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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

O Henrique nasceu - 39


No dia sete de setembro de 1980 eu estava em apuros. Mas os apuros já tinham começado cerca de nove meses antes, quando um dia disse ao meu marido: “acho que estou grávida”. Faltava uma semana para o período menstrual aparecer, mas eu sabia que estava grávida. A resposta dele, contudo, não se fez esperar e bem ao seu estilo, disse simplesmente: “hum? É impressão tua…” pois claro, era sempre tudo impressão minha. O facto é que passaram os dias e o período menstrual não aparecia e como tal, decidi ir ao médico e fazer as análises necessárias.

Numa manhã bem cedo, antes de ir trabalhar, recolhi a urina numa garrafa de plástico para ir ao laboratório, mas como devia ser apenas impressão minha, o meu marido que era muito boa pessoa, mas nunca facilitava a minha vida, decidiu que preferia ficar a dormir. E quanto a isso não havia nada a fazer. Barafustei, mas de nada serviu. Lá fui, toda nervosa, com a garrafa da urina que coloquei no banco da frente ao lado do condutor, amparada com o meu saco de mão, com todo o cuidado possível a fim de não se entornar, porque eu queria fazer as análises o mais rápido possível para ter a certeza do que eu já tinha. Mas precisava de ter o branco no preto e o preto no branco para começar a tomar providências.

As ruas de Ponta Delgada, S. Miguel (Açores), valha-me Deus(!), era só empedrado e o centro histórico todo muito estreito, com os carros estacionados à balda. Passar pelas ruelas com curvas, pouco a pouco vira à direita, vira à esquerda, era um inferno. Nessa altura, ainda não tinham direcção assistida, o que não facilitava e eu, nervosa para chegar lá, fazer o teste e esperar pelo resultado… numa curva logo ao entrar na rua, com carros estacionados pela berma, fui apanhada de surpresa e para não bater, dei uma guinada rápida, esquecendo-me completamente da urina. Pronto, o frasco foi parar ao chão. Aflita, para não perder a urina, descorei a direcção e fui justo bater no que estava estacionado na entrada da rua. Apanhei o frasco e o carro parou enfaixado no outro que estava parado, pum(!)… estava feita. O dia estava a começar bem. O outro na cama, no sono dos justos e eu feita num oito àquela hora da manhã. Tombei a cabeça sobre o volante com os braços em volta e aí fiquei, sem querer pensar em nada. Só queria não ser eu e não estar ali e… e… e…

Embrulhada nesta confusão, ouço uma voz de homem com uma pronúncia bem cerrada, tipicamente açoriana, numa gritaria histérica, como se tivesse morrido alguém e abrindo a porta de casa, sai na minha direcção aos gritos, pondo-me mais nervosa do que já estava. E o outro em casa a dormir, descansado da vida, sem se ralar com nada. Levantei a cabeça que estava sobre o volante quando ouvi as insistentes batidas no vidro da janela do carro. O Ferreira – que naquela altura eu ainda não conhecia -, com as mãos à cabeça, começa a desboninar: “tá doida? Nã viu o que fez”? Deu cabo do carro do mê pai!”

Disse-lhe que não se preocupasse porque o seguro tratava disso. Mas ele não queria saber, só estava ralado com o carro do pai. E começou a fazer perguntas estúpidas, por exemplo, porque tinha feito aquilo. Respondi-lhe entre o choro que, como era óbvio, não tinha sido de propósito. Tinha sido acidental. Que estava nervosa, caso ele ainda não tivesse percebido. Que ía a caminho do laboratório e que o meu marido não se tinha prontificado para me acompanhar. Aí, o Ferreira – que eu ainda não sabia quem era - já começou a acalmar e a pedir-me também para me acalmar. Ele era muito engraçado. Depois, tornou-se num dos melhores amigos, que faria parte de muitas das nossas grandes aventuras pela vida fora, mas naquela altura era um estranho.

Mas quando lhe disse que ia para o laboratório fazer análises, logo baixou a guarda, perguntando com um ar muito constrangido, se estava doente. Respondi que, em princípio, estaria grávida, mas que estava nervosa. Então ele cedeu, parou definitivamente de resmungar comigo e começou a ter pena duma mulher sozinha, indefesa, desprotegida do marido. Até lamentou o facto dele não ter querido acompanhar-me. E ainda sem saber quem eu era, retorquiu “ai o sacana, ficou dormindo, na querem lá ver!” E então, a curiosidade foi maior e resolveu perguntar: “mas quem é o sê marido?” Disse-lhe quem era e ele olhou para mim com uma expressão que nunca mais esqueço, com os olhos muito abertos, repetindo o nome dele, nem queria acreditar no que ouvia. “Ah… deixa estar, ê digo-lhe como é… então ficou na cama em vez de se levantar e ir contigo?”… aí já me tratava por tu, com grande intimidade. E como se nos conhecêssemos há muito tempo, disse: “vamos lá a casa, quê vô fazê esse malandro se lavantá e é agora”…

Bem, lá fomos, porque o carro, apesar da batida, andava. E foi ele conduzindo por conta do meu estado de nervos. E chegando a casa lá foi tirar o outro da cama que acabou por ir comigo às análises, já quase a fechar a porta do laboratório. E os dois ora riam ora se insultavam, ora praguejavam ora gracejavam. Enfim, tinha que me habituar a tudo aquilo, àquela gente, àquelas situações e percalços inusitados. E uns dias depois lá veio o resultado da análise que dava a gravidez como confirmadíssima. Fora de questão ser apenas “impressão minha”…

E, como eu ia dizendo, no dia sete de setembro de 1980, estava eu na clínica onde o meu filho nasceu. Já o chegar à clínica foi outra cegada. Uma confusão dos diabos.

Era uma sexta-feira à noite e estávamos com um grupo de amigos muito chegados, quase família. Nesse fim de semana o meu marido estaria de emissão, o que significava que trabalhava sábado e domingo pela noite dentro. Eu estava cansada e ia aproveitar para descansar. Diziam-me para tirar férias de parto e ficar em casa, mas eu preferia deixar todo o tempo possível para depois do nascimento, a fim de ficar com o meu filho o máximo de tempo antes de regressar ao trabalho. Os nossos amigos iam passar o fim de semana algures no Alentejo e insistiam para eu ir com eles. Precavida como sempre fui, achei que a partir daquele momento tinha que ficar atenta, pois acabava de entrar nos dez dias antes da data prevista pelo médico. E diziam ah, hão-de passar os dez dias e mais outros tantos e tu à espera… é o primeiro filho… é sempre assim (ou quase sempre).

O facto é que eu disse “não, obrigada, mas não vou. Daqui não arredo pé. Se ele decidir nascer quero ser assistida pelo meu médico”. E riam. Deixá-los rir, pensava eu. Ninguém me dizia o que eu havia de fazer(!). E assim, contra tudo e todos, fiquei no meu canto. Isto foi numa sexta-feira. No sábado seguinte quando acordei, eram umas sete horas da manhã, senti uma forte vontade de fazer xixi. Queria dormir mais, mais a bexiga não deixava, não dava tréguas. Contrariada, levantei-me para ir à casa de banho. E voltei para a cama, supostamente para continuar o meu precioso sono. Mal fechei os olhos a bexiga começou novamente a dar sinal e pensei “o que raio é isto que não me dá sossego, quero dormir e não consigo?!”

E mais uma vez me levantei para ir à casa de banho, mas não saía xixi. De repente começo a ver uma água a correr pelas pernas abaixo e em seguida, a água ensanguentada. Pensei mais uma vez “que raio é isto?” Mas logo se fez luz e pela dor que senti na bexiga, percebi que as águas estavam a rebentar. Bingo! Se eu tivesse ido passar o fim de semana para o Alentejo estava mesmo lixada, pensei. As dores começaram com toda a força e percebi que tinha entrado em trabalho de parto. Voltei ao quarto, já quase sem poder respirar com a força das dores e tentei acordar o meu marido várias vezes, dizendo-lhe que tinha que se levantar para me levar à clínica. “O que é?”, dizia ele. “Deixa-me dormir”. Desculpa, dizia-lhe eu, levanta-te o bebé vai nascer. “Não pode ser, ainda é cedo, faltam dez dias”. O bebé vai nascer, levanta-te para me levares à clínica que não tenho tempo a perder. Respondeu: “Deita-te e dorme, é impressão tua”(?). Percebi que mais uma vez não podia contar com ele. O que fazer?

As dores eram tantas e tão em cima umas das outras que eu tinha a certeza de que estava a entrar em trabalho de parto e uma vez que já tinha percebido que só podia contar comigo, tinha que ser prática. Ainda abri o roupeiro para tirar um vestido, mas as dores já não me deixaram chegar lá. Saquei do que tinha usado no dia anterior e que estava em cima da cadeira e com muito custo lá vesti. Peguei numa toalha turca grande e enrolei à minha volta por baixo do vestido. Peguei no saco de mão e saio porta fora decidida a mandar parar o primeiro carro que parasse, fosse quem fosse. E assim foi. Naquela figura, fiquei no meio da estrada e mandei parar um carro conduzido por um indivíduo qualquer, o primeiro que apareceu. O homem não queria parar, mas perante a minha insistência e a minha figura, lá parou. Abriu a janela do carro e antes que começasse a falar pedi-lhe por favor, que me levasse à Clínica de S. Gabriel, na Almirante Reis.

