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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Um dia com a Clara - 23


Era o mês de Agosto e a Clara já andava há algum tempo a dizer que queria ir passar uma semaninha com a mãe a Setúbal. Assim, pegaria na Sara e no Afonso, para também estarem com a avó, e comigo seríamos cinco. A mãe iria apreciar. Depois, estar com a Clara é sempre uma aventura, mas acima de tudo uma grande incógnita. Depende dos “ventos”…

O Verão decorria, os dias passavam e a Clara continuava a falar naquilo que seria uma semana, mas que sempre que falava ia encolhendo. Já não era uma semana mas cinco dias, que depois passaram para três e finalmente encolheu ao ponto de irmos num dia e voltarmos no outro. Uma semana compacta, digamos, porque os acontecimentos, esses seriam extensos, extensos, sem nunca mais acabar.

E o famigerado dia chegou, sendo que até esse foi avançando, avançando… já não podendo ser de manhã, nem depois do almoço e nem à tarde, por isso, à noitinha lá fomos nós finalmente, alegres e contentes buscar a mãe, que não parava de reclamar por causa da semana que tanto tinha encolhido.

Já a caminho de Setúbal, a Clara várias vezes fez notar que no dia seguinte logo de manhã, iríamos para Tróia, portanto, que ninguém se atrasasse. Era quase uma ordem. Contudo, sendo que a Sara não pôde ir connosco por causa de um festival de música qualquer e só no dia seguinte se juntaria a nós em Setúbal, eu já não estava muito bem a perceber como é que ela queria ir logo de manhã bem cedo, a ponto de ter que fazer um aviso prévio. Ainda por cima não sabia a que horas ela chegava. A coisa começava a ficar enrolada, bem ao jeito dela. Mas eu nem me dava ao trabalho de fazer perguntas. Só a mãe estava constantemente a perguntar “e a Sara, quando é que chega?” e a Sara quando é que chega. Mas não havia mesmo resposta para lhe dar, o que muito a enervava.

No outro dia logo de manhã, com efeito, comecei a ouvir a mesma cantilena de que tínhamos que nos despachar. Ainda eu estava na cama já ouvia a Clara com o mesmo disco. Mas a Sara ainda não estava e nem se sabia a que horas chegaria?! Se calhar nem praia ia haver. Mas isso para mim também não importava nada. O certo é que a mãe tinha-se levantado bem cedo para fazer face aos planos furados da Clara. E agora perguntava “então e a Sara quando é que chega”? E a resposta era sempre “não sei”. Posto isto, olhava para mim e entre dentes murmurava “mas esta rapariga é maluca ou quê?”

Por ali ficámos toda a manhã, até que a Clara informou que afinal a Sara só chegava à hora do almoço, pelo que logo a seguir iríamos para Tróia. Mais um aviso à tripulação. E para isso tratou de marcar almoço na churrascaria ao lado de casa, para termos mesa a horas e nos despacharmos para ir, mesmo sem saber ainda bem a que horas chegaria a Sara, porque vinha de boleia com uma amiga. Está bem, pensei comigo mesma. Por mim estava sempre tudo bem. O Afonso também tanto lhe fazia. Só a mãe estava numa inquietação cada vez maior. Ela só via o tempo a passar e nada a andar.

O almoço foi devidamente encomendado para não haver atrasos e ao meio-dia a pontualidade imprevisível da Clara insistiu para que tomássemos os nossos lugares na churrascaria e até fôssemos pedino o que já estava encomendado, para não perdermos tempo. Sendo que não poderíamos ir sem a Sara, como é que se justificava tanta pressa? Era daquelas coisas assaz estranhas. Parecia uma gozação com o povo. Mas como era a “semana” da Clara, tínhamos que nos ajustar. Sem comentários.

