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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O jardineiro - 63


Há muito tempo que eu queria plantar uma árvore. Não é que já não o tivesse feito noutros tempos, noutras circunstâncias, em outras terras. Mas agora era diferente. Os ajardinados do condomínio onde vivo, apesar dos cuidados regulares dos jardineiros da Câmara, têm-se degradado ao longo dos anos. No início eram muito bonitos, com algumas árvores, muitos arbustos e canteiros floridos que embelezavam o lugar. Contudo, com o passar do tempo, muito se têm deteriorado e modificado para pior, não para melhor. Os animais domésticos que vão a passear à rua com os seus donos, muitas vezes também contribuem para isso, porque quem os leva não tem o cuidado que deveria ter. Mas não é só isso. Parece que há mesmo quem goste de estragar por puro prazer. É uma coisa que não consigo compreender.

Como gosto da natureza e de uma paisagem bonita, os jardins sempre fizeram as minhas delícias, pela variedade de forma e de cor que as plantas e as flores podem adquirir. Depois há a diferença entre o Inverno e o Verão e toda esta modificação é por demais interessante de observar. Por isso ando sempre de olho nos jardins. E o que reparo, com grande tristeza, é que cada vez estão mais pobres, porque à medida que as plantas vão morrendo, muitas vezes por razões não naturais, não voltam a ser repostas e assim, sucessivamente, os relvados vão ficando mais monótonos porque, além da relva, não têm mais nada.

Falando com uma vizinha especialmente minha amiga, também ela comentou o facto de achar que, um dos relvados em especial, estava muito pobre em matéria de vegetação. E as duas começámos a ponderar hipóteses de fazer alguma coisa no sentido de inverter essa tendência. Mas o quê? Umas árvores de fruto seria interessante. Era um espaço tão desaproveitado e que podia ser muito bem rentabilizado, por isso a ideia de árvores de fruto agradou a ambas. Mas teria que ser uma coisa que se aguentasse com o clima e que não desse muito trabalho. E de repente ela lembrou-se que tinha em casa um pequeníssimo abacateiro a despontar na terra de um vaso. Tinha tido abacates e depois de comer um, em vez jogar o caroço fora decidiu pôr na terra e passado algum tempo começou a despontar. Um abacateiro? Seria uma boa ideia? 

Comecei à procura de informação e percebi que precisava de muita água, pelo que a melhor altura para o plantar no jardim seria no início do Outono, quando chegam as primeiras chuvas. Porém, a esta altura era início de Verão. Se por um lado era bom por causa do calor, por outro, corria o risco de secar, o que não queríamos que acontecesse em hipótese alguma. Era certo que era apenas uma experiência, contudo gostaríamos que desse certo. E depois de muito pensar decidimos que não iríamos esperar pelo Outono. Íamos pô-lo na terra e todos os dias teríamos o cuidado de o regar convenientemente para que se aguentasse. Assim fizemos.

Um belo dia, com luvas de plástico e uma pequena pá, lá fomos para o jardim e bem no centro do relvado vazio começámos a cavar o suficiente para enterrarmos bem o pé de abacateiro que já tinha uns bons centímetros de altura e folhinhas a rebentar. Uma graça. E embora perdido no imenso relvado, pensávamos que se resultasse, iria ficar ali muito bem. É claro que os vizinhos que passavam ficavam muito admirados e queriam saber o que raio estávamos a fazer. E cada um dava a sua sugestão e metiam o bedelho onde não eram chamados. Alguns até já queriam outro ali e mais ali, etc…, dando sugestões que pareciam mais uma ordem, o que me pareceu uma coisa espantosa!

A questão é que ninguém liga, ninguém quer saber, todos têm muito em que pensar e o que fazer, percorrendo os assentos dos cafés os dias inteiros, concentrando-se apenas e somente no seu umbigo, além das beatas que atiram para o chão, dos cigarros que não param de fumar e etc…., contudo, quando alguém tenta fazer um pequeno gesto que pode marcar a diferença, as vozes fazem-se ouvir, como se sempre estivessem estado na ribalta e na primeira fila do espectáculo da vida. Sim, porque, ali, o público éramos nós, a minha amiga e eu. E ainda assim, para outros, a figura que estávamos fazendo, de rabo para o ar com as mãos na terra, parecia-lhes um pouco imprópria, para não dizer muito “reles” ou outras coisas piores que lhes ia na cabeça.

Não nos incomodámos nada com isso e continuávamos o nosso plano para deixar o pé de abacateiro o mais bem instalado possível na sua nova morada e a única coisa em que nos centrávamos era no gozo e na satisfação que aquilo nos estava a dar no momento e depois a curiosidade do desenrolar dos acontecimentos. Púnhamo-nos a adivinhar como ele se iria aguentar, se iria resistir e adaptar-se à mudança. E caso vingasse, o facto de termos ali uma árvore de fruto plantada pelas nossas mãos, era deveras um sentimento muito agradável. Se desse frutos então seria a cereja em cima do bolo. Mas mesmo se não desse, só o facto de ela crescer e estar ali, para nós já era uma dádiva enorme. Só isso.

Com efeito, o pé de abacateiro nos primeiros dias da sua existência em plena liberdade no jardim era uma emoção e tanto para nós. O cuidado e a preocupação que exigia, dava-nos a sensação de que tínhamos entre mãos um bebé que carecia de todos os nossos cuidados e de toda a nossa atenção. Era uma alegria ir espreitá-lo e perceber que continuava lá, direitinho. Às vezes eu pensava que se calhar deveríamos ter esperado pelo Outono porque, de facto, o calor secava-o muito. Mas ele era rijo. E se umas folhinhas secavam logo outras apareciam e estávamos sempre em apuros. Ora tristes, porque parecia que estava a secar, ora felizes e sorridentes porque mais folhas novas surgiam. Houve até várias tentativas de o fazer desaparecer, não sei porquê. Só sei que mais do que uma vez cheguei ao pé dele e estava abafado, com porcarias em cima dele, mostrando bem a intenção de quem o tinha feito. Mas eu não ia deixar-me intimidar por ameaças que não tinham outra intenção senão a de desrespeitar a natureza, ao mesmo tempo que não dignificavam quem o que tinha feito.