A cara dele era um espanto. Não percebia nada. Já não sei o que ele disse, mas expliquei que estava em trabalho de parto, o que dava para perceber por causa do toalhão enrolado, e que precisava urgentemente de dar entrada na clínica onde o meu médico me assistiria. Ele só perguntava: “então, mas está sozinha, não tem ninguém que a leve?” E eu nem sabia o que responder e nem tinha tempo nem paciência para entrar em detalhes. Disse-lhe que não, mas ele estava baralhado, confuso e sem saber o que fazer nem o que pensar. Não lhe dando alternativa, respondeu: “bom, está bem… venha lá…”, ao mesmo tempo que abria a porta para eu entrar, constrangidíssima com a situação, mas sem alternativa. Há alturas na vida em que não é possível parar para pensar, porque não há mesmo o que pensar. Era o caso. A única coisa que eu tinha que fazer era agir e agir rapidamente para não ter dissabores. Mais tarde, com certeza pararia para pensar em tudo aquilo. Naquele momento, era tudo menos oportuno.

E quando já estava a entrar no carro, começo a ouvir uma voz, ao longe: “eh, espera aí, onde é que vais”? Onde é que vais(?)… era mesmo essa a pergunta certa para o momento. Reconhecendo a voz do meu marido, sinceramente não sei se fiquei mais aliviada ou mais nervosa do que já estava. “Eh, o que é isso, espera, espera!”. O sujeito, que já estava resignado a ter que me levar, olha e pergunta: “quem é você?” E antes que ele respondesse, apressei-me a dizer que era o meu marido. O homem ficou possesso da vida. “Seu marido, e deixa a senhora neste estado, nesta situação, mas que raio de pessoa é você, não tem vergonha?” O outro, com as calças, uma perna enfiada e outra por enfiar; um sapato na mão e outro calçado, e com as chaves do carro no bolso das calças, começa a responder: “cale-se e vá-se embora”. Mas o homem não se calava: “não tem vergonha duma cena destas, onde é que já se viu, deixar a mulher numa situação destas(!?)”; “cale-se e pode ir andando”, respondia o meu marido.

E por momentos os dois pegaram-se e eu a ver que ainda ia haver porrada e tudo o que eu queria era ir para a clínica para o meu filho poder nascer, já que tinha chegado a sua hora. E desesperado, chamando nomes por todo o lado, o sujeito dizia “nunca vi uma coisa assim(!)”… e com isto lá se foi furioso da vida.

Entrei no nosso carro e lá fui a caminho da clínica. A meio do caminho tive que pedir para ele acelerar, porque realmente não tinha posição para estar. Chegados à porta da clínica lá saí com imensa dificuldade já em andar, enquanto ele ia “só” estacionar e tomar café. Entrei, fui à recepção e assim que olharam para mim imediatamente chamaram uma maca que me levou direitinha à sala de partos. Chamaram o meu médico, esperei por ele uma hora e às dez menos dez da manhã, o meu filho nascia. Agora estava tudo bem ou quase tudo, uma vez que as coisas são como podem ser.

Entretanto, o meu marido que tinha ido apetrechado de câmara de filmar e fotografar, porque estava muito na moda essas coisas, depois de ter estacionado, tomado o café e sei lá que mais o quê, calma e tranquilamente, entrou na clínica, dirigiu-se à sala de estar, abriu o jornal e refasteladamente aí ficou. A recepcionista, vendo-o ali, sem dizer nem perguntar nada, teve a percepção de que tinha a ver comigo e perguntou-lhe o que estava ali a fazer: “a minha mulher acabou de dar entrada”. A sua mulher já teve bebé, está tudo bem e pode subir para os ver, respondeu a recepcionista. “Não pode ser, ela acabou de entrar”. A sua mulher já teve bebé, pode subir, continuou a empregada. Mas ele não se convencia, enquanto a outra lhe afirmava que o filho já tinha nascido. Ele só achava que não podia ser, que era muito cedo. Só lhe faltou dizer que era “impressão dela”(!).

E no dia sete de setembro de mil novecentos e oitenta, mesmo sem filme e sem fotos, contra tudo e todos, o Henrique, nosso único filho, nascia, por sua livre e própria vontade.


quinta-feira, 27 de julho de 2017

Palavras árabes - 38


O tio padre não largava aquela bíblia de maneira nenhuma. Em todos os lugares que parávamos, logo ele arranjava um sítio para pousar e abrir a sua tão sagrada bíblia, onde enfiava o rosto por inteiro: olhos, nariz e boca; tudo duma vez, por trás da sua santa e atenta leitura. 

É verdade que ele andava sempre com ela atrás, para todo o lado, inclusive em casa. Mas aquele passeio às Furnas, em dia de domingo, tinha sido ideia dele. Fazia sentido que se alheasse um pouco das leituras para se integrar num passeio familiar, sobretudo com os sobrinhos netos em volta. Mas por mais que tentássemos pô-lo a falar e a comunicar connosco, não havia maneira de o trazermos a nós, respondendo apenas com breves monossílabos “ham, hem, hom, hum…” fingindo estar a dar atenção, mas o facto é que dali não saía. Nem com toda a gritaria das crianças. Nada conseguia interrompê-lo. Aquilo já me estava a chatear. Foi então que me lembrei de uma brincadeira que não pude evitar. 

Cheguei-me devagar, devagarinho, junto dele, para não o assustar e afastar-se ainda mais do que já estava e sempre de mansinho, como quem não quer nada, perguntei-lhe: 

- Sabe que os árabes têm muitas palavras começadas por “al”? 

E levantando ligeiramente a cabeça, ao mesmo tempo que olhava para mim, respondeu:

- “Hum…” – sem perceber aonde eu queria chegar, claro.

É verdade ou não? – Continuava eu – Os árabes têm um vasto dicionário de palavras começadas por “al”, inclusive, nós herdámo-las – e olhando em frente, com os olhos postos no horizonte, acenou que sim com a cabeça e antes que voltasse a mergulhar o nariz de novo na santa e sagrada bíblia, como quem não quer nada, perguntei:

- Sabe como é que se diz, por exemplo… “rapaz” em árabe? 

Continuando com o olhar fixo no horizonte, como que a ver se a palavra lhe caía do céu, abanou a cabeça em sentido negativo. Então respondi:

- Rapaz, em árabe, diz-se: “almoço”. 

E os olhos dele deixavam de estar fixos e meio perdidos no horizonte, para se fixarem em mim, com o sobrolho meio franzido e o rosto balançando levemente para cima e para baixo, de quem está apreciando, julgando, pensando em algo que nunca lhe tinha passado pela cabeça. A esta altura, o sobrinho mais novo e meu marido, que estava posicionado atrás, sem ser visto pelo tio, já ria com gargalhadas silenciosas, sem se conseguir conter, mas sem querer quebrar a brincadeira que, para o tio, parecia ser uma coisa séria. 

E antes que voltasse a pôr a cabeça novamente na sagrada bíblia, mais uma vez o interceptei, continuando:

- E sabe como é que se diz… “cara” em árabe? 

É claro que ele não sabia e nem nunca tinha pensado nisso. Por isso, novamente desviando o olhar da minha pessoa para se fixar na distância, ficou em silêncio durante alguns segundos, até que o interrompi, dizendo:

- “Cara” em árabe diz-se “alface”.

Olhando para mim, dizia ele:

- Que interessante!...

E enquanto voltava a mexer a cabeça, balanceando-a levemente para voltar a perder-se no horizonte, apreciando a tão extraordinária informação sobre o vocabulário árabe, que nunca tinha imaginado, nem pensado, dizia:

- Curioso!  

E até já sorria, um sorriso muito débil, lá muito no fundo. O certo é que eu estava a conseguir arrancá-lo à sua leitura preferida. Eu estava contente com aquela cena. Estava a resultar. E de novo perguntei:

- E… “auto-estrada”?

- Não faço ideia – respondeu. Não faço a menor ideia.

Dei-lhe uns instantes para ver o seu pensamento andar um pouco à nora e passados uns segundos respondi:

- “Alpista”.

- “Alpista”? – Repetia ele – É interessante! – E repetia a palavra, exportando-a infinito afora, dando-lhe toda a liberdade para existir e para a admirar. E como a coisa se proporcionasse a continuar, decidi continuar:

- E sabe como é que se diz em árabe “supositório”? 

O tio padre olhou para mim muito depressa e mais atento que nas outras palavras, parecendo querer saber imediatamente a resposta sem se fazer esperar muito.

- Como é?

