“Danielzinho”
… Danielzinho… dizia a rapariga loura, bonita, de olhos azuis e pele muito
branca. Parecia uma nórdica. De trato fino, comedida e educada, de onde teria
ele desencantado aquela angélica criatura?! Sim, porque precisava de ser um
anjo para aturar o Daniel. Sentados à mesa, frente a frente, os gestos dele,
amplos, descoordenados e desajeitados, para não dizer abrutalhados, com algo de
agressivo, estavam em completa discordância com os dela. A vida tem destas
coisas, aparentemente estranhas e eu não conseguia desviar o olhar e a atenção
deles, porque aquilo não encaixava. Havia ali uma disparidade muito grande. E
já a tinha visto várias vezes ali, a almoçar com ele no refeitório da RTP, o
que me intrigava ainda mais.
Daniel era
engenheiro. Tinha sido aluno dos Pupilos do Exército, onde tirou o curso, mas
qualquer incidente na sua vida o tinha perturbado tanto que se tornara um
psicopata. Passava a vida encharcado em medicamentos e era uma lista
interminável de antidepressivos e ansiolíticos, que nunca mais acabava. Tinha
coisas estranhas, atitudes e… todo ele era estranho. Olhando uma primeira vez,
era uma pessoa normal e até era engraçado, bem parecido, mas depois, quando
começava a falar, logo se percebia que ali havia coisa. Alguns chamavam-lhe o
“maluco”, mas ele não era maluco. Era descompensado, isso sim e à conta disso
levava por arrasto uma série de maluquices sem conta. Também havia quem tivesse
medo dele, mas não era caso para tanto, embora, em boa verdade, não possa dizer
que fosse totalmente inofensivo. Estou a lembrar-me, por exemplo, de uma altura
em que todos os dias ele ia à Mesquita, à hora do almoço e vinha contar-me
aquilo com um ar triunfante, que me dava um sinal de alerta, quero dizer, de
que algo se passava; aquilo queria dizer alguma coisa. Com efeito, descobri
pouco tempo depois, que ele ia à mesquita àquela hora para tirar partido do
almoço de borla, à custa dos muçulmanos que, quando se aperceberam disso, logo
trataram de correr com ele, claro. Por isso, o ser inofensivo dele não era
evidente tanto assim. Daniel era astuto e tinha a mania que era esperto, o que
fazia com que sempre acabasse por se dar mal, que é o que geralmente acontece
com gente desta natureza e muito especialmente com ele, pelos problemas que já
tinha.
Um dia
ofereceu-se para ir jantar comigo. Digo, ofereceu-se, porque eu sabia de
antemão que não era um convite. Ele não seria capaz dessa proeza e além disso
nunca tinha dinheiro. Mas fui, até porque ele não tinha amigos, nem ninguém que
se interessasse por ele. Claro que por esta altura, a rapariga loura que era
namorada dele, já tinha ido à vida. Era duro aturá-lo. Durante o jantar, Daniel
fez tanta cena, disse tanto disparate, que só me apetecia dar-lhe um tabefe e
ir-me embora. A meio do jantar, disse-me que tinha feito um óptimo negócio.
Fiquei a olhar para ele à espera do que seria um óptimo negócio. Em pleno
jantar, descalça um sapato, que coloca sobre a mesa e metendo a mão dentro do
sapato, saca da palmilha nojenta, fedorenta, dizendo-me para sentir o toque. Eu
olhei para ele aterrada com tamanho disparate. Seria possível que aquela
criatura não se desse conta do que estava a fazer!? Como era possível ser tão
desprovido de sensatez, de ética e não ter a noção de que há coisas que não se
fazem em hipótese alguma, sendo que aquela era uma delas? Estávamos a jantar, o
sapato estava sujo e cheirava mal e ele metia a mão em cima da palmilha, sem
quaisquer escrúpulos e queria que eu fizesse o mesmo?! A minha vergonha era
tanta que me apetecia dizer em voz alta “não conheço este senhor de lado nenhum
e não tenho nada a ver com ele!”. Mas era tarde, agora tinha que gramar, senão,
o que faria eu com ele ali a jantarmos na mesma mesa?...
Mas então
o excelente negócio que havia feito é que aquela horrorosa palmilha, que só de
olhar para ela já me dava náuseas, segundo ele, fazia uma série de coisas ao
mesmo tempo, tais como: massagem, relaxamento, fisioterapia e o rol nunca mais
acabava. Fazendo as contas a cada uma das especialidades da dita cuja, aí estava
o óptimo negócio que ele tinha feito. E nem se levantou para ir lavar as mãos…
eu já não o podia ver nem ouvir. E nem vou enumerar nem contar a série de
asneiras que continuavam sem parar.
Daniel
trabalhava nas instalações do Campo Grande, que um dia foram encerradas e por
isso foi transferido para a sede da RTP na Avª 5 de Outubro, tendo ficado sob a
chefia do engenheiro RS, uma pessoa espectacular, um excelente profissional,
educado, fino, de muito bom trato, uma pessoa a quem não havia o que apontar.
Mas, para seu azar, Daniel ficou colocado no mesmo gabinete dele, o que passou
a ser uma dor de cabeça para o engenheiro. Certo dia em que o chefe não estava lá,
por ter saído em serviço, Daniel fechou a porta e trancou por dentro. Para quê?
Para dormir, certamente, mas primeiro tratou de pôr uns pauzinhos de incenso,
provavelmente para o ajudarem a adormecer, o que aconteceu, claro, só que o
fumo saía por debaixo da porta e foi preciso chamar a segurança para a abrir e
perceber o que se estava a passar. Daniel acordou muito confuso e com a voz
toda embargada disse que estava a "meditar"… enfim… só se esqueceu de
que estava a trabalhar, mas isso era para esquecer.
Mas o pior
de tudo… Daniel teve que deixar o apartamento onde morava para se mudar para
casa dos pais que tiveram que o receber embora sem o mobiliário, porque não
tinham espaço para isso e talvez nem precisassem. Então, andava muito agoniado
por conta desse problema que tinha que resolver. Um dia, falou com o chefe,
dizendo que precisava de levar os móveis para a RTP(?), porque estava sem casa.
Perante tal disparate o engenheiro fez de conta que não ouviu, porque ficou tão
irritado e enervado com o assunto que saiu a falar sozinho para não ter que
disparatar com ele. E vinha pelo corredor fora dizendo umas asneiras que não
faziam nada o género dele, sempre muito bem comportado. “É maluco, é doido e
agora tenho que aturar isto)?)”, etc..., etc…
O facto é
que um belo dia ligaram da recepção, dizendo que estava uma carrinha de
mudanças à porta da RTP com mobiliário para entregar no gabinete do senhor engenheiro
RS, da parte de quem?... O resto é fácil de adivinhar…