É preciso esclarecer que quando me veio esta ideia, a primeira coisa que fiz, foi enviar um email para a Junta de Freguesia com conhecimento para outras entidades oficiais, pedindo a devida e formal autorização para este acto, uma vez que era uma intervenção numa área que não me pertencia. Contudo, a resposta a esse conteúdo nunca chegou. Nem sim, nem não, o que me deixava um pouco chateada e na dúvida. Até que um dia encontrei um jardineiro que estava a regular a rega automática e então nem pensei duas vezes tendo ido imediatamente falar com ele. E da conversa com ele resultou que eu podia perfeitamente fazê-lo. Ele era o responsável do pessoal que trabalhava naquela área e portanto deixou-me completamente à vontade para o efeito. Disse-me, inclusivamente, que havia pessoas que o faziam. Apenas precisava de falar com os colegas para que, quando viessem cortar a relva, por distracção, não passassem a máquina por cima. Nesse sentido, quando plantei o abacateiro, tive todo o cuidado em fazer uma cerca com pedras brancas em volta, o que o deixou bastante bem destacado. E com esta conversa fiquei mais aliviada e não pensei mais no assunto. A minha decisão foi para a frente.

O Verão passou e o abacateiro desenvolvendo-se lindamente. A certa altura nem precisou mais dos nossos cuidados especiais, porque todas as noites a rega automática entrava em funcionamento e a água que recebia era mais que suficiente para o seu crescimento. Estava finalmente vingado e independente.

Um dia eu vinha a subir as escadas que ligam a praceta de baixo à minha, num nível mais acima e vejo um jardineiro a cortar a relva, mesmo junto ao abacateiro. Corri na direcção dele para lhe pedir com delicadeza, o cuidado devido com a planta. Era um indivíduo na casa dos trinta e muitos, de aspecto rude, pele muito estragada do sol e parava a máquina para dar uma fumaça no cigarro que mantinha entre os dedos. 

Quando cheguei ao pé dele, imediatamente parou, desviando o cigarro, o que muito agradeci. Pedi-lhe apenas que tivesse o máximo cuidado com o abacateiro que estava em início de vida, para ver se ele vingava. Olhou para a planta e perguntou se me estava a referir àquilo, apontando com o dedo. Respondi que sim e que por ser ainda muito pequeno, poderia passar despercebido, apesar das pedras em círculo à sua volta. 

Ele continuou a olhar vagarosamente para a planta e foi fazendo umas perguntas em relação ao assunto em questão. Pela pronúncia percebi imediatamente que era brasileiro. E no seu jeito de falar, lento e afável, genuinamente brasileiro, foi-me tranquilizando, dizendo que eram sempre cuidadosos com o que faziam. Ficou um pouco espantado por se tratar de um abacateiro, por conta do clima, mas era tudo uma questão de sorte. E mais umas quantas coisas acerca do mesmo. Dar fruto, não dar fruto, até me disse que não me preocupasse quanto a isso que ele mesmo poderia, na altura certa, fazer uma enxerto ou coisa que o valha, para o tornar produtivo. Mas se calhar nem seria preciso. 

Comentou que num espaço tão grande bem podia haver mais árvores de fruto. Pois, respondi-lhe que pensava o mesmo. Por isso mesmo tinha começado com aquele e se vingasse, o meu plano era “invadir” os jardins com outras árvores. Aquela seria a experiência de partida. E só então ele percebeu que tinha sido eu a mentora do projecto. Quando se apercebeu disso, perguntou na sua bela pronúncia brasileira que eu tanto gosto e tanto amo, quem tinha plantado ali o abacateiro. 

Pensando que ele já tinha percebido isso, respondi com toda a naturalidade que tinha sido eu. Ah… você? Perguntou. Sim, respondi novamente, sem falsa modéstia, mas com a maior das humildades. E o jardineiro, uma pessoa simples, bem simples, de aspecto displicente e até um pouco rude, mas só por fora, porque por dentro já tinha mostrado grandiosidade de espírito, o jardineiro do meu condomínio, a pessoa mais banal, talvez sem instrução, de baixo nível social e sei lá mais o quê, espantado, espantadíssimo, uma vez mais perguntava, “mais foi você qui plantou…?” Sim, fui eu, respondi, sem perceber muito bem quanto espanto e quanta admiração, pensando até se teria feito alguma coisa errada. 

E olhando bem para mim, bem fundo nos meus olhos, enquanto eu também olhava para ele bem dentro dos seus olhos, à espera do desfecho de tanta admiração, um pouco desconcertada até, surpreendentemente, aquela criatura de natureza humilde, deixando-me  sem palavras, respondeu: “Parabéns… parabéns, viu!”

Parabéns(!)... dizia ele...

Esperava tudo menos uma reacção daquelas. Esperava que ele me chateasse a paciência porque aquilo lhe dava mais trabalho a cortar a relva. Esperava que ele nem falasse comigo. Esperava que ele encolhesse os ombros desdenhando a existência do abacateiro. Esperava tudo, tudo, menos a reacção que teve. 

De repente percebi o quanto somos preconceituosos, mesquinhos e tanta coisa mais. O importante ali, o inusitado e o que realmente é relevante é que o homem, que aparentemente era insignificante, pelas suas roupas, por tudo, bem pelo contrário, não era nada disso. Pelo contrário sim, era um ser altamente sensível, um diamante em bruto, que simplesmente teve a nobreza de saber apreciar e valorizar um pequeno gesto de ter plantado uma árvore, que para ele, contrariamente ao meu superficial julgamento, era uma coisa muito especial.