Como é(?) - Perguntava, interessadíssimo pelo assunto, na sua belíssima pronúncia açoriana e com um ar deliciosamente ingénuo. Tive que responder. Tive que satisfazer a sua curiosidade, mas não era assim tão rapidamente como ele parecia querer. Fazia parte da brincadeira criar algum “suspense”. Por isso fiquei olhando para ele, ansioso pela minha resposta, enquanto o sobrolho permanecia franzido. E finalmente satisfiz a sua curiosidade:

- Supositório, em árabe, diz-se “Alcoentre”.

- Hum?... – Dizia ele com a boca entreaberta, o queixo ligeiramente descaído e um ar estupefacto. 

Foi então que desatámos a rir, achando que já chegava de atazanar a vida dele. Quando percebeu que tinha sido apanhado na brincadeira também riu com satisfação. E na verdade pareceu-me até aliviado por aquilo não passar de uma brincadeira, se não, como é que ele não iria saber? 

O tio padre não era estúpido nem burro. O tio padre só tinha um defeito: ser padre. É que o facto de ser padre o fazia ter todo o tipo de limitação e, portanto, como homem de boa fé, acreditava ou não, mas caso não acreditasse, não tinha essa consciência, o que vem a dar no mesmo.

E o passeio às Furnas foi salvo pelas palavras árabes.



quarta-feira, 26 de julho de 2017

Uma capa para o I Pad - 37


Uma capa para o I Pad, era disso que eu precisava. Já tinha andado a ver e não tinha encontrado nada do que queria. Agora estava no sítio certo e mais uma vez iria procurar, porque me fazia falta. Já tinha visto na Worten e não havia o que eu queria. A Rádio Popular estava ali bem na minha frente e não perdi mais tempo.

Entrei e comecei a averiguar. Passei pelos corredores com tudo e mais alguma coisa, menos capas para tablets. Mas de repente ei-las, ali na minha frente. Aproximei-me e comecei a inspecionar. Havia várias, de várias cores, mas ainda não era bem aquilo. Chamei um dos empregados e perguntei se havia mais. Olhou e respondeu que não. Era tudo o que havia. Pensei, mais uma vez não encontro o que quero. Até já tinha visto nos chineses e nos indianos. A questão é que o meu I Pad, coitado, já estava um pouco desactualizado, isto é, tratava-se de um modelo já antigo. Os mais recentes tinham medidas diferentes. Esse é que era o problema. Mas precisava de uma capa. Aquela estava muito velha, a desfazer-se e eu andava sempre com ele. Por isso precisava mesmo.

Bom, cingi-me ao que havia para o modelo e apesar de não ser exactamente o que precisava, era pegar ou largar, pois arriscava-me a não arranjar mais nada e isso não era conveniente. Aquelas capas protegiam apenas a parte fronteira do I pad e nada mais. Uma folha única num material que parecia pele e que aderia no lado esquerdo por sistema de íman e assim ficava seguro no tablet.

Olhei bem para elas e mais uma vez pensei que não era nada daquilo que queria. Eu queria uma coisa consistente, que desse bastante protecção. Nada a fazer. Era pegar ou largar. Já tinha corrido tudo, por isso sabia que era a única chance. Abri uma, experimentei, vi e voltei a ver, enfim, se não havia alternativa, tinha que me habituar àquilo. Era um pouco estranho, mas o que fazer? Por outro lado, era mais fácil de encaixar na pasta porque ocupava muito menos espaço. De tanto experimentar até já me ia habituando à ideia. Estava resolvido. Vi as cores e decidi que queria a preta, sem sombra de dúvida. E finalmente vi o preço. Aí, apanhei um baque. Cinquenta euros, nada mais nada menos do que cinquenta euros. C’um caraças, não faziam a coisa por menos. Mas eu precisava daquela porcaria, caramba! Paciência, lá iam cinquenta euros à vida. Fazer o quê? E dirigi-me para a caixa de pagamento.

Enquanto me dirigia para a caixa, ia olhando a capa e pensando com os meus botões, que cinquenta euros por aquilo era perfeitamente inconcebível. E por mais voltas que desse, não conseguia perceber como é que uma folha de dezoito por vinte e quatro centímetros de um qualquer material, com um lado de metal aderente por íman, poderia custar aquele dinheiro todo. Não se justificava de maneira nenhuma. Mesmo que fosse pele, ainda assim não podia valer aquele dinheiro. Era um roubo. E eu era obrigada a pagar aquilo? Não estava nada satisfeita, nem um pouco. Se pagasse tanto, mas ao menos se justificasse? Não era o caso. Quanto é que aquilo para mim valeria? Para ser bem franca, bem honesta, nem cinquenta, nem trinta e nem vinte. Dez… nem isso. Não, na verdade aquilo por cinco euros já estava bastante bem. Não, nem isso, na verdade não dava mais que três ou dois euros. Era isso. Dois euros pagavam aquilo, porque realmente não valia mais do que isso. Cinquenta!?... Era um delírio. Um atentado à bolsa de quem quer que fosse.

Pus em cima do balcão e quando o empregado pegou no leitor da barra de códigos, deu-me um “vaipe” e disse: “não, desculpe, mas não vou levar”. Como ele parecia não me ter ouvido, repeti: “desculpe, mas não vou levar, é muito caro, não vale o preço”.

O rapaz parecia não me dar a menor importância e continuava com o leitor a passar. Já o tinha passado várias vezes sem que eu conseguisse perceber porque o fazia, mas não me respondia e estava muito empenhado no que estava a fazer. De repente parou e pediu-me para esperar um pouco. Pensei, mas vou esperar porque cargas de água, se já lhe disse que não vou levar? Vi-o dirigir-se ao corredor onde estava o mesmo material e trazer outro. Voltou à caixa e passou o segundo no mesmo leitor. Olhava para um e para outro e voltou novamente a ir buscar um terceiro e um quarto. Não havia dúvidas, porque cada um era de cor diferente. O que eu tinha escolhido era o único preto. E mais uma vez insisti: “não quero, desculpe, é muito caro”. Mas ele continuava empenhado não sei em quê, com as capas para trás e para a frente, fazendo-me sinal para esperar, esperar… esperar o quê(?), pensava eu. Estive vai não vai para me ir mesmo embora, mas ele estava a ser insistente e alguma coisa me dizia “espera”.

E fui esperando, enquanto ele resolveu chamar outro colega. E foram novamente os dois ao mesmo sítio ver… não sei o quê. E eu à espera, sem fazer a menor ideia do que se passaria e nem estava muito interessada. Só queria mesmo era ir-me embora. E veio outro empregado e estavam já todos à volta daquele assunto, que tanto discutiam, sem que eu tivesse a mais pequena ideia do que poderia ser. E mais uma vez voltou à caixa, mas desta vez, delicadamente, chamou-me, pedindo-me para o acompanhar. E eu pensando: “mas que grande chato… o que é que ele quer(?)… já lhe disse que não quero!” E conforme pensei, disse em voz alta. Então, para meu grande espanto, o sujeito passando novamente a capa preta pelo leitor, perguntou: “são dois euros, a senhora está interessada?” E ficou olhando para mim, à espera da minha decisão.

Dois Euros? Perguntei, meio confusa. Como, dois euros? Não eram cinquenta? Sim, respondeu ele. Todos os outros passam com cinquenta euros, mas este passa com um euro e noventa e nove cêntimos e é o único com este preço, se a senhora ainda estiver interessada, é o preço dele…

Mas é diferente dos outros(?), perguntei. Não, é exactamente igual. Já estive a ver com os meus colegas, não há diferença absolutamente nenhuma. A única diferença é no preço. Não sabemos explicar porquê. Mas está tudo certo. O leitor diz que é precisamente um euro e noventa e nove. Quer levar? …

Ah, claro. Por esse preço não tenho dúvidas, respondi perplexa, porque se eles não sabiam, não era eu que ia saber. Enfim, aquele estava ali à minha espera, sem dúvida nenhuma. E lá fui eu, contentinha da silva. Finalmente tinha uma capa nova. Não era bem aquilo. Mas por um euro e noventa e nove, estava óptimo e saí de mansinho, o mais rapidamente possível, para não se arrependerem e voltarem atrás. Estava feito.

 Bingo!


quinta-feira, 30 de março de 2017

Os tios padres - 36


Era o ano de 1980, ano em que o meu filho nasceu. Eu estava nos Açores, mais propriamente em Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, onde vivia e trabalhava, mesmo no início das Delegações da RTP nas ilhas, o que foi uma bela experiência. 

E foi também nesse ano que, no quinto mês de gravidez, deixei os Açores e retornei à base, Lisboa, acompanhada pelo meu marido, uma vez que ele já tinha percebido que lá, todo o seu potencial profissional e intelectual sempre seria subaproveitado, sem a mais pequena possibilidade de o expandir e fazer crescer. 

Mas não foi exactamente essa a razão que nos fez regressar. Isso, sim, mas principalmente a minha gravidez. Nos Açores não havia médico da especialidade, havendo dois médicos de clínica geral que se dedicavam a isso de modo muito particular. E eu queria um obstetra a sério, em quem pudesse confiar, o que fazia, necessariamente, com que o meu filho nascesse em Lisboa e que, de facto, aconteceu. Com cinco meses de gravidez lá viemos nós, de armas e bagagens para o Continente, onde o futuro nos aguardava. 

