No
dia sete de setembro de 1980 eu estava em apuros. Mas os apuros já tinham
começado cerca de nove meses antes, quando um dia disse ao meu marido: “acho
que estou grávida”. Faltava uma semana para o período menstrual aparecer, mas
eu sabia que estava grávida. A resposta dele, contudo, não se fez esperar e bem
ao seu estilo, disse simplesmente: “hum? É impressão tua…” pois claro, era
sempre tudo impressão minha. O facto é que passaram os dias e o período
menstrual não aparecia e como tal, decidi ir ao médico e fazer as análises
necessárias.
Numa
manhã bem cedo, antes de ir trabalhar, recolhi a urina numa garrafa de plástico
para ir ao laboratório, mas como devia ser apenas impressão minha, o meu marido
que era muito boa pessoa, mas nunca facilitava a minha vida, decidiu que
preferia ficar a dormir. E quanto a isso não havia nada a fazer. Barafustei,
mas de nada serviu. Lá fui, toda nervosa, com a garrafa da urina que coloquei
no banco da frente ao lado do condutor, amparada com o meu saco de mão, com
todo o cuidado possível a fim de não se entornar, porque eu queria fazer as
análises o mais rápido possível para ter a certeza do que eu já tinha. Mas
precisava de ter o branco no preto e o preto no branco para começar a tomar
providências.
As
ruas de Ponta Delgada, S. Miguel (Açores), valha-me Deus(!), era só empedrado e
o centro histórico todo muito estreito, com os carros estacionados à balda. Passar
pelas ruelas com curvas, pouco a pouco vira à direita, vira à esquerda, era um
inferno. Nessa altura, ainda não tinham direcção assistida, o que não facilitava
e eu, nervosa para chegar lá, fazer o teste e esperar pelo resultado… numa
curva logo ao entrar na rua, com carros estacionados pela berma, fui apanhada
de surpresa e para não bater, dei uma guinada rápida, esquecendo-me
completamente da urina. Pronto, o frasco foi parar ao chão. Aflita, para não
perder a urina, descorei a direcção e fui justo bater no que estava estacionado
na entrada da rua. Apanhei o frasco e o carro parou enfaixado no outro que
estava parado, pum(!)… estava feita. O dia estava a começar bem. O outro na
cama, no sono dos justos e eu feita num oito àquela hora da manhã. Tombei a
cabeça sobre o volante com os braços em volta e aí fiquei, sem querer pensar em
nada. Só queria não ser eu e não estar ali e… e… e…
Embrulhada
nesta confusão, ouço uma voz de homem com uma pronúncia bem cerrada, tipicamente
açoriana, numa gritaria histérica, como se tivesse morrido alguém e abrindo a
porta de casa, sai na minha direcção aos gritos, pondo-me mais nervosa do que
já estava. E o outro em casa a dormir, descansado da vida, sem se ralar com
nada. Levantei a cabeça que estava sobre o volante quando ouvi as insistentes
batidas no vidro da janela do carro. O Ferreira – que naquela altura eu ainda
não conhecia -, com as mãos à cabeça, começa a desboninar: “tá doida? Nã viu o
que fez”? Deu cabo do carro do mê pai!”
Disse-lhe
que não se preocupasse porque o seguro tratava disso. Mas ele não queria saber,
só estava ralado com o carro do pai. E começou a fazer perguntas estúpidas, por
exemplo, porque tinha feito aquilo. Respondi-lhe entre o choro que, como era
óbvio, não tinha sido de propósito. Tinha sido acidental. Que estava nervosa,
caso ele ainda não tivesse percebido. Que ía a caminho do laboratório e que o
meu marido não se tinha prontificado para me acompanhar. Aí, o Ferreira – que
eu ainda não sabia quem era - já começou a acalmar e a pedir-me também para me
acalmar. Ele era muito engraçado. Depois, tornou-se num dos melhores amigos,
que faria parte de muitas das nossas grandes aventuras pela vida fora, mas
naquela altura era um estranho.
Mas
quando lhe disse que ia para o laboratório fazer análises, logo baixou a guarda,
perguntando com um ar muito constrangido, se estava doente. Respondi que, em
princípio, estaria grávida, mas que estava nervosa. Então ele cedeu, parou
definitivamente de resmungar comigo e começou a ter pena duma mulher sozinha,
indefesa, desprotegida do marido. Até lamentou o facto dele não ter querido
acompanhar-me. E ainda sem saber quem eu era, retorquiu “ai o sacana, ficou dormindo,
na querem lá ver!” E então, a curiosidade foi maior e resolveu perguntar: “mas
quem é o sê marido?” Disse-lhe quem era e ele olhou para mim com uma expressão
que nunca mais esqueço, com os olhos muito abertos, repetindo o nome dele, nem
queria acreditar no que ouvia. “Ah… deixa estar, ê digo-lhe como é… então ficou
na cama em vez de se levantar e ir contigo?”… aí já me tratava por tu, com
grande intimidade. E como se nos conhecêssemos há muito tempo, disse: “vamos lá
a casa, quê vô fazê esse malandro se lavantá e é agora”…
Bem,
lá fomos, porque o carro, apesar da batida, andava. E foi ele conduzindo por
conta do meu estado de nervos. E chegando a casa lá foi tirar o outro da cama
que acabou por ir comigo às análises, já quase a fechar a porta do laboratório.