E eu agradeci à vida por ter encontrado no meu caminho aquela criatura sem rosto, de alma grande, grande. Era eu que deveria dar-lhe os parabéns e não ele a mim. O seu gesto foi de uma rara beleza e jamais esquecerei, pois é ele que está de parabéns, não eu.


quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Mohamed - 62

 

Mohamed era paquistanês com nacionalidade inglesa. E como um bom muçulmano, fazia questão de ser tratado por “Mohamed”, esquecendo por completo o seu nome. É que assim ninguém teria dúvidas quanto às suas origens. E fazia parte de uma equipa de técnicos ingleses contratados pela RTP, para a instalação do novo Estúdio com equipamento todo moderno àquela data.

Eu acabava de  chegar do Hare Krisnha, onde tinha ido almoçar, e onde de vez em quando ia, para variar a comida. Por acaso havia arroz indiano que eu adoro e decidi levar um prato para me deliciar ao lanche. Ao entrar na RTP dirigi-me imediatamente ao novo estúdio onde encontraria Mohamed, a fim de partilhar com ele o meu precioso arroz, pois calculei que ele o apreciaria tanto quanto eu.

Mahomed não saía daquele estúdio nem por nada. Os outros cumpriam um horário, saíam para ir almoçar, para ir jantar, etc…, Mohamed não arredava pé enquanto não terminasse a tarefa a que se tinha proposto e assim passava os dias ali enfiado, quase sem comer nem dormir. Sem comer, porque não comia da nossa comida. Sem dormir, por conta das largas horas em que se embrenhava. Tinha o computador pessoal sempre ligado apenas para falar com a mulher e os filhos pequenos e matar saudades.

Agora trabalhava sozinho. A equipa tinha-se ido embora, só ele ficara. Todo o trabalho estava por sua conta. A única pessoa com quem falava era comigo. Negava-se a falar com quer que fosse.

O dia anterior tinha sido um pesadelo. O Director reuniu com os subdiretores e segundo eles, Mohamed tinha criado um problema. Um problema não, um problemão. E como intermediária fui imediatamente chamada. Eu não conseguia compreender porque não falavam directamente com ele ou porque não mandavam um técnico? Melhor ou pior, toda a gente falava inglês. Seria preconceito por ele ser muçulmano? O facto é que foi em mim que delegaram as conversações. É certo que eu era secretária de Direcção, mas ainda assim não seria só por isso. Provavelmente achavam-se todos bons demais para falar com um reles técnico de manutenção de televisão de origens pouco desejáveis, de acordo o o padrão deles. Mas o rapaz até tinha nacionalidade inglesa!?...

Enfim, o certo é que o material tinha chegado num camião TIR que, conforme ordens expressas de Mohamed, estava estacionado mesmo à porta principal do edifício da RTP. E isso implicava muita coisa indesejável. Interrupção de trânsito em plena Avenida 5 de Outubro e àquela hora! A qualquer que fosse a hora já era mau, mas às seis horas da tarde era péssimo. Seria mesmo necessário ordem policial para desviar o trânsito, o que causaria aos condutores um enorme transtorno.

E lá tinha que ir eu levar o recado. É claro que eu chegava ao pé dele e não dizia que sua excelência o meu director não queria o camião TIR à porta. Eu chegava e dizia-lhe muito simplesmente “aqueles idiotas” não querem o camião TIR aqui. Mas isso eles não sabiam nem tinham que saber. E Mohamed estava-se nas tintas. Ele queria e quem mandava era ele. Estava-se nas tintas para quem quer que fosse. E a bem da verdade, também se recusava a falar fosse com quem fosse, a não ser comigo. Dizia que não queria conversas com ninguém, apenas tinha que fazer o trabalho dele e ninguém lhe dava ordens. Realmente eu seria a última pessoa a dar-lhe ordens. Era apenas portadora delas, que eram mais mensagens que outra coisa. Mas agora a questão ia um pouco mais além. Era preciso dissuadi-lo a encontrar uma solução para meter os equipamentos no interior do edifício sem que o camião tivesse que estacionar à porta. Para isso teriam que vir em carrinhas pequenas, transferidos do camião parqueado num sítio que não perturbasse a ordem pública, para então se dirigirem à RTP e descarregarem os equipamentos.

E quem disse que Mohamed queria isso? Ele dizia que os equipamentos eram muito sensíveis e não podiam andar a passar de um lado para o outro. Portanto, essa hipótese estava completamente fora de questão.

Muito bem. Percebi, tomei nota e voltei aos meus superiores hierárquicos para lhes comunicar a decisão dele e o motivo da recusa em retirar o camião da porta da RTP. Os três ficaram lixados, por assim dizer, não sabendo mesmo o que fazer. A questão era tão delicada que começaram a implorar-me que o convencesse a dissuadi-lo. Apelaram para o facto de ele se entender muito bem comigo e da necessidade de não serem eles a interferir para não haver problemas e chatices a outro nível. Acontece que eu também achava que não tinha nada que me chatear por causa dum problema daqueles que, verdadeiramente, não me dizia respeito. Só porque ele estava englobado na minha direcção? O director e subdiretores e quem quer que fosse mais, que se metessem ao barulho. Mas ele a si ouve-a, diziam eles. E uma espécie de chantagem emocional começou a eclodir…

Uns anos atrás, uma outra situação análoga também surgiu com um rapaz dos países de leste que esteve a fazer um estágio na RTP e como era técnico de manutenção, foi dado à nossa direcção. E surgiram tantos problemas, que o coitado vinha ter comigo a queixar-se, sendo que uma vez até as lágrimas lhe vieram aos olhos. Os colegas não reagiram nada bem à sua presença. Implicavam com ele por tudo e por nada, criando à sua volta um mau ambiente desgraçado. A verdade é que lhe dificultavam imenso a vida só porque ele era estrangeiro. E como  fazia parte do meu nipe administrativo, era comigo que ele vinha ter e era comigo que desabafava. Era a única pessoa que lhe dava algum apoio. Para mim é indiferente a nacionalidade, a raça, a etnia ou até mesmo a religião de cada um. E sinto-me completamente à vontade se tenho que conviver com quem quer que seja, desde que me respeitem, só isso. Quanto ao resto está tudo bem. Por isso não entendo estas situações. Conviver com outros diferentes de nós é até enriquecedor. Não temos que ser todos iguais!