Enquanto estava nos Açores, quase todos os dias ia a casa da senhora minha sogra que vivia com um dos irmãos padres. Eram dois, mas o outro era prior na Lagoa onde vivia, não muito longe, porque ali nada é longe. As distâncias são todas pequenas. E a minha sogra vivia no seu enorme casarão com o irmão padre de quem cuidava, sendo que o da Lagoa ia lá muitas vezes. Era normal chegar e encontrá-lo. Sempre que tinha um tempinho metia-se no carro e ia a Ponta Delgada ver a irmã, o irmão e os sobrinhos. E como eu morava praticamente ao virar da esquina, todos os dias passava por lá. Às vezes almoçávamos, outras vezes jantávamos e por ali andávamos, entre uma casa e outra. 

Os tios padres eram muito engraçados. De estatura baixa, cheinhos, gostavam de comer e comer bem, as coisas da terra e à moda da terra, que a minha sogra tão bem sabia fazer, pois era uma excelente cozinheira e nunca deixava uma refeição ao acaso, isto é, todas as refeições eram especialmente bem preparadas, regadas com uma boa pinga e tudo bem apimentado com a pimenta que nunca podia faltar. 

Os tios padres, toda a vida habituados a serem bem tratados, se alguma coisa estivesse menos bem, logo tratavam de reclamar. Em nada poupavam a irmã, que era uma santa senhora e nunca se cansava, por mais esfalfada que estivesse. Mas, em nome da igreja, do senhor santo Cristo e mais não sei o quê, tudo ali andava ao sabor da santa madre igreja. E eu sempre aproveitava para os picar quanto ao vinho, dizendo-lhes que os padres não podiam beber e outras coisas, ao que eles se mostravam muito indignados, reclamando: “ora essa, nã podem beber vinho? Quem disse uma cosa dessas?” 

Eu não lhes perdoava. Mal pusessem o pé em ramo verde, já estava em cima, lembrando-os de que eram padres. Também é verdade que se estavam nas tintas, murmurado entre dentes e desdenhando as minhas observações. Mas era tudo na reinação. Por mim, queria lá saber do que eles faziam ou diziam! Era lá com eles. Não era eu que era padre nem freira!... 

Um dia, entrando em casa, subi as escadas de acesso ao primeiro andar e fui direita à cozinha, onde estava a minha sogra, para a cumprimentar e passando no escritório, estava o padre Domingos fazendo umas arrumações na sua vasta biblioteca pessoal. Mas não estava sozinho. O padre Agostinho, sentado numa cadeira e fumando – outra coisa com que eu sempre os chateava, o tabaco - observava, indiferente, os afazeres do irmão. 

A páginas tantas, o padre Domingos puxa de uma cadeira para junto de uma das estantes e leva consigo um livro, enquanto faz um esforço para subir na cadeira e chegar à dita estante a guardar o livro. De pé na cadeira com a sua figura engraçada: cabelo bem grisalho, cujas pontas formavam caracóis pequeninos; óculos descaídos na pontinha do nariz, com armações pretas a condizer com a roupa sempre preta e o seu aspecto de barrilinho - porque toda a sua gordura crescia em direcção à barriga; tanto de baixo para cima, como de cima para baixo, tudo se acumulava de vez à volta do umbigo, dando-lhe a forma de um verdadeiro barril -, para não ter de descer novamente, pede ao irmão que lhe chegue um outro livro que estava sobre a sua secretária. 

Naquela bela pronúncia açoriana bem cerrada e comendo as sílabas, que um continental não acostumado nada entende, dirigindo-se ao irmão que continuava sentado com um ar bem tranquilo, para não dizer preguiçoso, de quem não está realmente à espera de nada nem ninguém que interrompa a sua mui digna e apreciada lazeira, diz-lhe: “oh Agostinho, chega-me aí aquele livro”. De cigarro numa das mãos, com a outra apoiada no joelho da perna traçada e fazendo um notório esforço para ter de falar, limita-se a responder “qual livro?” 

Eu estava de parte. Não chegava a ter entrado e perante aquele quadro, em relação ao qual antevia uma boa risada para mais tarde continuar quando contasse ao meu marido, fiquei onde estava. O bom do tio padre Domingos, insurgindo-se, retorquiu: “Oh home, nã vez ali em cima da secretária?” Mas como o outro não lhe dava jeito ver o livro, continuou “Adonde?”... 

“Acolá”, dizia o outro, já mais energicamente, para não dizer encolerizado. Mas o Padre Agostinho não fazia mesmo a mais pequena intenção de ver ou dar atenção. Ele queria era não ser incomodado de jeito nenhum. Era outro barril, mas um barril mais uniforme. A gordura distribuía-se mais por todo o corpo. Comer, beber, fumar e dormir, eram coisas que não dispensava. E ainda fazer a sua propagandazinha política, insinuando os fiéis, durante a homilia, a votarem na "mãzinha" fechada, conforme ele próprio mostrava.

Os dois eram bem diferentes no tocante à personalidade. Padre Domingos era padre da cabeça aos pés. Mesmo quando não estava "fardado", a sua indomentária, bem como a sua postura, eram de um padre. Em qualquer circunstância, enquadrado em que cenário fosse, olhava-se para ele e via-se um padre, escarrado e pintado. Tinha sempre um ar sério, compenetrado e invariavelmente andava sempre com a sua bíblia atrás, dando-lhe um ar de seriedade, compenetração e de uma certa tranquilidade. Já Padre Agostinho era totalmente diferente. Só quem o conhecia é que o via como padre. Ao contrário do irmão, andava sempre à paisana, com roupa perfeitamente normal. Além disso, não tinha o hábito de andar com a bíblia nas mãos. O que eu lhe via sempre era um cigarro. E só usava o hábito em plena missão litúrgica.  

“Na querem lá ver, agora tenho que me levantá pa te dá o livro?!” – “Custa-te munto?” - perguntava o outro. “Pôs claro que me custa!”... Valha-me Deus, que nesta altura eu já ria a bom rir, só por dentro (já tinha história).  Padre Domingos: “Oh Agostinho, dá-me o livro, fazes favôoor!”. Agora já era uma ordem, já não era um pedido. Padre Agostinho, sem se livrar da sua calma, apaga o cigarro já no fim, levanta-se pachorrentamente e aproximando-se da secretária pergunta: “é este livro?” 

“Sim, chega-me cá, se fazes favor” diz o padre Domingos já impaciente. Padre Agostinho dá mais dois passinhos na direcção do irmão e com uma mão enfiada no bolso e a outra segurando o livro responde: “toma”. Só que o livro estava um pouco - para não dizer muito - abaixo da altura do outro. E não era nada difícil chegar-lhe por ele ser de baixa estatura, mas conhecendo-o como o conhecia, sabia que era intencional. 

Naquele momento, para mim, ambos tinham deixado de ser quem eram, dois padres, dois adultos, para serem duas crianças brincando. Só que não era brincadeira, era sério. E eu cada vez mais deliciada, imaginando a cara e o riso do meu marido quando lhe contasse a cena. Ele sempre ria com gosto das cenas que lhe contava. E aquela não fugiria à regra. 

Padre Domingos, percebendo que o livro estava muito abaixo, não foi de modas: “oh home, chega cá o livro, se fazes favor”, dando-lhe aquela acentuação bem carregada, ao que o outro respondeu: “se queres o livro, tá aqui” – sem o levantar um só milímetro. Não havia dúvidas, a festa estava a começar. E eu sozinha, para presenciar, porque a minha sogra, entretanto, tinha passado para a sala de estar e estava entretida com os seus tricots, entregue aos seus pensamentos e tudo lhe passava ao lado, até porque já era um pouco surda. 

E então começa um despique que nunca mais acabava. Um dizia “chega aqui acima”, o outro dizia “chega cá abaixo, na te podes baixar um bocadinho?” Depois o outro dizia “és tu que tens que chegar aqui a cima” e o outro respondia “és tu que tens que te baixar pa apanhar o livro”. Eu realmente estava passada. Só queria ver os “fiéis” a assistirem àquela brincadeira de garotos embirrentos. Ninguém ia acreditar. Era surreal. Por isso mesmo, dei um pulinho à sala onde estava a minha sogra e contei-lhe o que se estava a passar, o que não a perturbou muito, pois já estava habituada. Deu um sorriso e continuou imperturbável, apreciando o seu sossego. Voltei ao posto de observação e a cena continuava com os dois desafiando-se. Ambos querendo ter razão, ambos se achando com mais direitos que o outro. És tu que… não, és tu que… 

“Na querem lá ver”, dizia um. “Na podes fazer um esforçozinho(?)”, perguntava o outro. Aquilo era demais. E quando já tinha o papo cheio da brincadeira, entrei, tirei o livro da mão do que estava em baixo e dei ao que estava em cima. De um lado ouvi a palavra “obrigado”, do outro “ele que viesse buscá-lo”. Pronto - disse eu -, está resolvido o problema. Mas não estava, porque continuaram a discutir quem é que devia a quem. O sexo dos anjos, pensei. Males de família.

