se ia sentar, anunciou que, enquanto esperávamos pela
Sara, que estava quase a chegar(?), ela, Clara, ia dar um pulinho ao horto(?) e
já, já, estaria de volta para o almoço que nós estávamos precisamente a
começar(!?)…
E a mãe e eu olhámos uma para a outra, não querendo acreditar no que
acabávamos de ouvir. Eu, por mim, com as sardinhas à minha frente, queria lá
saber do resto? Mas a mãe estava que não se continha. Incrédula no que acabava
de ouvir, porque o horto não era propriamente ali ao lado. Ficava a uns bons
quilómetros, não sendo precisamente a altura certa para isso, o que a deixou
completamente passada e quase fora de si, tentando controlar-se conforme podia.
Deve ter pensado o mesmo que eu: lá se vai a ida a Troia!... O Afonso sempre de
telemóvel na mão, passava-lhe tudo ao lado. Era como se ali não estivesse.
Agora, até eu já tinha dificuldade em admitir se iríamos à praia ou não.
E lá partiu em direcção ao horto, enquanto nós resolvemos esquecer tudo
para nos concentrarmos nas sardinhas que tínhamos à nossa frente a rir-se para
nós. O resto era o resto. Uma coisa de cada vez. Comendo e saboreando,
descontraindo com uma piada aqui, outra ali, já estávamos na sobremesa, quando
a Clara chegou. O horto estava fechado!? Oh!... A Clara sentou-se e logo de
seguida chegou um carro com duas garotas lá dentro. A Sara acabava de chegar.
As coisas estavam a compor-se.
Eram precisamente cinco horas da tarde quando chegámos à outra margem. Já
tínhamos feito a travessia no barco e caminhávamos agora pelo passadiço que nos
levava à costa, o que não era muito fácil, dadas as dificuldades de locomoção
da mãe. Mas devagar, devagarinho, para ela aguentar a caminhada, dizendo umas
parvoíces para rir e descontrair, lá íamos nós. A Clara ordenou ao Afonso que
abrisse o chapéu de sol e fosse ao lado da avó, para que ela não apanhasse
muito sol. O chapéu era vermelho e a mãe com as suas vestes de praia, enfiada
numa longa túnica de cores vivas, mais parecia um andor numa procissão e nós
atrás, em passos de tartaruga. O Afonso, discreto e descontraído como sempre,
embora com o chapéu aberto, tapava tudo menos a avó e nós ríamos. Ríamos de
tudo.
Chegados ao outro lado, finalmente abancámos e cada um se aninhou na areia
ao seu jeito. A páginas tantas, decidi que me apetecia fazer uma caminhada e
logo a Clara se levantou para me acompanhar. Vendo-nos levantar, a mãe quis
saber se também podia ir. Respondemos que sim, mas fomos andando sem lhe
prestarmos muita atenção e só já muito adiante é que demos pela ausência dela,
deduzindo que teria desistido. Quando chegámos levámos uma enorme rebocada,
porque ela não conseguiu ir no nosso ritmo, e nós nem ao menos tínhamos
esperado por ela. A Clara e eu estávamos cansadas e suadas e fomos para a água,
pelo que todos nos seguiram. E assim se passaram umas horinhas bem passadas,
entre o sol, a água e o descanso. A tarde já ia avançada, pelo que decidimos
levantar o acampamento. Os barcos eram de hora a hora, sendo que de um lado
saíam à hora e do outro à meia hora.
Pegámos na tralha e preparávamo-nos para começar a caminhada de regresso,
quando a Clara disse “esperem… esperem um bocadinho”. Cansados, virámo-nos para
ela para perceber o que seria. E largando a tralha na areia, começou a
despir-se novamente, dizendo que lhe apetecia um último banho. Um último banho,
como se não tivesse já tido banhos suficientes?! Era tudo menos compreensível.
E com toda a calma e descontracção, despiu novamente a roupa que tinha acabado
de vestir, dirigindo-se para a água, onde entrou parecendo uma diva, calma e
tranquilamente, com ar de quem saboreava o seu primeiríssimo banho,
deixando-nos estupefactos e completamente sem reacção. Parecíamos estátuas, ali
especados à espera dela. A mãe estava possessa da vida. As atitudes da Clara
sempre a surpreendiam, como se não conhecesse a própria filha, o que me dava um
imenso gozo.