E Mohamed continuava a bater o pé que quem mandava era ele. O trânsito na Avenida estava parado. Liguei para a Logística para chamarem a polícia de trânsito que decidiria o que bem entendesse e lavei as mãos desse assunto entre superiores e Mohamed. Essas não eram as minhas funções. E assim se fez, para que ambas as partes se acalmassem. A polícia conduziu o trânsito por outra via e o camião descarregou todo o material com a segurança necessária que Mohamed fez questão de exigir e tudo se acalmou.

O facto é que durante os largos meses em que esteve lá a trabalhar, o assunto Mohamed, de ambas as partes, era recambiado para mim. Ninguém queria ter contactos com ele. Nunca ninguém percebeu que ele era apenas eficiente e responsável e que não estava ali para agradar a ninguém, a não ser para fazer o trabalho para o qual tinha sido pago e incumbido sem falha e sem erro.

E estava eu de prato na mão quando entrou um colega que, com jeito de quem fareja alguma coisa e não encontrando o que procurava, me perguntou como se diria ferro de soldar em inglês. De soldar eu não fazia a menor ideia, por isso limitei-me a dizer “iron”(?) e logo Mohamed se dirigiu ao lugar certo, empunhando um ferro de soldar, que passou para a mão do outro. Este agradeceu ao mesmo tempo que desdenhava o facto de não se ter lembrado de dizer o mesmo que eu, ou seja “iron”, simplesmente. E foi-se.

Foi então que Mohamed deu conta do prato de arroz que estava na minha mão. Olhando, logo percebeu do que se tratava e esfomeado, sem mais delongas agradeceu, passando das minhas mãos para as dele. A minha ideia era dividir com ele, mas ele já tinha decidido e agora eu já não tinha coragem para lhe dizer nada. E num instante, perante o meu olhar de espanto, o arroz desapareceu. Desapareceu da minha mão e desapareceu da minha vista porque ele o devorou com uma sofreguidão e tanto. O meu delicioso arroz lá se foi…

Mas tudo bem. A minha boa acção do dia estava feita.

Outros dias viriam e mais arroz indiano eu haveria de conseguir, com ou sem Mohamed.

 


quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Um jantar em casa da Clara - 61

 

Um jantar em casa da Clara é sempre um acontecimento e tanto. Há sempre alguma coisa fora do normal. Por exemplo, o jantar é às 20,00 e às 20,30 ela ainda está fora de casa e como se fosse a coisa mais normal desta vida, telefona a pedir a algum dos convidados para ir adiantando o jantar, por exemplo. É só um exemplo.

Mas este não foi o caso. O jantar tinha sido feito pela empregada, um bacalhau qualquer no forno que deveria estar uma delícia. À parte os atrasos normais, tudo parecia correr bem, dentro da normalidade. Vieram umas entradas como de costume, enquanto o bacalhau estava ainda no forno. Muito se conversou e se riu como o habitual. As conversas foram postas em dia e tudo serve para descontrair enquanto o bacalhau estava a tostar.

A salada esgotou-se, o pão, o queijo e os fumados andavam de um lado para o outro, mas já ninguém os queria. O bacalhau estava atrasado, tardava em aparecer ou simplesmente não queria ir para a mesa, quem sabe?!... O facto é que a fome tinha ido passear e estávamos todos muito bem. Mas o tal do bacalhau especial lá apareceu, finalmente, embora não estivesse exactamente no ponto. Mas isso não interessava. Só tinha que ser comido e ponto final.

A enorme travessa deu entrada na sala de jantar, fumegando a toda a pressão. Mesmo já sem fome, é claro que todos gostariam de provar o bacalhau e talvez comer um pouco mais da conta. É normal e a Clara ficaria toda contente, embora não tivesse sido ela a cozinheira, mas isso também já é costume.

Servidos os pratos com cada um dizendo “chega(!)”, só um pouquinho, é muito, está bem assim, etc…, etc…, etc… o bacalhau chegava finalmente a todos os pratos e o vapor pairava em todos eles, pelo que foi preciso esperar e começar pelas bordinhas. Alguns aguardavam que esfriasse, enquanto outros teimavam em arrefecer à pressa. E as garfadas começaram a entrar, com todos queixando-se de que estava realmente muito quente, pois tinha acabado de sair do forno a uma temperatura altíssima.

Chegou a minha vez de experimentar o bacalhau e a primeira garfada entrou também ainda bastante quente. Tão quente que nem deu para saborear devidamente. E seguiu-se a segunda garfada que me deixou um pouco desconcertada pelo sabor. Seria ainda de estar quente? Esperei uns segundos e fui à terceira garfada. Não, alguma coisa não estava bem. Fui à quarta garfada e corri para a casa de banho mais próxima para deitar fora. O bacalhau estava intragável. Em meu entender estava azedo. Dei o alerta, avisando expressamente o meu filho que não comesse e disse em voz alta que o bacalhau não estava bom. Todos ficaram parados olhando para mim e uns para os outros, enquanto a Clara declarou, com o seu ar de autoridade número um, que não havia a mais pequena possibilidade de tal acontecer. 

Ela podia dizer o que quisesse, o que eu sabia é que o bacalhau estava azedo e intragável. Comer aquilo era ir parar ao hospital, com toda a certeza. E enquanto eu continuava a alertar para terem cuidado, a Clara continuava veemente na sua decisão de “não, não pode ser, é de todo impossível!”. E queria à força que todos comessem o bacalhau que ela afirmava com toda a segurança que estava perfeito, porque não podia estar estragado.

