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sábado, 27 de julho de 2019

O gesto é tudo - 49


Eram quatro horas da tarde e levantei-me para ir à casa de banho. Quando cheguei ao corredor de acesso comecei a ouvir vozes que logo identifiquei: a Cristina e a Maria João. E apesar de não estar consciente do teor da conversa, mesmo sem querer, apanhei a questão.

Não raras vezes, as coisas que se passam ao nosso redor nos escapam, sobretudo se forem coisas que não nos dizem nada ou que não sejam connosco. Contudo, ao mais pequeno pormenor que capte a nossa atenção, percebemos que afinal o nosso subconsciente absorveu tudo, ainda que sem consciência disso. É uma espécie de armazém que guarda em stock e que vai buscar apenas se for necessário. E foi isso mesmo que aconteceu. Eu ouvia apenas vozes mas não me tinha apercebido de que estava a fazer parte do seu contexto.

E de repente lembrei-me de uma cena idêntica. A situação era exactamente a mesma, mas com outros actores em cena. Eu vou no corredor para ir à casa de banho e ainda cá fora começo a ouvir duas colegas. Uma falava de uma personagem feminina muito em voga na altura, uma socialite cujo nome não vem ao caso e que naquele momento também não foi pronunciado pela pessoa que dela falava, que tinha aparecido na televisão, etc, etc, etc… mas a outra a quem ela se dirigia não identificava. Não querendo dizer o nome, a Ana dizia no preciso momento em que entrei na casa de banho, “aquela parva”…  e ao dizer estas palavras, imediatamente passou na minha mente a imagem da pessoa em causa. Mas perante a descrição de “aquela parva”, a outra não identificava de maneira nenhuma e a Ana continuou “sim… a que anda com o outro”… e uma vez mais passou na minha mente a imagem do tal “outro”, com toda a nitidez. “Oh, sei lá quem é a que anda com o outro!”… resmungava a colega. Neste momento, acabada de entrar no mesmo espaço físico, esclareci imediatamente o assunto, dizendo o nome da “parva”, bem como o do “outro” em questão. A Ana que já estava impertinente, talvez pela falta de perspicácia da colega, respondeu logo “pois claro, vê lá se ela – referindo-se à minha pessoa – não percebeu logo”? Era preciso dizer os nomes?!

Pensando bem, talvez não fosse assim tão evidente, pois há sempre personalidades em badalação a dar que falar, pelo que podiam sem outros personagens. O facto é que pelo jeito dela falar, imputando-lhe uma conotação de um certo desprezo, a imagem passou imediatamente na minha frente. Podiam ser milhentas, é verdade. Mas aquela era a pessoa de quem se falava na actualidade. Ainda assim, podia ser outra. O facto é que eu apanhei. E mesmo quando a Ana disse “que anda com o outro”, também podiam ser imensas. Mas a Ana referia-se a uma determinada pessoa e foi essa que eu visualizei. E é claro que não foi por acaso. A minha capacidade telepática estava cem por cento receptiva, coisa muito normal em mim.

Neste momento a cena era a mesma ou muito idêntica, só que o assunto era trabalho e o outro não. A Cristina precisava de resolver um problema e a Maria João dizia-lhe que tinha que ir falar com uma colega da televisão, porque elas eram da rádio, e estava a explicar-lhe quem era. Mas a Cristina não chegava lá. E por mais precisas que fossem as indicações ela não conseguia saber, respondendo sempre o mesmo, que não sabia quem era. A Maria João insistia em “uma que costuma ir almoçar com…, que faz…, que vai…, que e que… mas a Cristina não via nada. As duas já estavam cansadas, uma por explicar, a outra por não conseguir perceber. E então eu entro e sem dizer uma única palavra, faço uma exibição, imitando a outra que ela dizia que não sabia quem era. Levo as mãos um pouco à frente do peito, uma ao lado da outra, com os dedos um pouco expostos. Coloco um pé à frente do outro, a cabeça empinada e o nariz no ar, enquanto me vou virando à direita e à esquerda… e… fez-se luz. A Cristina deu um grito “Ah, já sei!”… e disse já sei, de um modo que queria dizer que estava farta de saber quem era. Claro!...

A Maria João passou-se de todo e reclamava “olha para esta… estou eu aqui há horas a dar todas as explicações detalhadas e nada. Chega esta, dá dois passos e já sabe!”... A Cristina ria, ria e dizia “pois, com os gestos que ela fez”!...

Sem dúvida, o gesto é tudo.