 

quarta-feira, 29 de março de 2017

O melro - 35


Há uns anos atrás iniciei um projecto a que chamei “primavera”, que achei interessante e ao qual dei continuidade. Foi num daqueles anos difíceis, em que parece que tudo vai por água abaixo e por mais que pensemos, parece que nada faz sentido. E, pensando nisso, apercebi-me de que o mesmo se passava com algumas das minhas vizinhas porque um dia ao sair do carro, cruzando-me com uma delas que depois dos cumprimentos habituais aproveitou para se lamentar dos seus problemas pessoais, me fez pensar – não sou a única. E outro dia mais tarde, aconteceu a mesma cena com outra delas que também começou a desabafar acerca das suas apoquentações. E, mais uma vez, pensei – não sou mesmo a única. E apareceu outra que veio com mais problemas, quase chorando por isto e por aquilo. 

Em casa, sozinha, reflectindo sobre os problemas delas para me esquecer um pouco dos meus, veio-me uma luz. As pessoas precisavam de falar. Precisavam de ser ouvidas e verbalizar os seus males para se sentirem mais aliviadas. Precisavam de partilhar o mau e talvez o bom. Também me lembrei de que eram pessoas que viviam sozinhas. Claro que tinham família, mas viviam de modo independente. E, muitas vezes, não é com a família que se partilha um certo número de coisas ou a família já está cansada de as ouvir. Então, porque não, criar um grupo de convívio para desabafar, partilhar, mas sobretudo para se sentirem mais unidas e mais apoiadas? 

Nesse sentido, falei com elas, uma de cada vez, explicando a minha ideia e propondo a minha casa como ponto de encontro, num dia certo da semana. A ideia foi muito bem recebida e o grupo foi formado. Eram seis, comigo sete. E divertíamo-nos imenso. Conversávamos, contávamos piadas, histórias de vida engraçadas e curtidas. Outras vezes fazíamos jogos. Jogávamos às cartas e outros jogos foram aparecendo. Aproveitávamos os aniversários para nos reunirmos e fazermos uma festinha, tudo em minha casa, embora a ementa fosse distribuída por cada uma de nós. E uma vez por outra fizemos passeios muito bons, muito agradáveis. 

O facto é que o grupo gerou uma dinâmica muito positiva na vida de cada uma de nós e trouxe uma maior confiança individual, capaz de ajudar a transmutar as energias negativas que até então predominavam, fazendo-nos acreditar que as coisas ruins não paravam de acontecer. Começou a haver uma abertura muito grande e foram ultrapassadas barreiras muito importantes para o desenvolvimento pessoal. Era um incentivo enorme que dávamos na vida umas das outras e muito mais coisas. E ainda por cima com uma enorme vantagem. É que ninguém precisava de se arranjar, nem de sair à rua. Pelo contrário, toda a gente enfiava as confortáveis pantufinhas, pijamas e robes de trazer por casa. À hora certa, as portas abriam-se e lá vinham elas para uma sessão de desopilar. Divertíamo-nos imenso e fizemos muito bem umas às outras. 

Quando a hora já ia adiantada e o cansaço começava a dar sinais, encerrava-se a noite de convívio e cada uma voltada a sua casa. Porém, quase todas tinham ainda que dar um giro com os seus animais domésticos, trocando rapidamente os robes por casacos e as pantufas por calçado de rua. E quem não tinha cão tinha gato, etc. Só eu não tinha animais. Não é que não gostasse, mas achava e acho que não tenho jeito e além do mais não me apetecia ter trabalhos dessa natureza. Mas havia uma que tinha um pássaro numa gaiola. Pássaros eu gostaria, mas presos na gaiola já não tinha muita graça. Mas era giro. Foi então que me veio uma ideia. Era inverno, mas a primavera viria como sempre. E se eu pusesse comida aos pássaros? Eles viriam a um quinto andar? 

Essa ideia deixou-me imensamente animada. Eu pagava para ver. Se eu pusesse comida e água eles viriam. Viriam só para comer e beber água. Eu não teria outro trabalho e melhor que tudo, seriam livres, livres para continuar a ser como eram. Não eram de ninguém, eram da terra. Eram livres e ninguém tinha o direito de os aprisionar. E só viriam se quisessem. 

E aí começou o meu projecto “primavera”. Quando o inverno estava quase a terminar e o tempo já estava a melhorar, um dia espalhei bocadinhos de pão numa ponta do parapeito de pedra do lado de fora da janela do quarto, bem como um pequeno recipiente com água. Tinha que ser no quarto, para ser acordada com o chilrear da passarada e imaginar que estava no campo. Eles acordar-me-iam suave, suavemente, trazendo os primeiros raios de sol, ajudando-me a despertar alegre e bem disposta, com a sensação da companhia deles. 

E os dias foram passando e eu vigiando, para que não faltasse nunca o pão para a passarada. Primeiro experimentaria com o pão para ver se resultava, depois logo se via. E agora restava esperar. 

De facto, num belo dia, fui acordada com o chilrear de um pardalito. Numa primeira reacção, estava desligada do que ouvia, mas logo me lembrei do meu plano, do pão e da água à espera e então tomei consciência de que a resposta tinha chegado. Um pardalito tinha descoberto a comida e estava feliz e contente, porque aos pulinhos no parapeito da minha janela do quarto. Levantei levemente a cabeça e lá estava ele, calmo e tranquilo, longe de pensar que por trás dos vidros fechados estava a ser observado. 

Fiquei muito feliz. Muito feliz mesmo. Um passarinho tinha vindo. Agora éramos amigos porquanto tempo ele o quisesse, porque agora eu continuaria a pôr comida e água fresca ainda com mais cuidado. E sentada na cama, em silêncio, deliciava-me com ele cantarolando e pulando tão solto e livre, fazendo-me sentir deliciada com aquele maravilhoso encontro matinal. E no outro dia ele voltou e mais outros se juntaram. Além disso, comecei a observar, quando estava em casa, que várias vezes durante o dia também apareciam. Volta e meia ouvia o piar dos pardalitos a saltar no parapeito da janela e espreitava. Lá estavam eles bicando aqui e ali. Eu vigiava e voltava a pôr o que julgava necessário para que os que viessem se sentissem felizes e contentes. A alegria deles era a minha alegria. E o prazer que aquilo me proporcionava era indescritível. 

Os dias seguiam-se e todas as manhãs eu acordava com a chilreada. Era lindo! Eles anunciavam um novo dia e eu voltava a dormir com um sorriso de satisfação nos lábios. Dormia e sonhava que eles eram meus, mas com toda a liberdade que lhes era devida por direito. Sem que nada os prendesse, faziam parte do meu mundo, porque todas as manhãs marcavam presença, bem como várias outras vezes durante o correr do dia.  

Os anos foram passando e o projecto “primavera” repetindo-se. Sempre me foi difícil acostumar com o inverno. Cada dia de inverno que passava fazia-me chegar mais próximo da primavera, só que agora a primavera trazia a surpresa dos passarinhos, que eu tanto gostava e o dia que marcava a chegada deles, dos meus amiguinhos, era uma festa e tanto. A primavera tinha passado a ser anunciada pela chegada deles à janela do meu quarto, através deste ritual que me ajudava a ultrapassar melhor o inverno. 

E mais um ano que não fugiu à regra. Quase no final do inverno, chegou o dia em que achei que estava na hora e, como de costume, lá pus a água e o pão todo esmiuçadinho. Um belo dia, acordei cedo com o despertar de um pássaro que cantava divinamente. Cantava que era um regalo. Abri um olho, depois o outro e pensei: a minha primavera chegou. Foi uma alegria e tanto. Só que percebi que não era um pássaro habitual. Pelo canto, percebi que não era um pardal. Os pardais não cantavam daquela maneira avassaladora. Mas eu estava com muito sono e continuei a tentar dormir. O pássaro continuou cantando e eu deliciada, tentando dormir. E a páginas tantas adormeci outra vez.  

Sensivelmente uma hora depois, talvez, o pássaro voltou, porque o canto iniciou. Levantei-me sorrateiramente e espiando por todos os ângulos, percebi que era um melro pequenino porque era escuro e tinha o bico alaranjado. Que bonito - pensei - e como canta! E no dia seguinte lá estava ele novamente com a sua cantoria. Mas era muito cedo. O sol ainda nem tinha aparecido, mas ele cantava que era uma loucura. Acabava e recomeçava, tantas vezes que eu já sabia o que vinha a seguir. Já sabia a música de cor. E nos dias seguintes lá vinha ele. E depois de muito cantar, ia-se embora para voltar uma meia hora depois, em que iniciava todo aquele festival de música e eu queria dormir e ele não me deixava dormir. Dali não saía nem por nada. Mas se saía, logo voltava e cantava que nunca mais acabava. Comecei a ficar possessa. Cada dia vinha mais cedo e o meu sono lá se ia. Comecei a ficar muito irritada. Tapava a cabeça com uma almofada, mas de nada servia porque era muito forte e muito longa a sua cantoria. 