As sardinhas vieram para a mesa, a salada, o pão, as azeitonas e a Clara, que ainda não tinha tomado o assento dela, porque andava dentro e fora, fora e dentro, sem conseguirmos perceber qual era a tarefa, lá veio finalmente e quando pensávamos que se ia sentar, anunciou que enquanto esperávamos pela Sara, que estava quase a chegar(?), ela, Clara, ia dar um pulinho ao horto(?) e já, já, estaria de volta para o almoço que nós estávamos precisamente a começar(!)…

E a mãe e eu olhámos uma para a outra, não querendo acreditar no que acabávamos de ouvir. Eu, por mim, com as sardinhas à minha frente, queria lá saber do resto? Mas a mãe estava que não se continha. Incrédula no que acabava de ouvir, porque o horto não era propriamente ali ao lado. Ficava a uns bons quilómetros, não sendo precisamente a altura certa para isso, o que a deixou completamente passada e quase fora de si, tentando controlar-se conforme podia. Deve ter pensado o mesmo que eu, lá se vai a ida a Troia!... O Afonso sempre de telemóvel na mão, passava-lhe tudo ao lado. Era como se ali não estivesse. Agora até eu já tinha dificuldade em admitir se iríamos à praia ou não.

E lá partiu em direcção ao horto, enquanto nós resolvemos esquecer tudo para nos concentrarmos nas sardinhas que tínhamos à nossa frente a rir-se para nós. O resto era o resto. Uma coisa de cada vez. Comendo a saboreando, descontraindo com uma piada aqui, outra ali, já estávamos na sobremesa quando a Clara chegou. O horto estava fechado!? Oh!... A Clara sentou-se e logo de seguida chegou um carro com duas garotas lá dentro. A Sara acabava de chegar. As coisas estavam a compôr-se.

Eram precisamente cinco horas da tarde quando chegámos à outra margem. Já tínhamos feito a travessia no barco e caminhávamos agora pelo passadiço que nos levava à costa, o que não era muito fácil, dadas as dificuldades de locomoção da mãe. Mas devagar, devagarinho, para ela aguentar a caminhada, dizendo umas parvoíces para rir e descontrair, lá íamos nós. A Clara ordenou ao Afonso que abrisse o chapéu de sol e fosse ao lado da avó para que ela não apanhasse muito sol. O chapéu era vermelho e a mãe com as suas vestes de praia, enfiada numa longa túnica de cores vivas, mais parecia um andor numa procissão e nós atrás, em passos de tartaruga. O Afonso, discreto e descontraido como sempre, embora com o chapéu aberto, tapava tudo menos a avó e nós ríamos. Ríamos de tudo.

Chegados ao outro lado, finalmente abancámos e cada um se aninhou na areia ao seu jeito. A páginas tantas, decidi que me apetecia fazer uma caminhada e logo a Clara se levantou para me acompanhar. Vendo-nos levantar, a mãe quis saber se também podia ir. Respondemos que sim, mas fomos andando sem lhe prestarmos muita atenção e só já muito adiante é que demos pela ausência dela, deduzindo que teria desistido. Quando chegámos levámos uma enorme rebocada porque ela não conseguiu ir no nosso ritmo, e nós nem ao menos tínhamos esperado por ela. A Clara e eu estávamos cansadas e suadas e fomos para a água, pelo que todos nos seguiram. E assim se passaram umas horinhas bem passadas, entre o sol, a água e o descanso. A tarde já ia avançada, pelo que decidimos levantar o acampamento. Os barcos eram de hora a hora, sendo que de um lado saíam à hora e do outro à meia hora.

Pegámos na tralha e preparávamo-nos para começar a caminhada de regresso, quando a Clara disse “esperem… esperem um bocadinho”. Cansados, virámo-nos para ela para perceber o que seria. E largando a tralha na areia começou a despir-se novamente, dizendo que lhe apetecia um último banho. Um último banho, como se não tivesse já tido banhos suficientes?! Era tudo menos compreensível. E com toda a calma e descontracção, despiu novamente a roupa que tinha acabado de vistir, dirigindo-se para a água, onde entrou parecendo uma diva, calma e tranquilamente, com ar de quem saboreava o seu primeiríssimo banho, deixando-nos estupefactos e completamente sem reacção. Parecíamos estátuas, ali especados à espera dela. A mãe estava possessa da vida. As atitudes da Clara sempre a surpreendiam, como se não conhecesse a própria filha, o que me dava um imenso gozo.

