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quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Mohamed - 62

 

Mohamed era paquistanês com nacionalidade inglesa. E como um bom muçulmano, fazia questão de ser tratado por “Mohamed”, esquecendo por completo o seu nome. É que assim ninguém teria dúvidas quanto às suas origens. E fazia parte de uma equipa de técnicos ingleses contratados pela RTP, para a instalação do novo Estúdio com equipamento todo moderno àquela data.

Eu acabava de  chegar do Hare Krisnha, onde tinha ido almoçar, e onde de vez em quando ia, para variar a comida. Por acaso havia arroz indiano que eu adoro e decidi levar um prato para me deliciar ao lanche. Ao entrar na RTP dirigi-me imediatamente ao novo estúdio onde encontraria Mohamed, a fim de partilhar com ele o meu precioso arroz, pois calculei que ele o apreciaria tanto quanto eu.

Mahomed não saía daquele estúdio nem por nada. Os outros cumpriam um horário, saíam para ir almoçar, para ir jantar, etc…, Mohamed não arredava pé enquanto não terminasse a tarefa a que se tinha proposto e assim passava os dias ali enfiado, quase sem comer nem dormir. Sem comer, porque não comia da nossa comida. Sem dormir, por conta das largas horas em que se embrenhava. Tinha o computador pessoal sempre ligado apenas para falar com a mulher e os filhos pequenos e matar saudades.

Agora trabalhava sozinho. A equipa tinha-se ido embora, só ele ficara. Todo o trabalho estava por sua conta. A única pessoa com quem falava era comigo. Negava-se a falar com quer que fosse.

O dia anterior tinha sido um pesadelo. O Director reuniu com os subdiretores e segundo eles, Mohamed tinha criado um problema. Um problema não, um problemão. E como intermediária fui imediatamente chamada. Eu não conseguia compreender porque não falavam directamente com ele ou porque não mandavam um técnico? Melhor ou pior, toda a gente falava inglês. Seria preconceito por ele ser muçulmano? O facto é que foi em mim que delegaram as conversações. É certo que eu era secretária de Direcção, mas ainda assim não seria só por isso. Provavelmente achavam-se todos bons demais para falar com um reles técnico de manutenção de televisão de origens pouco desejáveis, de acordo o o padrão deles. Mas o rapaz até tinha nacionalidade inglesa!?...

Enfim, o certo é que o material tinha chegado num camião TIR que, conforme ordens expressas de Mohamed, estava estacionado mesmo à porta principal do edifício da RTP. E isso implicava muita coisa indesejável. Interrupção de trânsito em plena Avenida 5 de Outubro e àquela hora! A qualquer que fosse a hora já era mau, mas às seis horas da tarde era péssimo. Seria mesmo necessário ordem policial para desviar o trânsito, o que causaria aos condutores um enorme transtorno.

E lá tinha que ir eu levar o recado. É claro que eu chegava ao pé dele e não dizia que sua excelência o meu director não queria o camião TIR à porta. Eu chegava e dizia-lhe muito simplesmente “aqueles idiotas” não querem o camião TIR aqui. Mas isso eles não sabiam nem tinham que saber. E Mohamed estava-se nas tintas. Ele queria e quem mandava era ele. Estava-se nas tintas para quem quer que fosse. E a bem da verdade, também se recusava a falar fosse com quem fosse, a não ser comigo. Dizia que não queria conversas com ninguém, apenas tinha que fazer o trabalho dele e ninguém lhe dava ordens. Realmente eu seria a última pessoa a dar-lhe ordens. Era apenas portadora delas, que eram mais mensagens que outra coisa. Mas agora a questão ia um pouco mais além. Era preciso dissuadi-lo a encontrar uma solução para meter os equipamentos no interior do edifício sem que o camião tivesse que estacionar à porta. Para isso teriam que vir em carrinhas pequenas, transferidos do camião parqueado num sítio que não perturbasse a ordem pública, para então se dirigirem à RTP e descarregarem os equipamentos.

E quem disse que Mohamed queria isso? Ele dizia que os equipamentos eram muito sensíveis e não podiam andar a passar de um lado para o outro. Portanto, essa hipótese estava completamente fora de questão.