E agora, o que fazer? Estava numa encruzilhada. Já não achava mais graça e já não podia ouvir o melro. Só de pensar nele quando à noite me deitava, já ficava incomodada e para me acalmar pensava “pode ser que não venha amanhã”. Na madrugada do dia seguinte lá estava ele a tramar o meu sono. Aquilo começou a ser uma completa tortura, porque já não tinha graça. E agora não sabia o que fazer. A solução era não lhe pôr mais comida, mas aí eu ficava cheia de problemas de consciência. E passaram-se uns dias em que andei às voltas sem saber o que fazer com o melro. 

Então as coisas aconteceram naturalmente. Fui-me esquecendo de pôr comida e água por conta do problema do que fazer com ele. Como só pensava nisso, esqueci-me mesmo e a comida acabando naturalmente, ele então se afastou. Coitado do melro - pensei um dia - nunca mais voltou! Mas logo me lembrei da tortura que era querer dormir e não poder com a cantoria dele. 

Curei-me de vez. Já não sinto a falta da passarada. Já não tenho a necessidade que tinha da presença deles. Acabou-se o projecto “primavera”, mas aprendi a sentir-me feliz sem estar dependente deles.  

Tal como o melro, ganhei asas e voei. 


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O prego - 34


Eu estava furiosa. Furibunda! Quem era aquela criatura diabólica, mal humorada, que estava na minha frente, enfrentando-me da maneira mais agressiva e desagradável possível? Aquilo não podia existir.

 

Eu tinha ido a casa da minha tia que já estava bastante doente, movimentando-se com imensa dificuldade, o que fazia com que as minhas idas fossem cada vez mais frequentes, para a ver e dar o apoio possível.

 

Numa dessas idas, já de saída, dirigi-me ao carro, estacionado em frente de casa, do outro lado da rua, no que fui surpreendida por outro carro estacionado atrás do meu, em segunda fila. Naquela zona, bem no centro de Lisboa, acontece muito isso. Todavia, normalmente as pessoas estão atentas ou colocam indicação sobre o tablier, bem visível, informando o contacto, para não dificultar a vida de ninguém.

 

Acontece que, depois de ter inspecionado o veículo, não encontrei nada, absolutamente nada que me desse uma pista, o que achei muito estranho. Olhei em volta e não vi ninguém suspeito. Como não houvesse a mais pequena hipótese de sair dali sem que o carro mal estacionado saísse, dei uma buzinadela rápida, não querendo fazer muito alarde. Mas, ao contrário do que era esperado, ninguém deu sinal de vida.

 

Aquilo estava estranho. Muitos carros estacionavam ali em segunda fila e caso não colocassem nenhuma mensagem sobre o tablier, bastava dar um toque rápido para alguém sair correndo e pedir desculpa pelo incómodo. E assim, tudo ficava bem, sem problemas de maior. Agora, aquela cena, não me estava a cheirar nada bem. Contrafeita, decidi dar outra buzinadela. Esperei, mas uma vez mais ninguém se acusou. Estava tudo tranquilo demais para o meu gosto. O que se estaria a passar? Não era normal. Quem, em sã consciência, deixaria um carro assim?

 

Esperei, a pensar no que haveria de fazer, ao mesmo tempo que tinha esperança de que, entretanto, alguém aparecesse correndo e desculpando-se por isto ou por aquilo. O facto é que nada acontecia. Buzinei mais uma, duas vezes, aumentando a intensidade e o tempo e eu própria já estava mais do que incomodada por ter que ser obrigada a fazer o que não queria. Não faltaria muito, a rua toda estaria a chatear por causa do barulho, mas fazer o quê?

 

E vinha uma pessoa à janela espreitar por trás dos vidros, abrindo sorrateiramente o cortinado, o que me dava uma esperançazinha, para logo se retirar, o que me deixava muito desolada. E depois outro aqui, outro ali, mas a verdade é que ninguém se acusava e também ninguém reclamava do barulho que eu estava a fazer, o que me deixava ainda mais intrigada. A minha intuição dizia que havia ali alguma coisa estranha que me escapava e eu não conseguia entender.

 

Sempre na esperança de que alguém acabasse por vir, mais minuto menos minuto, comecei a investigar o carro. Um Honda, que no banco traseiro tinha uma cadeira de criança pequena. Portanto e, em princípio, seria um residente. Mas para ser um residente não podia abandonar o carro assim tão mal estacionado. Ter-se-ia esquecido de deixar indicação? Mas depois de tantas buzinadelas e tanto chinfrim que eu já tinha feito, não era possível que ainda houvesse alguém que não tivesse ouvido!?...

 

A minha impaciência já tinha começado a dar sinal há muito tempo, mas agora era mais do que isso. Eu sentia-me prisioneira e isso estava a dar-me cabo do juízo. Não sei lidar com isso. Como era possível que ninguém viesse tirar o carro dali? O proprietário tinha deixado o carro ali abandonado, sem ligar peva ao assunto ou então teria morrida subitamente! Era esquisito por demais.

 

Foi então que, não tendo alternativa, liguei para a polícia informando o que se estava a passar. Pediram-me a informação do local, a identidade e fiquei-me, aguardando a chegada das autoridades, embora sentindo-me muito mal por ter que ser obrigada a isso.

 

O tempo ia passando e nisto tudo já lá ia uma hora. Achando que era um abuso e que ninguém tinha o direito de fazer uma coisa daquelas, esperar pela polícia sim, mas decidi que havia de fazer mais alguma coisa para mostrar o meu completo desagrado por aquela lastimável situação e comecei a buzinar sem tirar o dedo da buzina. Aquilo até doía. Doíam os meus ouvidos, a minha paciência, os meus nervos, os meus dedos… mas tinha que ser. Precisava desesperadamente de saber quem era o imbecil ou a imbecil que se atrevia a não reagir perante um ato daqueles.

 

Em vão, porque tudo continuava na mesma até que, no prédio em frente, do lado contrário da rua, aparece à janela aberta para o efeito, num terceiro andar, um indivíduo dos seus trinta e cinco anos, dizendo “toque no rés-do-chão direito”, ao mesmo tempo que apontava para baixo. Eu nem queria acreditar. Tinha surtido efeito. Alguém tinha reagido, mas ainda não era ali. Era apenas o caminho.

 

Mal tive tempo de agradecer, o rapaz fechou a janela e desapareceu. E lá fui eu, atravessando a estrada, dirigindo-me ao tal do rés-do-chão direito. Uma luz no fundo do túnel. Mas era uma luz um pouco escura, para não dizer muito escura. Pensando bem, aquela história estava cada vez mais estranha. Eu estava a fazer aquela barulheira toda a escassos metros do presumível proprietário do carro e ainda assim o sujeito ou a sujeita não dava a cara? Só podia ter morrido! Que outra razão levaria uma pessoa normal a agir assim, sem se importar com o estrago que estava a fazer na vida dos outros?!

 

Dei um toque na campainha, ainda esperando que alguém viesse correndo com alguma desculpa que ainda não me tivesse ocorrido, mas nada. O sujeito de cima, que me tinha dado a indicação do proprietário, era credível, com toda a certeza. Não tinha como duvidar. As chances de se ter enganado eram praticamente nulas. Agora eu até já começava a pensar que talvez o proprietário estivesse habituado a fazer aquilo… e como ninguém respondesse, perdi a paciência de vez, pus o dedo na campainha e não tirei mais. Ah… agora sim, alguém vinha lá. Ingenuamente, pensava comigo mesma, qual seria a desculpa que teriam para me dar(?).

 

Qual desculpa, qual quê… eu estava era a sonhar acordada e completamente fora da realidade que me esperava. Abriu-se a porta de casa e sai de lá uma mulher que aparentava os seus sessenta e muitos anos, mal humorada, carregada de energia negativa, que parecia que me vinha bater. Nos segundos que ela levou para percorrer o espaço da porta de casa até à porta do prédio, que abriu furiosamente, percebi imediatamente que estava lixada, como se fosse eu que estivesse no caminho dela e não ela no meu.

 

Ao abrir a porta a mulher simplesmente descarregou em cima de mim todo o seu mau humor, num tom de voz insuportável “páre com isso que ainda me acorda a criança!” Eu nem podia acreditar no que acabava de ouvir. Então, uma louca daquelas, esgrouviada, com uns cabelos que parecia uma bruxa, tinha uma criança a seu cuidado? Uau!...