Mas o bacalhau estava efectivamente azedo, independentemente do esforço que ela fazia para que acreditássemos no contrário. As pessoas começaram a comer e começaram a constactar o facto. Alguma coisa não tinha corrido bem, sem que a Clara não o quisesse admitir. Mas isso também era normal. Contudo, comer aquilo, era impensável. E os pratos começaram logo a ficar parados, os talheres sem ir à boca, enquanto a Clara continuava a debater-se fervorosamente na sua tese de que o bacalhau não tinha como estar estragado. A questão é que contra factos não há argumentos, sejam eles quais forem e venham donde vierem e a Clara não entende isso.

A travessa tinha saído do congelador directamente para o forno. Ah(!), então não era do dia. Era coisa já de trás. Mas isso só por si também não justificava nada. Tinha tido um outro jantar há alguns dias, com uns colegas de trabalho e pediu à Fátima que fizesse duas travessas de bacalhau. Mas só foi preciso uma e por isso a segunda tinha ido directamente para o congelador. Não havia como não estar bom, continuava. Só que por esta altura já todos estavam convencidos do mesmo eu. E embora ela tivesse dado duas garfadas sem o admitir, o peso de todos estarem do mesmo lado, pesava, porque agora ela estava sozinha, debatendo-se ainda por uma causa aparentemente perdida. E neste momento já ninguém estava mesmo interessado no bacalhau. Além de que também já não havia muita fome, por isso o bacalhau foi de vez retirado da mesa de jantar, bem como os pratos.

Começaram a chover as alternativas para o bacalhau, já que todos estavam a contar com isso e a Clara queria até ir fazer alguma coisa para substituição. Não querendo dar mais trabalho, todos começámos a dizer que não era preciso mais nada e tal e coisa, coisa e tal, mas o Fernando decidiu que se pediriam pizas para concluirmos o jantar. E com o acordo de todos, assim fez.

Entretanto, comentário daqui, comentário dali, a Clara um pouco desapontada, connosco a tentar desvalorizar a questão, que o que importava era estarmos todos juntos, etc…, continuava a falar do outro jantar em que os colegas tanto apreciaram o bacalhau, que estava óptimo e ninguém tinha ficado doente. O bacalhau, que tinha sido feito pela Fátima, mas duas travessas era demais e por isso foi só uma para a mesa. Entretanto chegam as pizas e toda a gente com fome ou sem fome, se atirou às pizas que estavam óptimas, apetitosas e gulosas e já ninguém se lembrava nem queria saber do bacalhau.

Mas a Clara, contra tudo e todos, continuava em jeito de resmunganço, sempre a dar a entender que estava aborrecida e sempre sem entender a cena do bacalhau, que afinal não era absolutamente fresco, uma vez que já tinha sido feito anteriormente para outro evento. Que tinha ido para o congelador e agora tinha sido retirado directamente para o forno.

Sim, mas quando no outro jantar se tirou a primeira travessa do forno para ir à mesa, a segunda deu entrada no forno. E só depois de se perceber que essa segunda não era mesmo necessária, se decidiu retirar do forno para ir para a congelação. Ah!?... ah mesmo!!!…

Pois é. E todos ficámos estupefactos a olhar para a Clara, com ela mais que surpreendida. É que a travessa entrou no forno bem quente uns minutos, para de seguida ser retirado. O suficiente para o arruinar.

Estava finalmente esclarecido o mistério do bacalhau azedo, provavelmente cheio de salmonelas mas que, segundo opinião dela, não tinha a mais pequena hipótese de estar estragado(!?)… 

E fim de papo.


quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O Carlos - 60

 

O Carlos tinha dezanove anos, era quase uma criança, mas um grandalhão que parecia ter uns quarenta. Alto, excepcionalmente bem constituído, um vozeirão que chegava a impressionar, uma figura que era mais um figurão. 

Tinham-me dito que viria uma pessoa para me ajudar. Não dei importância ao assunto. Contra tudo e todos eu sempre conseguia dar conta do recado e ter tudo sob controlo. Podia ir para casa de rastos, cansada, exausta, deitar-me a pensar no planeamento de trabalho para o dia seguinte, mas o facto é que não sabia ser de outra maneira. Eles sabiam e tinham bastante consciência disso, por isso mesmo providenciaram a contratação de uma pessoa temporária, até ver. E um dia alguém entrou na sala acompanhado do Carlos, que eu não conhecia, nem fazia ideia de onde tinha saído aquela ávis rara. 

Entraram os dois e parei o meu trabalho. Fiquei a olhar para ambos e foram feitas as devidas apresentações. O Carlos ia ficar sentado à minha frente, no outro lado da sala, junto à janela. E seríamos só os dois. Isto era nas antigas instalações nos Estúdios do Lumiar. Uma sala pequena, interior, feita de divisórias de vidro, contígua à dos legendadores. Umas instalações improvisadas, como improvisado era quase tudo ali. 

O Carlos era tudo aquilo que já descrevi e muito mais. Tinha um porte invejável e um ar sério. Mas o ar sério era só fachada, porque em boa verdade era o maior gozão que se possa imaginar. Era moreno, de cabelo escuro e olhos azuis. Já o tinham industriado e dado umas noções básicas do trabalho que ia fazer, mas teria que se apoiar em mim, pelo que pouco a pouco fazia perguntas, contudo, era esperto e inteligente dado que, em pouco tempo estava perfeitamente à vontade no que fazia. 

A vida dele não tinha sido muito fácil, por isso estava ali, tão novo e com os estudos incompletos. A mãe tinha morrido muito nova e ele já tinha tido várias madrastas, bastante mais novas do que o pai, com as quais sempre se dava mal. O pai tinha a vida dele e volta e meia discutiam e desentendiam-se e o Carlos queria a sua independência o mais depressa possível. O que lhe pagavam ali não era mau, mas ele queria muito mais. Era ambicioso e caminhava rápido, porque queria tudo de uma só vez. 