E os dois ora riam ora se insultavam, ora praguejavam ora gracejavam. Enfim,
tinha que me habituar a tudo aquilo, àquela gente, àquelas situações e
percalços inusitados. E uns dias depois lá veio o resultado da análise que dava
a gravidez como confirmadíssima. Fora de questão ser apenas “impressão minha”…
E,
como eu ia dizendo, no dia sete de setembro de 1980, estava eu na clínica onde
o meu filho nasceu. Já o chegar à clínica foi outra cegada. Uma confusão dos
diabos.
Era
uma sexta-feira à noite e estávamos com um grupo de amigos muito chegados,
quase família. Nesse fim de semana o meu marido estaria de emissão, o que
significava que trabalhava sábado e domingo pela noite dentro. Eu estava
cansada e ia aproveitar para descansar. Diziam-me para tirar férias de parto e
ficar em casa, mas eu preferia deixar todo o tempo possível para depois do
nascimento, a fim de ficar com o meu filho o máximo de tempo antes de regressar
ao trabalho. Os nossos amigos iam passar o fim de semana algures no Alentejo e
insistiam para eu ir com eles. Precavida como sempre fui, achei que a partir
daquele momento tinha que ficar atenta, pois acabava de entrar nos dez dias
antes da data prevista pelo médico. E diziam ah, hão-de passar os dez dias e
mais outros tantos e tu à espera… é o primeiro filho… é sempre assim (ou quase
sempre).
O
facto é que eu disse “não, obrigada, mas não vou. Daqui não arredo pé. Se ele
decidir nascer quero ser assistida pelo meu médico”. E riam. Deixá-los rir,
pensava eu. Ninguém me dizia o que eu havia de fazer(!). E assim, contra tudo e
todos, fiquei no meu canto. Isto foi numa sexta-feira. No sábado seguinte
quando acordei, eram umas sete horas da manhã, senti uma forte vontade de fazer
xixi. Queria dormir mais, mais a bexiga não deixava, não dava tréguas.
Contrariada, levantei-me para ir à casa de banho. E voltei para a cama,
supostamente para continuar o meu precioso sono. Mal fechei os olhos a bexiga
começou novamente a dar sinal e pensei “o que raio é isto que não me dá
sossego, quero dormir e não consigo?!”
E
mais uma vez me levantei para ir à casa de banho, mas não saía xixi. De repente
começo a ver uma água a correr pelas pernas abaixo e em seguida, a água ensanguentada.
Pensei mais uma vez “que raio é isto?” Mas logo se fez luz e pela dor que senti
na bexiga, percebi que as águas estavam a rebentar. Bingo! Se eu tivesse ido
passar o fim de semana para o Alentejo estava mesmo lixada, pensei. As dores
começaram com toda a força e percebi que tinha entrado em trabalho de parto.
Voltei ao quarto, já quase sem poder respirar com a força das dores e tentei
acordar o meu marido várias vezes, dizendo-lhe que tinha que se levantar para
me levar à clínica. “O que é?”, dizia ele. “Deixa-me dormir”. Desculpa,
dizia-lhe eu, levanta-te o bebé vai nascer. “Não pode ser, ainda é cedo, faltam
dez dias”. O bebé vai nascer, levanta-te para me levares à clínica que não
tenho tempo a perder. Respondeu: “Deita-te e dorme, é impressão tua”(?).
Percebi que mais uma vez não podia contar com ele. O que fazer?
As
dores eram tantas e tão em cima umas das outras que eu tinha a certeza de que
estava a entrar em trabalho de parto e uma vez que já tinha percebido que só
podia contar comigo, tinha que ser prática. Ainda abri o roupeiro para tirar um
vestido, mas as dores já não me deixaram chegar lá. Saquei do que tinha usado
no dia anterior e que estava em cima da cadeira e com muito custo lá vesti.
Peguei numa toalha turca grande e enrolei à minha volta por baixo do vestido.