Muito bem. Percebi, tomei nota e voltei aos meus superiores hierárquicos para lhes comunicar a decisão dele e o motivo da recusa em retirar o camião da porta da RTP. Os três ficaram lixados, por assim dizer, não sabendo mesmo o que fazer. A questão era tão delicada que começaram a implorar-me que o convencesse a dissuadi-lo. Apelaram para o facto de ele se entender muito bem comigo e da necessidade de não serem eles a interferir para não haver problemas e chatices a outro nível. Acontece que eu também achava que não tinha nada que me chatear por causa dum problema daqueles que, verdadeiramente, não me dizia respeito. Só porque ele estava englobado na minha direcção? O director e subdiretores e quem quer que fosse mais, que se metessem ao barulho. Mas ele a si ouve-a, diziam eles. E uma espécie de chantagem emocional começou a eclodir…

Uns anos atrás, uma outra situação análoga também surgiu com um rapaz dos países de leste que esteve a fazer um estágio na RTP e como era técnico de manutenção, foi dado à nossa direcção. E surgiram tantos problemas, que o coitado vinha ter comigo a queixar-se, sendo que uma vez até as lágrimas lhe vieram aos olhos. Os colegas não reagiram nada bem à sua presença. Implicavam com ele por tudo e por nada, criando à sua volta um mau ambiente desgraçado. A verdade é que lhe dificultavam imenso a vida só porque ele era estrangeiro. E como  fazia parte do meu nipe administrativo, era comigo que ele vinha ter e era comigo que desabafava. Era a única pessoa que lhe dava algum apoio. Para mim é indiferente a nacionalidade, a raça, a etnia ou até mesmo a religião de cada um. E sinto-me completamente à vontade se tenho que conviver com quem quer que seja, desde que me respeitem, só isso. Quanto ao resto está tudo bem. Por isso não entendo estas situações. Conviver com outros diferentes de nós é até enriquecedor. Não temos que ser todos iguais!

E Mohamed continuava a bater o pé que quem mandava era ele. O trânsito na Avenida estava parado. Liguei para a Logística para chamarem a polícia de trânsito que decidiria o que bem entendesse e lavei as mãos desse assunto entre superiores e Mohamed. Essas não eram as minhas funções. E assim se fez, para que ambas as partes se acalmassem. A polícia conduziu o trânsito por outra via e o camião descarregou todo o material com a segurança necessária que Mohamed fez questão de exigir e tudo se acalmou.

O facto é que durante os largos meses em que esteve lá a trabalhar, o assunto Mohamed, de ambas as partes, era recambiado para mim. Ninguém queria ter contactos com ele. Nunca ninguém percebeu que ele era apenas eficiente e responsável e que não estava ali para agradar a ninguém, a não ser para fazer o trabalho para o qual tinha sido pago e incumbido sem falha e sem erro.

E estava eu de prato na mão quando entrou um colega que, com jeito de quem fareja alguma coisa e não encontrando o que procurava, me perguntou como se diria ferro de soldar em inglês. De soldar eu não fazia a menor ideia, por isso limitei-me a dizer “iron”(?) e logo Mohamed se dirigiu ao lugar certo, empunhando um ferro de soldar, que passou para a mão do outro. Este agradeceu ao mesmo tempo que desdenhava o facto de não se ter lembrado de dizer o mesmo que eu, ou seja “iron”, simplesmente. E foi-se.

Foi então que Mohamed deu conta do prato de arroz que estava na minha mão. Olhando, logo percebeu do que se tratava e esfomeado, sem mais delongas agradeceu, passando das minhas mãos para as dele. A minha ideia era dividir com ele, mas ele já tinha decidido e agora eu já não tinha coragem para lhe dizer nada. E num instante, perante o meu olhar de espanto, o arroz desapareceu. Desapareceu da minha mão e desapareceu da minha vista porque ele o devorou com uma sofreguidão e tanto. O meu delicioso arroz lá se foi…

Mas tudo bem. A minha boa acção do dia estava feita.

Outros dias viriam e mais arroz indiano eu haveria de conseguir, com ou sem Mohamed.