Quando chegou era modesto, certinho, calmo, educado e polido, mas rapidamente se começou a transformar. O trabalho não oferecia resistência e ele tinha capacidades de sobra. Era de fácil relacionamento, pelo que não lhe foi nada difícil enturmar-se com o pessoal com quem tinha que se relacionar. E aos poucos fomos ficando amigos, assim como aos poucos me ia relatando toda a vida dele, passada e presente. 

Conforme já disse, era muito alto, cerca de 1,90 e tinha uma figura que oferecia respeito, no entanto, não passava de um garoto, o que era natural, devido à sua idade de apenas dezanove anos. 

Duas pessoas a trabalhar no mesmo espaço, cerca de sete horas por dia, infalivelmente acabam por saber da vida uma da outra com todos os pormenores porque, inclusive, os telefonemas são ouvidos na íntegra. Era impossível não escutar as conversas dele, como ele as minhas. E o Carlos tinha a particularidade de estar em dois mundos ao mesmo tempo. O sério e o brincalhão. O que tinha que ser sério era a sério, mas o que podia ser e servir para brincar era mesmo para brincar até não poder mais. 

Como o seu objectivo era dinheiro, o que ganhava ali não o satisfazia nem um pouco. Assim, arranjou trabalho na noite, onde era garçon numa discoteca, o que o fazia entrar pela noite dentro, mas que segundo ele, compensava. O problema era o desgaste físico, porque as suas horas de sono eram drasticamente reduzidas e o fazia andar sempre cansado e a precisar de dormir. 

Não raras vezes eu dava por ele a dormitar apoiado numa mão com o cotovelo em cima de secretária. E se de repente vinha alguém eu tinha que chamá-lo para não ser apanhado a dormir, o que não abonava nada a seu favor. Isto quando dava por isso, porque nem sempre me apercebia. Se tivesse muito trabalho ou coisas complicadas para resolver passava-me ao lado. 

A nossa relação era muito boa e quando digo que era muito boa significa que tanto nos amávamos como nos odiávamos. Às vezes ele fazia coisas ou dizia coisas com o intuito de  me provocar porque era um provocador nato, e eu ficava sem paciência para o aturar. Era uma criança grande. Quantas vezes entrámos em luta e atirávamos coisas um ao outro. Claro que não tínhamos observadores, por isso é que as coisas descambavam desta maneira. 

Um dia daqueles em que ele estava particularmente cansado, resmungando por tudo e por nada e de muito mau humor, e eu estava com muito trabalho para fazer, a páginas tantas desliguei-me completamente da presença dele para melhor me concentrar naquilo que era responsabilidade minha e poder dar conta do recado. E assim fiquei muito tempo embrenhada nos meus papéis, nos meus assuntos, esquecendo tudo à minha volta, inclusive a existência do Carlos. Ali acorriam muitos colegas a levantar documentos de despesa e a pedir adiantamentos para material técnico e outras coisas. E estávamos constantemente a ser interrompidos para fazer face ao que nos vinham solicitar. 

Concentradíssima nas minhas coisas e desligada do meu querido colega que naquele dia estava particularmente chato, chegou alguém que por acaso não era para mim. Era para ele. Interrompi o que estava a fazer para dar as boas tardes e cumprimentar o colega e reparei na ausência do Carlos. O colega que chegou queria exactamente uma coisa que não era comigo mas com ele. Perguntou por ele e respondi que devia ter ido tomar um café ou fumar um cigarro lá fora, mas que não devia demorar. O colega ficou ali um bocado, mas percebendo que eu não lhe podia dar atenção enquanto o outro não chegava, foi-se embora dizendo que voltaria depois. OK. E continuei o meu trabalho. 

Pouco depois, apareceu outro, que também queria qualquer coisa com o Carlos. Mais uma vez interrompi e disse que ele já estava ausente há algum tempo, portanto não deveria demorar. Mas também ele não podia esperar e foi-se embora. Continuei o meu trabalho e às tantas comecei a achar que a ausência do Carlos estava a ser muito prolongada. Que estranho? Por onde andaria? Não era normal aquilo acontecer. Até o telefone tocou várias vezes, umas para mim, outras para ele e lá tive que dizer que de momento não estava. Mas de facto estava a achar que alguma coisa não estava bem. 

E o tempo foi passando e o Carlos nada de aparecer. Era realmente muito estranho. E fiquei tentando adivinhar onde andaria ele. Não se tinha ido embora, isso era certo. E a bem da verdade eu nem tinha ideia de ele ter saído. Mas então? 

E novamente enfiada no meu trabalho, começo a ouvir uma espécie de respiração pesada que não entendi o que era. E mais um pouco e começo a ouvir aquilo que achei que era um ressonar. Mas não, não podia ser. Não estava ali mais ninguém a não ser eu, donde vinha aquele som? Mas aquilo não parou, pelo contrário, continuava. Parei tudo. O som vinha do lado do Carlos. Mas ele nem lá estava? Levantei-me e fui até à secretária dele. Uhau! Que susto! 

O maluco do Carlos não tinha saído. Em vez disso, como o sono era muito, tinha-se enfiado debaixo da secretária, todo encolhidinho para conseguir caber e perante a minha máxima consternação e o meu maior espanto, alheio a tudo, de cócoras, mas como se estivesse no sétimo céu, dormia profundamente!...  

 

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Maktub - 59



Eu era ainda muito pequena quando comecei a ter um sonho que se tornou recorrente. Um sonho que se desencadeou na infância e me acompanhou pela vida fora até muito tarde, até um dia desaparecer de vez. Muito provavelmente desapareceu quando já não precisava mais dele.

 

Não era um sonho agradável nem um pouco. Era sempre a mesma imagem e o mesmo formato. Eu acordava e pensava, cá está ele uma vez mais, a invadir os meus sonhos e a perturbar o meu acordar.