Peguei no saco de mão e saio porta fora decidida a mandar parar o primeiro
carro que parasse, fosse quem fosse. E assim foi. Naquela figura, fiquei no
meio da estrada e mandei parar um carro conduzido por um indivíduo qualquer, o
primeiro que apareceu. O homem não queria parar, mas perante a minha
insistência e a minha figura, lá parou. Abriu a janela do carro e antes que
começasse a falar pedi-lhe por favor, que me levasse à Clínica de S. Gabriel,
na Almirante Reis.
A
cara dele era um espanto. Não percebia nada. Já não sei o que ele disse, mas
expliquei que estava em trabalho de parto, o que dava para perceber por causa
do toalhão enrolado, e que precisava urgentemente de dar entrada na clínica
onde o meu médico me assistiria. Ele só perguntava: “então, mas está sozinha,
não tem ninguém que a leve?” E eu nem sabia o que responder e nem tinha tempo
nem paciência para entrar em detalhes. Disse-lhe que não, mas ele estava
baralhado, confuso e sem saber o que fazer nem o que pensar. Não lhe dando
alternativa, respondeu: “bom, está bem… venha lá…”, ao mesmo tempo que abria a
porta para eu entrar, constrangidíssima com a situação, mas sem alternativa. Há
alturas na vida em que não é possível parar para pensar, porque não há mesmo o
que pensar. Era o caso. A única coisa que eu tinha que fazer era agir e agir
rapidamente para não ter dissabores. Mais tarde, com certeza pararia para
pensar em tudo aquilo. Naquele momento, era tudo menos oportuno.
E
quando já estava a entrar no carro, começo a ouvir uma voz, ao longe: “eh,
espera aí, onde é que vais”? Onde é que vais(?)… era mesmo essa a pergunta
certa para o momento. Reconhecendo a voz do meu marido, sinceramente não sei se
fiquei mais aliviada ou mais nervosa do que já estava. “Eh, o que é isso,
espera, espera!”. O sujeito, que já estava resignado a ter que me levar, olha e
pergunta: “quem é você?” E antes que ele respondesse, apressei-me a dizer que
era o meu marido. O homem ficou possesso da vida. “Seu marido, e deixa a
senhora neste estado, nesta situação, mas que raio de pessoa é você, não tem
vergonha?” O outro, com as calças, uma perna enfiada e outra por enfiar; um
sapato na mão e outro calçado, e com as chaves do carro no bolso das calças,
começa a responder: “cale-se e vá-se embora”. Mas o homem não se calava: “não
tem vergonha duma cena destas, onde é que já se viu, deixar a mulher numa
situação destas(!?)”; “cale-se e pode ir andando”, respondia o meu marido.
E
por momentos os dois pegaram-se e eu a ver que ainda ia haver porrada e tudo o
que eu queria era ir para a clínica para o meu filho poder nascer, já que tinha
chegado a sua hora. E desesperado, chamando nomes por todo o lado, o sujeito
dizia “nunca vi uma coisa assim(!)”… e com isto lá se foi furioso da vida.
Entrei
no nosso carro e lá fui a caminho da clínica. A meio do caminho tive que pedir
para ele acelerar, porque realmente não tinha posição para estar. Chegados à
porta da clínica lá saí com imensa dificuldade já em andar, enquanto ele ia “só”
estacionar e tomar café. Entrei, fui à recepção e assim que olharam para mim
imediatamente chamaram uma maca que me levou direitinha à sala de partos.
Chamaram o meu médico, esperei por ele uma hora e às dez menos dez da manhã, o
meu filho nascia. Agora estava tudo bem ou quase tudo, uma vez que as coisas
são como podem ser.
Entretanto,
o meu marido que tinha ido apetrechado de câmara de filmar e fotografar, porque
estava muito na moda essas coisas, depois de ter estacionado, tomado o café e
sei lá que mais o quê, calma e tranquilamente, entrou na clínica, dirigiu-se à
sala de estar, abriu o jornal e refasteladamente aí ficou. A recepcionista,
vendo-o ali, sem dizer nem perguntar nada, teve a percepção de que tinha a ver
comigo e perguntou-lhe o que estava ali a fazer: “a minha mulher acabou de dar
entrada”. A sua mulher já teve bebé, está tudo bem e pode subir para os ver,
respondeu a recepcionista. “Não pode ser, ela acabou de entrar”. A sua mulher
já teve bebé, pode subir, continuou a empregada. Mas ele não se convencia,
enquanto a outra lhe afirmava que o filho já tinha nascido. Ele só achava que
não podia ser, que era muito cedo. Só lhe faltou dizer que era “impressão dela”(!).
E
no dia sete de setembro de mil novecentos e oitenta, mesmo sem filme e sem
fotos, contra tudo e todos, o Henrique, nosso único filho, nascia, por sua
livre e própria vontade.