Finalmente e uma vez mais iniciávamos a caminhada de volta para o barco. O sol já se tinha posto e a noite aproximava-se vagarosamente. Estávamos todos esfomeados, mas até chegar a casa ainda tínhamos bastante que nos aguentar. Entretanto havia a feira do artesanato e a Clara queria ir, apesar de mais ninguém estar interessado. Mas também havia um outlete ocasional no interior do edifício novo, a que a Sara manifestou vontade de ir. Era certo que a noite ia ser longa. A mãe só queria saber a que horas chegaria a casa porque dava sinais de fadiga. Então a Clara decidiu que iríamos ao outlet e depois jantar, dado o adiantado da hora. E mais uma vez a mãe boquiaberta e os olhos espantadíssimos, olhava para mim como que a pedir socorro. Fazer o quê?

Entrámos no edifício para ir às lojas, mas aí deparámo-nos com um senão. A entrada era paga e ninguém estava para esses ajustes. Mas a Sara e o Afonso queriam entrar. As pessoas chegavam, dirigiam-se à bilheteira e entravam. Enquanto isso, ficámos ali, pensando se valeria a pena ou não, pagar para entrar. Decidir e não decidir, decidi mesmo sentar-me num dos bancos que estavam cá fora. Estava morta de fome como todos os outros. A mãe, aproveitando a minha deixa, sentou-se ao pé mim, sussurrando as coisas do costume “com esta rapariga é sempre assim… é tudo uma confusão, não tem horas para nada”… o costume. E enquanto aguardávamos a decisão da Clara, chegou um grupo grande que tirou os bilhetes e preparando-se para entrar, a Clara com os dois, um de cada lado, como quem não quer nada, enfiou-se no meio do grupo e mesmo sem bilhetes, enfiaram-se todos lá para dentro.

Ups! Eu e a mãe enfiámos a nossa cara no chão, virámo-nos para o outro lado fingindo não ver, nem saber de nada e a vergonha consomíamo-nos. Era demais. E o pior é que agora tínhamos mesmo que esperar, esperar, até que os três se cansasssem de lá estar ou aguardar até ao fecho das vendas que era às vinte e uma horas. Era realmente preciso ter muita paciência e a mãe aproveitou para uma vez mais descascar das atitudes da filha, deitando cá para fora tudo o que lhe vinha à cabeça.

Olhando para o relógio, já lá ía meia hora. Tanta coisa para ver, perguntava a mãe. E apareceu outro grupo de se dirigiu à bilheteira para comprar os bilhetes. A mãe levantou-se dizendo que estava farta. Vagarosamente, aproximou-se da entrada fingindo que estava a espreitar, e quando o último grupo entrou, misturou-se no meio deles e fez exactamente o que a Clara tinha feito. Depois de ter falado o diabo da filha, fez precisamente o mesmo. Eu estava passada de todo. Aquilo era uma família de desnaturados. Não se podia confiar mesmo em ninguém. Os empregados da bilheita olhavam para nós vendo o número reduzir, reduzir, e pensando sabe-se lá o quê. Pareciam ciganos! Claro que deram pela entrada sem bilhete da Clara e dos filhos. Claro que deram pela entrada sem bilhete da mãe. Só restava eu. Eu olhava para o outro lado fazendo-me de desentendida e distante dali, para não pensarem que era da mesma laia. E na verdade não sabia mais se ria ou chorava.

Faltavam quinze minutos para fechar as portas quando o empregado da bilheteira, dirigindo-se a mim, teve a gentileza de me convidar a entrar, pelo facto de estar quase a fechar. Apanhada de surpresa e ainda envergonhada, como quem não quer nada e fazendo-me pouco interessada, respondi com uma certa desplicência que sim e agradeci. Finalmente, agora até eu estava lá dentro. Ao fim e ao cabo tínhamos entrado todos e sem pagar! Espantoso.