 

Enquanto criança perguntava a mim mesma porque havia de sonhar com aquilo? Porque aquilo incomodava-me. Era quase um pesadelo, embora não tivesse a mesma força. E à medida que fui crescendo não tive outro remédio senão habituar-me a acordar, lembrando mais uma vez o repetidíssimo sonho, para não me esquecer nunca dele, embora eu já o soubesse de cor. Às vezes repetia-se na mesma semana, outras vezes podia ter intervalos maiores, de várias semanas, de vários meses e até anos. À medida que eu crescia tornava-se  mais espaçado, mas sempre o mesmo sonho, sempre igual. E se bem que inicialmente, ou porque era muito pequena ou porque não queria “ver”, eu me perguntava o porquê de sonhar aquilo, bem depressa fui obrigada a admitir que aquilo tinha um propósito, uma advertência, uma mensagem muito bem codificada e não dava mais para fingir que não era nada. De facto, mais tarde eu haveria de perceber que aquilo estava bem relacionado com toda a história da minha vida, com todo o percurso que estava à minha frente.

 

Eu entrava numa sala ou num quarto, não sei, porque não havia mobiliário algum. Eram quatro paredes brancas e uma porta aberta, por onde eu entrava e onde começavam imediatamente a cair do tecto também branco, enormes blocos cilíndricos presos por uma corda, que desciam caindo no chão de forma aleatória. Um após outro, ou seja, mal um assentava no chão já outro estava a despencar do tecto. Eram enormes, pelo que, se caíssem em cima de mim, matam-me, sem qualquer sombra de dúvida. E eu ia saltitando, naquele espaço limitado, ia-me desviando ao acaso, sem nunca saber de onde sairia o próximo, para me poder desviar e proteger daquele inferno. O chão chegava a ficar cheio, sem mais espaço e quando assim era e eu não acordava para interromper aquela aflição, eles começavam a cair por cima dos que já estava no chão, enquanto eu continuava a movimentar-me sem parar, apenas para dar tempo a que não me apanhassem. Era aflitivo. Era um desafio que ia sempre aumentando e punha à prova a minha capacidade de resposta, sendo que essa resposta não se compadecia de inteligência ou de conhecimento, ou fosse do que fosse. Era o factor “sorte” que orientava a escolha. Ou então uma intuição. “Talvez” aqui, “talvez” ali. O facto é que ao acordar eu sempre tinha a mesma sensação de que, no fim de contas, eles, os cilindros de pedra, nunca me apanhavam. Eu sempre conseguia safar-me.

 

O sonho tinha dois lados, como uma moeda. Os prós e os contras, como tudo na vida, com a seguinte mensagem: “a tua vida vai ser sempre em função da tua orientação, aliada a uma especial intuição, onde os perigos estarão sempre à espreita, todavia, a sorte, ou a tua boa estrela sempre te guiará”.

 

Assim, aprendi a não ter medo. Aprendi que a vida é tudo o que temos que enfrentar, seja bom ou não. É o destino, como dizem os árabes “maktub”.

 


quarta-feira, 8 de abril de 2020

Covid 19 - 58


Dois mil e dezanove, dois mil e vinte, um ano diferente. Um ano que nunca mais esqueceremos.

 

Um ano difícil e que exigiu de todos, independentemente do sexo, da idade e da etnia; da cultura, da religião, da posição social e estatal, uma atitude firme e uma fé inabalável. Uma paciência sem limites e uma aceitação quase infinita.

 

Um ano em que todas as nossas capacidades foram postas à prova de fogo e que apelou à boa vontade de todos e de cada um em particular. Um ano em que tivemos que nos superar a nós mesmos e que testou todos os nossos horizontes, fazendo-nos sair da nossa zona de conforto, das nossas rotinas, das nossas famílias e do nosso universo unidimensional. Um ano completamente inesperado, que nenhum ser humano podia prever, nem sonhar e muito menos viver.

 

Um ano terrível e para muitos particularmente doloroso, que tiveram que abdicar do último adeus aos seus entes mais queridos. Um ano em que assistimos nas redes de comunicação social a imagens de verdadeiros horrores, em que o caos se instalou e por todo o lado imperou. Um ano que nos fez chorar lágrimas de grande angústia e o desespero muitas vezes nos dominou. Um ano em que o medo teve o seu lugar de destaque e com ele fomos obrigados a ver, sentir e vivenciar a dor, porque onde ela passou.

 

Um ano verdadeiramente infernal para todos quantos tiveram que se desdobrar para se manter e manter os outros sob cuidados de saúde física, mental, espiritual. Um ano que se atravessou no caminho de todos, alterando projectos, trabalho, viagens, sonhos... traçando o seu próprio destino, cumprindo o seu exacto caminho. Um ano em que a terra estremeceu e mostrou ao homem que quem manda é o universo e que perante a essência do criador nada somos.

 

E mais... que é preciso, é urgente fazer a mudança, a mudança que começa em nós mesmos. A mudança que fará toda a diferença quando deixarmos de pensar menos no “ter” e muito mais no “ser”.

 

Um ano amargurado em que muitos foram exaustivamente massacrados com uma carga de trabalhos redobrados em quantidade e qualidade, enquanto outros simplesmente pararam, para serem obrigados a ter tempo para si e para o seu agregado familiar ou simplesmente se desorientaram por não saber o que fazer.

 

Mas, acima de tudo, dois mil e dazanove, dois mil e vinte – o ano em que o mundo mudou - ficará na história da humanidade como o ano que nos ensinou a ser mais fortes do que nunca antes ousámos ser.

 

O ano em que aprendemos a valorizar tanto a vida, que nos fez compreender, de uma vez por todas, que a vida é hoje.

 

sexta-feira, 20 de março de 2020

IC 17 - 57


Da varanda da minha casa olho a paisagem à minha volta, vejo a serra que felizmente ainda tem muito verde para espraiar a vista e relaxo. Quando estou cansada ou entediada vou até à varanda e aprecio a vista.