Finalmente e uma vez mais, iniciávamos a caminhada de volta para o barco. O
sol já se tinha posto e a noite aproximava-se vagarosamente. Estávamos todos
esfomeados, mas até chegar a casa ainda tínhamos bastante que nos aguentar.
Entretanto, havia a feira do artesanato e a Clara queria ir, apesar de mais
ninguém estar interessado. Mas também havia um outlet ocasional no
interior do edifício novo, a que a Sara manifestou vontade de ir. Era certo que
a noite ia ser longa. A mãe só queria saber a que horas chegaria a casa, porque
dava sinais de fadiga. Então, a Clara decidiu que iríamos ao outlet e
depois jantar, dado o adiantado da hora. E mais uma vez a mãe boquiaberta e os
olhos espantadíssimos, olhava para mim como que a pedir socorro. Fazer o quê?
Entrámos no edifício para ir às lojas, mas aí deparámo-nos com um senão. A
entrada era paga e ninguém estava para esses ajustes. Mas a Sara e o Afonso
queriam entrar. As pessoas chegavam, dirigiam-se à bilheteira e entravam.
Enquanto isso, ficámos ali, pensando se valeria a pena ou não, pagar para
entrar. Decidir e não decidir, decidi mesmo sentar-me num dos bancos que
estavam cá fora. Estava morta de fome como todos os outros. A mãe, aproveitando
a minha deixa, sentou-se ao pé mim, sussurrando as coisas do costume: “com esta
rapariga é sempre assim… é tudo uma confusão, não tem horas para nada” … o
costume. E enquanto aguardávamos a decisão da Clara, chegou um grupo grande que
tirou os bilhetes e preparando-se para entrar, a Clara com os dois, um de cada
lado, como quem não quer nada, enfiou-se no meio do grupo e mesmo sem bilhetes,
enfiaram-se todos lá para dentro.
Ups!... Eu e a mãe enfiámos a nossa cara no chão, virámo-nos para o outro lado
fingindo não ver, nem saber de nada e a vergonha consumíamo-nos. Era demais. E
o pior é que agora tínhamos mesmo que esperar, esperar, até que os três se
cansassem de lá estar ou aguardar até ao fecho das vendas, que era às vinte e
uma horas. Era realmente preciso ter muita paciência e a mãe aproveitou para
uma vez mais descascar das atitudes da filha, deitando cá para fora tudo o que
lhe vinha à cabeça.
Olhando para o relógio, já lá ia meia hora. Tanta coisa para ver(?!),
perguntava a mãe. E apareceu outro grupo que se dirigiu à bilheteira para
comprar os bilhetes. A mãe levantou-se dizendo que estava farta. Vagarosamente,
aproximou-se da entrada fingindo que estava a espreitar, e quando o último
grupo entrou, misturou-se no meio deles e fez exactamente o que a Clara tinha
feito. Depois de ter falado o diabo da filha, fez precisamente o mesmo. Eu
estava passada de todo. Aquilo era uma família de desnaturados. Não se podia
confiar mesmo em ninguém. Os empregados da bilheteira olhavam para nós vendo o
número reduzir, reduzir, e pensando sabe-se lá o quê. Pareciam ciganos! Claro
que deram pela entrada sem bilhete da Clara e dos filhos. Claro que deram pela
entrada sem bilhete da mãe. Só restava eu. Eu olhava para o outro lado
fazendo-me de desentendida e distante dali, para não pensarem que era da mesma
laia. E na verdade não sabia mais, se ria ou chorava.
Faltavam quinze minutos para fechar as portas quando o empregado da
bilheteira, dirigindo-se a mim, teve a gentileza de me convidar a entrar, pelo
facto de estar quase a fechar. Apanhada de surpresa e ainda envergonhada, como
quem não quer nada e fazendo-me pouco interessada, respondi com uma certa
displicência que sim e agradeci. Finalmente, agora até eu estava lá dentro. Ao
fim e ao cabo tínhamos entrado todos e sem pagar. Espantoso!