 

Quando consegui começar a falar tive que ser muito firme e ter muito sangue frio, para apenas lhe perguntar se o carro mal estacionado era dela, ao que ela olhando para mim de alto a baixo e cada vez mais agressiva, respondeu “é sim, porquê?” Porquê, perguntei, não percebe que está mal estacionado e que preciso de sair(?), continuei. Quero lá saber, respondeu ela, com o maior desdém e o maior desprezo. O quê? Retorqui, pois fique sabendo de que já chamei a polícia. Quero lá saber, continuou ela, olhando para mim como se eu fosse o seu inimigo número um e continuando, dizia, pode chamar a polícia, pode chamar quem quiser, sabe porquê, eu não moro aqui, dizia ela com um ar triunfante, teatral e doentio.

 

Eu queria lá saber onde é que morava aquela horrenda criatura. Eu queria era sair daquele filme que não era meu. Eu queria era o meu sossego e a minha paz. E a polícia que não vinha?... Sua louca, gritava ela para mim. Incrível. Eu estava completamente passada, ainda sem perceber muito bem o que se estava a passar. Sua louca, continuava a mulher, desafiando-me a todos os níveis. Louca é você, disse-lhe eu. Ninguém deixa um carro estacionado daquela maneira. Mas ela praguejava e esbracejava tipo “padeira de Aljubarrota”.

 

Aquilo era absolutamente surreal. Das duas uma: a mulher era ama ou avó. E quem, em sã consciência, deixaria uma criança aos cuidados de uma doida varrida!? Era isto que agora mais me incomodava. Mas para falar a verdade, eu queria mesmo era sair dali. E lá foi ela, dirigindo-se ao carro, o que muito me aliviou. Tirou o carro, eu tirei o meu e desapareci, nervosa e chateada até mais não.

 

Saí dali, enfiei pelo eixo norte-sul em direção à Póvoa e foi um tiro que nem via nada à minha frente. Passando na estrada nacional, passo na polícia e resolvo parar. Estava tão transtornada que entrei e comecei a desbobinar o acontecido e mais, sobre a criança, que não me saía da cabeça. Relatei o acontecido, insistindo que uma criança não podia estar aos cuidados de uma pessoa assim tão desequilibrada. O sujeito ouviu tudo o que falei e argumentou “a senhora não vê que não temos bases para fazer seja o que for?” Respirei fundo e disse “sei… sim, claro, mas falei”.

 

Na verdade, tinha que despejar aquilo o mais depressa possível, que me estava a incomodar de que maneira. E sabia que tinha sido estupidez ir à polícia, mas apeteceu-me e pronto. Estava feito. Eu tinha que descarregar em alguém para ficar mais aliviada. Até já conseguia respirar melhor. Voltei ao carro e segui para casa.

 

Durante uns dias não conseguia esquecer aquela cena macabra. Sentia uma raiva e uma vontade de me vingar. Vingança, sim, era isso mesmo, eu tinha que me vingar daquela mulher. Mas como? Fui à minha caixa das ferramentas e saquei de um prego pequeno que olhei atentamente. Aquele prego seria a minha vingança. E imaginei-me a chegar lá, passar ao pé do carro e espetar o prego no pneu. Pronto, estava feito. Ela ia saber exatamente quem teria feito aquilo. Era como se o meu nome lá ficasse escrito.

 

Várias vezes voltei a casa da minha tia, mas o carro não estava lá, ou não tinha tempo ou disposição para me dedicar àquele assunto e pensava, ainda não é hoje. Mas a tua vez está guardada.

 

E chegou o dia em que, descontraidamente, uma vez mais, lá fui ver a tia. E passando calmamente, lá estava o carro à minha espera. Olhando em volta, tudo me parecia tranquilo, pelo que seria fácil pôr o plano em prática. Além disso, aquele assunto precisava de ser encerrado de uma vez por todas. Era a hora. Assim, atravessando a estrada, passei para o outro lado da rua. Como quem não quer nada, tirei da mala o prego e cerrei a mão. Aproximei-me do carro, olhei para o sítio onde poderia espetar o prego e… e, de repente, tudo deixou de fazer sentido. De repente percebi que afinal não queria e não precisava de fazer nada daquilo.

 

Guardei o prego e respirei aliviada. Estava liberta.

 

Mas, o mais importante, é que aquela mulher não tinha qualquer poder sobre mim e eu continuava a ser eu, apenas eu, igual a mim mesma, sempre eu, apenas eu.



quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

No Deserto - 33


Eram os últimos dias de uma espectacular viagem pelos Emirados Árabes e que não podia terminar sem uma ida ao deserto, que eu ansiava desde o primeiro dia, embora soubesse que estava reservado para o final. 

Deserto era tudo aquilo. Mas quem se lembraria de pensar nisso, quando à nossa volta víamos a grandiosidade dos edifícios e a terra a perder de vista transformada em verdadeiras florestas!? 

E não é que eu não achasse uma maravilha, pois era um mega empre-endimento, isso, sem dúvida alguma. Tudo aquilo era um colosso. 

Mas agora sim, estávamos em pleno deserto, onde as dunas pareciam dançar, enfeitiçando a terra com suas formas sensuais de movimento ondular irregular, palco de mistérios insondáveis, de lendas que se estendem pelo tempo, fantasiando a mente humana sob as noites de mil estrelas e das histórias das mil e uma noites ao som dos ventos que se desdobram na imensidão do vazio interminável, onde tudo se conjuga numa onda de solidão varrida de loucura, em busca duma qualquer, mas total liberdade harmoniosa, sui generis… tudo, menos vulgar. 

O deserto é lindo, na sua forma primária de cores da terra em tonalidades marcadas pelas sombras que só o sol é capaz de desenhar. O deserto é a forma mais bruta da natureza e por isso também a mais ousada. 

Tínhamos acabado de almoçar no restaurante mais alto do mundo e de regresso ao hotel, lá estavam os jipes, cada um com seu motorista, a fim de nos proporcionarem uma viagem de sonho pelo deserto. Eu estava ansiosa, como não podia deixar de ser. Já tinha estado no deserto, mas é sempre diferente, sempre irresistível e apaixonante. 

Kabir era indiano. Tinha emigrado para o Dubai porque ganhava bastante bem para sustentar a sua família na Índia e ainda fazer uma boa reserva. Era jovem, alto e fisicamente bem constituído. Usava uns óculos de sol bem escuros e largos, que lhe tapavam completamente os olhos e lhe davam um ar cheio de “estilo”, todo moderno. Era decidido e desenvolto. Por isso, depois de observar todos os motoristas, decidi que iria com ele. Dirigi-me ao seu jipe informando-o da minha decisão e logo ele me mandou sentar no banco da frente, bem ao seu lado. 

Ao todo eram cinco jipes e além de mim, seguiam ainda quatro mulheres e um homem, que faziam todos parte de um mesmo grupo. Eram divertidos e riam por tudo e por nada, pelo que a viagem foi muito divertida. Enquanto eles se divertiam com as suas charadas, Kabir e eu já conversávamos animadamente, com toda a familiaridade, o que facilitou muito a viagem, mais adiante veremos porquê. Além disso, falávamos Inglês e Hindy, tudo à mistura, pelo que, volta e meia, havia alguém que sussurava “mas em que língua estão eles a falar?”… 

Entrámos no deserto e os jeeps aguardaram a chegada de todos, para fazermos o mesmo percurso em fila indiana e não nos perdermos uns dos outros. Kabir era muito bom condutor e percebia-se que tinha prática do deserto, o que nos aliviou muito, embora as mulheres estivessem sempre a gritar e a agarrar-se a tudo, com um certo receio do jeep tombar, queixando-se das inevitáveis subidas e descidas. 

E logo um pouco depois da partida surgiu um problema que nos obrigou a parar. Um jeep, que não fazia parte do nosso grupo, ficou com uma roda traseira enterrada na areia e não havia maneira de tirá-lo de lá. E quanto mais o motorista forçava, mais ele se afundava. Ele não ia na nossa rota, mas Kabir avistou-o e apercebendo-se de que estava metido em apuros, logo se dirigiu para lá, fugindo assim ao nosso grupo. Todos solidários com o jipe empanado, Kabir pediu que ninguém saísse do jipe. Felizmente que, este ninguém, não me incluía. Kabir era perspicaz e percebeu de imediato o meu espírito aventureiro, pelo que me deixou à vontade para fazer o que quisesse, o que muito apreciei. 

Assim, saímos os dois ao encontro do motorista empanado e ao cabo de uma boa meia hora, lá foi possível desencalhar o jipe. Os dois cavaram até onde foi necessário e colocaram uma tábua de madeira junto à roda. Prenderam um carro ao outro com cordas fortes e com muito empenho, força e destreza, lá foram fazendo manobras em cima de manobras, até que o jeep saiu do buraco passando para a tábua e finalmente se movimentou sobre as areias já normalizadas. Esta foi a primeira aventura no deserto do Dubai. Mas não foi a única. 

Quando finalmente chegámos ao acampamento, já todos estavam no churrasco, nos comes e bebes, mas ninguém se lembrava de perguntar porque nos tínhamos atrasado tanto. Se calhar pensaram que tínhamos andado a passear pelo deserto!... Por isso já tinham iniciado a “festa”. 