Havia roupa por todos os lados, pendurada, caída no chão, enfim, era mesmo um festival ou uma feira. Uns experimentavam, outros viam as marcas e então dou de caras com o meu pessoal “olá Lilly” disse a Clara. Já vamos embora. Pois, já não era sem tempo, pensei. E só mesmo porque está na hora de fechar. A Sara comprou um top e o Afonso uma camisola. A mãe já tinha esquecida o cansaço, lamentando não ter encontrado nada para ela. Enfim… sem comentários.

O que se seguiria agora? O Afonso viu um restaurante de Québab e fez questão de dizer que lhe apetecia jantar québab. Québab, que raio de coisa é essa, pergunta a avó. E todos começaram a rir. Québab, mãe, dizia a Clara, é bom, muito bom. Nunca tal ouvi, repondia. Vamos, dizia a Sara, estou cheia de fome, enquanto todos ríamos dos comentários da avó por causa do québab. Embora lá. Vamos todos ao québab. E os ânimos melhoraram. Entrámos, a Clara foi explicando à mãe o que era, por conta da cara feia que ela fazia e a Sara e o Afonso já se foram sentando.

Cada um com seu québab preferido, demos início ao jantar. Estávamos todos esfomeados e esfalfados. Não víamos mais nada à frente. A mãe comendo e comentando as mais diversas coisas, enfim, o costume. Alguns momentos de silêncio e de repente a Clara lembra-se de que ainda queria ir à feira do artesanato. Aí, todos os québabs tiveram uma ligeira pausa, enquanto digeríamos o que ela acabava de dizer. E todos em silêncio pensávamos o mesmo. Ir à feira do artesanato, ainda, àquela hora? Era assim tão importante? Até que a Sara quebrou aquele momento de impace, dizendo que não estava absolutamente nada interessada em ir à feira do artesanato. Logo de seguida o Afonso também barafustou. A avó aproveitou a deixa para se tentar impôr, dizendo que estávamos todos muito cansados e eu fiquei aliviadíssima por não precisar de me manifestar.

A ideia da Clara era absurda. O tempo para ela não era realmente igual ao das outras pessoas. Para começar, parecia que nunca se cansava e por aí fora. Faltavam pouquíssimos minutos para as dez e meia, hora de saída do próximo barco. E a Clara ainda queria andar cerca de uma hora na feira do artesanato para apanharmos o último barco que saía às vinte e três e trinta?! Perante esta expectativa ficámos todos com o que restava do québab entalado na boca, olhando uns para os outros, sem a menor vontade de ficar por ali mais uma hora. Não, mais uma hora não, nem mais feiras nem mais nada. A esta altura o povo só queria era chegar a casa e deitar-se. Perante este cenário pouco ou nada animador, de repente, todos se levantaram ao mesmo tempo e num rompante impressionante, cada um empurrando a sua cadeira para trás, com uma mão nos seus pertences e a outra no que restava do québab, desandámos dali a toda a velocidade, como se fôssemos uns ladrões, ou uns malfeitores, sem ter pago a conta, correndo o quanto podíamos, para conseguirmos apanhar o barco. A mãe ia quase de rastos. A Clara dizia, dá-lhe o braço daí que eu dou daqui e Afonso vai à frente para pedir ao homem para esperar um pouco porque vai aqui uma senhora que tem dificuldade em andar. Mas a mãe, pela primeira vez nem se queixava, dando às pernas o quanto podia. Pareciamos autenticamente uns doidos varridos de todo. Só vendo para crer. E no meio disto tudo ainda ríamos do caricato da situção. Fazer o quê?

Finalmente estávamos no barco. Um barco muito bom que nem se percebia que já tinha saído e que estávamos quase a chegar. Sentados, ninguém falava. Só a mãe de vez em quando perguntava “mas nunca mais saímos? Viemos a correr para quê?” Mas já ninguém respondia e já ninguém ouvia…

Um dia com a Clara e tudo isto num só dia. Uma semana como não seria?!