Havia roupa por todos os lados, pendurada, caída no chão, enfim, era mesmo um festival ou uma feira. Uns experimentavam, outros viam as marcas e então dou de caras com o meu pessoal. “Olá Lilly(!)”, disse a Clara. Já vamos embora. Pois, já não era sem tempo, pensei. E só mesmo, porque está na hora de fechar. A Sara comprou um top e o Afonso uma camisola. A mãe já tinha esquecido o cansaço, lamentando não ter encontrado nada para ela. Enfim… sem comentários. O que se seguiria agora?...
O Afonso viu um restaurante de Québab e fez questão de dizer que lhe apetecia jantar québab. Québab, que raio de coisa é essa, pergunta a avó. E todos começaram a rir. Québab, mãe, dizia a Clara, é bom, muito bom. Nunca tal ouvi, respondia. Vamos, dizia a Sara, estou cheia de fome, enquanto todos ríamos dos comentários da avó por causa do québab. Embora lá. Vamos todos ao québab. E os ânimos melhoraram. Entrámos, a Clara foi explicando à mãe o que era, por conta da cara feia que ela fazia e a Sara e o Afonso já se foram sentando.
Cada um com seu québab preferido, demos início ao jantar. Estávamos
todos esfomeados e esfalfados. Não víamos mais nada à frente. A mãe comendo e
comentando as mais diversas coisas... enfim, o costume. Alguns momentos de
silêncio e de repente a Clara lembra-se de que ainda queria ir à feira do
artesanato. Aí, todos os québabs tiveram uma ligeira pausa, enquanto
digeríamos o que ela acabava de dizer. E todos, em silêncio, pensávamos o
mesmo. Ir à feira do artesanato, ainda, àquela hora?! Era assim tão importante?
Até que a Sara quebrou aquele momento de impasse, dizendo que não estava
absolutamente nada interessada em ir à feira do artesanato. Logo de seguida o Afonso
também barafustou. A avó aproveitou a deixa para se tentar impôr, dizendo que
estávamos todos muito cansados e eu fiquei aliviadíssima por não precisar de me
manifestar.
A ideia da Clara era absurda. O tempo para ela não era realmente igual ao
das outras pessoas. Para começar, parecia que nunca se cansava e por aí fora.
Faltavam pouquíssimos minutos para as dez e meia, hora de saída do próximo
barco. E a Clara ainda queria andar cerca de uma hora na feira do artesanato,
para apanharmos o último barco que saía às vinte e três e trinta?! Perante esta
expectativa, ficámos todos com o que restava do québab entalado na boca,
olhando uns para os outros, sem a menor vontade de ficar por ali mais uma hora.
Não, mais uma hora não, nem mais feiras nem mais nada. A esta altura o povo só
queria era chegar a casa e deitar-se. Perante este cenário pouco ou nada
animador, de repente, todos se levantaram ao mesmo tempo e num rompante
impressionante, cada um empurrando a sua cadeira para trás, com uma mão nos seus
pertences e a outra no que restava do québab, desandámos dali a toda a
velocidade, como se fôssemos uns ladrões, ou uns malfeitores, sem ter pago a
conta, correndo o quanto podíamos, para conseguirmos apanhar o barco. A mãe ia
quase de rastos. A Clara dizia, dá-lhe o braço daí que eu dou daqui e o Afonso
vai à frente para pedir ao homem para esperar um pouco, porque vai aqui uma
senhora que tem dificuldade em andar. Mas a mãe, pela primeira vez, nem se
queixava, dando às pernas o quanto podia. Parecíamos autenticamente uns doidos
varridos de todo. Só vendo para crer. E no meio disto tudo ainda ríamos do
caricato da situação. Fazer o quê?
Finalmente estávamos no barco. Um barco muito bom, que nem se percebia que
já tinha saído e que estávamos quase a chegar. Sentados, ninguém falava. Só a
mãe de vez em quando perguntava, “mas nunca mais saímos? Viemos a correr para
quê?” Mas já ninguém respondia e já ninguém ouvia…
Um dia com a Clara e tudo isto num só dia. Uma semana como não seria?!