Sentada no chão, com que prazer eu apreciava os sabores exóticos de aromas tão suaves como excitantes, numa conversa variada de diferentes idiomas. Cada um com as suas preferências e o buffet circulava livremente, continuando a oferecer de tudo um pouco. Tudo para mim estava perfeito e toda a gente se divertia, cada um procurando o que mais prazer lhe dava, tirando todo o partido possível de uma experiência no deserto, antes que a noite começasse a cair, enchendo o céu de mil estrelas, as mais brilhantes, as mais cintilantes: estava montada a magia do deserto. 

E o encantamento aumentou, quando uma jovem dançarina começou a sua exibição de dança oriental – dança do ventre - com todo o tilintar das moedas a cair na anca e os lenços de seda pura esvoaçantes, de cores exóticas, sob a luz das estrelas, onde ela se movimentava com toda a beleza e graciosidade. 

Quando tudo acabou era noite cerrada e escura. No acampamento, as luzes eram mínimas. Só a lua e as estrelas iluminavam o deserto e todos começavam a procurar os respectivos carros para o regresso ao hotel. No meio de tudo isto não consegui encontrar os restantes do meu grupo, nem o jipe, nem Kabir, meu motorista preferido. Por algum tempo me senti perdida, sem saber que direcção tomar. A verdade é que só via os jipes a debandarem e o acampamento a ficar cada vez mais vazio. Mas não era possível que se tivessem ido embora sem mim!?... 

Olhando em redor, apercebo-me de um pequeno grupo de pessoas todas muito juntinhas. Quem seriam? O que fariam? Não me restando alternativas, vou na direcção delas que, curiosamente, ficaram muito animadas à minha chegada. Só então me apercebi de que era todo o meu grupo, como eu ou mais que eu, assustadas, sem saberem o que fazer. Ah… então o problema não era meu. 

Perguntaram-me pelo motorista e respondi que não fazia a menor ideia, pois nunca mais o tinha visto. E todas encolhidinhas e agarradas umas às outras, perguntavam “e agora, o que fazemos?” Pensei, “temos que ir à procura dele, porque tem de nos levar de volta”. Já todos tinham partido, só nós ali desterradas na imensidão do deserto. Mas elas não estavam com a menor vontade de sair dali para o procurar. Pedi-lhes que se mantivessem no mesmo sítio, para não nos perdermos, enquanto eu iria procurá-lo. 

E lá fui eu. Missões impossíveis sempre estão guardadas para mim. Andei e andei, avistando umas luzes que não percebi muito bem o que eram. Mais perto, percebo que eram luzes de um carro parado, com a porta do lado do motorista aberta. Percebi também que havia duas luzinhas vermelhas, movendo-se lentamente, que só podiam ser cigarros, logo, pelo menos, de duas pessoas se tratava. 

Pouco à vontade, chego junto e pergunto se sabem de Kabir. Um dos dois indivíduos levantou-se, falou qualquer coisa ao outro, que não entendi e logo se afastou, enquanto o que ficou abriu a porta para eu entrar. Na verdade não o reconheci. Não reconheci o rosto dele. E enquanto fomos buscar os outros do nosso grupo, que ficaram numa enorme alegria quando me viram chegar com ele, Kabir comentou com uma certa curiosidade o facto de eu não o ter reconhecido. Respondi que estava tudo na escuridão e que ele estava sem óculos. Mas ele não aceitou e não sem um certo espanto da minha parte, disse “qualquer outra mulher no mundo inteiro podia não me reconhecer, mas tu não”. 

Hum?… eu nem queria acreditar no que ele dizia… mas pensando um pouco, entendi que ele se referia ao facto de eu ser indiana e daí a nossa afinidade. E mais, face a toda a minha experiência de vida, por questões muito peculiares, no seu entender, ele achou que eu devia tê-lo reconhecido, sem qualquer hesitação. Pedi-lhe desculpa, apenas porque aquilo que aparentemente parecia ser uma nota negativa a meu respeito, não era senão um elogio. Interessante!... Ainda mais porque eu tinha idade suficiente para ser mãe dele. 

E lá fomos nós, o último jipe, sempre o último, por isto ou por aquilo. Mas a esta altura eu já me sentia bastante segura. Kabir era confiável e corajoso. Até já tinha esquecido que, na verdade, e foi mesmo por um triz, quase fiquei no deserto. E aí ficava mesmo. Mas, só não fiquei, como aprendi uma preciosíssima lição. 

A páginas tantas, quando já tinha experimentado toda a comida e a dança ainda não tinha começado, ainda era dia e resolvi, para não variar, por minha conta e risco, dar a minha voltinha, sozinha. 

Quase todos tinham ido para os camelos e como já não era novidade para mim, preferi investigar o deserto, do meu jeito. Assim, comecei a caminhar, afastando-me um pouco do acampamento, o que foi um erro. Havia dunas e poços de areia, alguns dos quais, com alguma vegetação própria do deserto. E a páginas tantas deixei-me levar e cometi outro erro, desci pela duna abaixo, até ao fundo, ao poço de areia. 

Enquanto me deixei escorregar achei que era uma sensação e tanto. Eu por ali abaixo e a areia atrás de mim. Senti-me uma criança, apreciando a brincadeira ingénua, com o perigo à espreita, ao qual eu estava completamente alheia. Levantei-me do chão, dancei, fiz umas maluquices e achei que estava na hora de voltar à base. Foi então que tomei consciência da burrice que tinha feito. Uma burrice sem tamanho. Foi tão bom descer… mas… e agora para subir? Um pé à frente e outro atrás, mas estava sempre no mesmo sítio. É claro, não havia a mais pequena firmeza nas areias. Mais um pé e outro e eu só descia. Contra tudo e todos, descia, descia. 

Olhei para o alto e percebi que dali não sairia. Comecei a entrar em pânico. Estava longe do acampamento, não adiantava gritar por socorro. A coisa estava feia. Fiquei quieta, parada, no silêncio, entregue a mim mesma. Que fazer? 

Olhei para o cimo da duna e pensei que tinha que sair dali. A areia não havia de ser mais teimosa do que eu. E mais uma vez, quanto mais esforço fazia, maior era o desastre, mais depressa escorregava e voltava ao fundo. O meu coração começou a bater fortemente e a minha inquietação era desesperante. Senti-me completamente impotente. Aquilo não era uma brincadeira e eu estava seriamente em apuros. Depois de várias tentativas infrutíferas, começo a ficar muito cansada fisicamente e as minhas forças a irem-se. O que fazer? O que tinha ido fazer ali? Para quê?  

Havia uns arbustos com umas hastes bem compridas, se eu conseguisse alcançá-las talvez me ajudassem na corrente contra as areias e caso não se partissem, iria passando de umas para as outras. Esperei um pouco para recuperar as forças e me tranquilizar. E mais uma vez lá fui lutando contra as areias que, por sua vez, tanta luta me davam, parecendo divertir-se às minhas custas, fazendo-me sentir completamente derrotada e com aquele horrível sentimento de impotência a devastar a minha alma e a derrubar consistentemente toda a minha paciência. 

E eu já não sabia mesmo o que fazer nem pensar. Estava morta, fragilizada e tão zangada comigo mesma.  Mas embora exausta não podia desistir, porque isso era desistir de mim e desistir é próprio dos fracos. Foi então que tive outra ideia que decidi pôr em prática. Deixar de competir com as areias, deixar de forçar, ter muita paciência e dentro de um espírito completamente diferente, pus um pé e parei, deixando as areias virem ao meu encontro numa corrida feliz e contente. Deixei-as vir, sem luta e sem medo. Quando estabilizaram, dei apenas mais um passinho pequeno, pequenino e as areias limitaram-se a uma descida proporcional. Parecia que também se tinham cansado. Novamente fiquei a apreciar e dei mais outro passo ainda mais pequeno. E as areias desceram, sim, mas levemente, suavemente, e de cada vez que me movimentava a passada era mesmo a mais curta possível e assim as areias foram sossegando e de repente estava quase a chegar ao arbusto dos ramos compridos. 

Foi então que percebi que todo o esforço que tinha feito anteriormente tinha sido em vão, porque queria subir tudo aquilo de uma só vez. Eu tinha esquecido completamente que estava no deserto. As areias estavam a trabalhar a minha inteligência, mas acima de tudo a testar a minha paciência. Era belo, o deserto, mas a minha relação com ele sempre tinha sido superficial, sempre tinha passado pelos benefícios, as fantasias, as ilusões e naquele momento eu estava a vivenciá-lo na sua plenitude. Com estes pensamentos, calma e tranquilamente cheguei ao arbusto onde me segurei firmemente, com unhas e dentes. E de ramo em ramo, finalmente, consegui atingir o topo, onde de novo me encontrei a salvo. 

De regresso ao acampamento, se eu admirava o deserto, a minha admiração só aumentou e agradeci a lição de paciência e persistência a que ele me tinha acabado de submeter. Tinha aprendido uma das mais duras lições da minha vida e tinha plena consciência disso.  Ali mesmo, no deserto.