Algures, por entre a serra vejo a IC 17 e deparo-me sempre com o trânsito infernal que nela passa. Também eu por lá passei e vezes sem conta fiquei parada durante muitos anos enquanto trabalhava. Felizmente, desde há algum tempo não preciso mais de enfrentar essas confusões, a não ser esporadicamente, por algum motivo pontual. Tirando isso, dessa parte já me livrei. E fico observando o correr do trânsito.

Nos fins de semana o trânsito corre, não fica parado e não raras vezes tentei fazer o exercício mental de contar em simultâneo os carros que passam para norte e para sul. Desde a primeira vez que fiz isto, percebi logo que era uma causa impossível. Uma impossibilidade completa. Mas como sou teimosa, quando penso numa coisa que quero fazer e não consigo, em vez de desistir, vou sempre tentando. Mas isto é uma coisa que eu sabia perfeitamente que não iria conseguir nunca.

A mente, a minha mente, é uma mente “normal”, felizmente, e uma mente normal não tem os poderes cognitivos tão alargados que consiga fazer duas contagens ao mesmo tempo. Contar num sentido é uma coisa e mesmo que sejam muitos carros, a coisa vai. Fazê-lo simultaneamente e em dois sentidos, mesmo que fosse em sentidos iguais, duas contagens é impossível. Pelo menos para mim, e desafio quem quer que seja a fazê-lo. Não faz.

O cérebro dos humanos não tem a menor capacidade de fazer esse prodígio. Pode até haver quem tenha essa capacidade. Mas isso são excepções. Já vi na televisão programas sobre esse assunto e com efeito há pessoas, raríssimas, que têm uma mente prodigiosa que consegue cálculos matemáticos em grande escala, em apenas segundos. Conseguem o que mais ninguém consegue. Como(?), não faço a menor ideia, porque eu jamais faria. Tenho que aceitar que são cérebros diferentes, sem as limitações que os outros, os “normais” têm. Parece mentira, mas acontece.

Quanto a mim e como gosto de desafios, vou sempre tentando, ainda que de antemão tenha a certeza de que não é possível. Por isso, quando chego ao segundo ou terceiro de uma das direcções para passar ao primeiro da outra direcção, já estou toda baralhada e volto ao princípio à espera de não ficar bloqueada e desejando que os carros passem o mais distanciados possível uns dos outros, tanto para a direita como para a esquerda, para me darem tempo. É um exercício inútil, mas eu vou fazendo. E perdendo, também. Sempre. Disso não há dúvidas. Ou não havia.

Sim, não havia.

Agora, nos dias que correm, fui surpreendida com um facto. Venho à varanda, olho a paisagem, observo o horizonte, a serra, o céu, ora limpo ora delineado de nuvens, vejo a IC 17 e de repente, com o maior espanto, consigo fazer a contagem, o que é simplesmente incrível. Quem diria que esse dia chegaria!? E fico parada, segurando os números apenas para não me esquecer. É mesmo incrível!?...

Quando me dei conta disto entrei em processo de meditação automático e percebi que, seja pelos motivos que forem, não há nada que não seja possível. Ou melhor, não há “impossíveis” definitivos, o que significa que a “esperança” é aquilo que nunca morre. Não, não é a última coisa a morrer, porque se morrer não é esperança. É aquilo que nunca morre, mesmo depois de morrermos. Quantas coisas não se realizam depois da nossa morte(?!)... Mas isso é outro assunto.

No caso, temos a contagem dos carros que passam na IC17, uma das mais movimentadíssimas vias, por ser a circular exterior da área metropolitana de Lisboa. Agora eu olhava e com toda a facilidade, os números fixavam-se na minha memória sem a mais pequena dificuldade.

Milagre? Não. Alguma coisa mudou em mim? Também não. As minhas capacidades continuam exactamente as mesmas, certa de que com a idade não hão-de melhorar, só pioram. E a IC17 também não mudou, continua a passar no mesmo sítio. Então, a que se deve esta mudança súbita, perante um facto que era dado como certo, não conseguir contar em simultâneo os carros que passam para norte e os que passam para sul?!

Fiquei contente com o facto? Nem por isso. Mas eu sempre quis ser capaz dessa proeza!? Mas agora já não queria. Ou seja, preferia mil vezes continuar a não ser capaz de contar, porque isso é que era normal. Estava sem palavras para comigo mesma. Até o meu pensamento estava lento, lento e sem saber o que pensar, olhava a via rápida e era um verdadeiro desalento. Silenciosa, calma e tranquila, comparado com o que era. Tão diferente, tão anormalmente diferente. Mas ao menos isso podia fazer com que me sentisse um pouco feliz, por finalmente poder fazer a contagem que eu tanto desejava ser capaz. Mas não. Porque agora dava-se o inverso. Agora eu queria voltar a não ser capaz de contar, como antes, como era, como deveria ser.

E somos mesmo complicados, ou nem tanto. Mas agora e, mais do que nunca, eu não queria mesmo ser capaz de contar os carros. Queria ver a IC 17 bem cheia.

E mais, queria poder sair de casa livremente e ir para onde muito bem me apetecesse. Poder falar às pessoas sem o mais pequeno constrangimento. Olhar para as ruas e ver gente e mais gente a circular. Os jardins e os parques cheios de crianças a brincar e a correr, felizes e contentes. Queria poder continuar a encontrar-me com os meus amigos e as minhas amigas, combinar almoços e jantares e festas e quanta coisa mais.

Queria ver a minha neta ao vivo e a cores, poder abraçá-la e beijá-la muito e matar saudades. Queria ir à praia apanhar sol e caminhar à beira mar. Queria andar nas ruas à procura de motivos para fotografar. Queria conviver e confraternizar como habitualmente fazia…

E mais... bem mais do nunca, eu só queria ser capaz de saber esperar. Esperar que o Covíd 19 se fosse embora de vez, para voltar a olhar para a IC 17 sem conseguir contar os carros que passam...

 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O Poço - 56


Era um belo dia de Outono em que a folhagem cobre todo o chão, juntando-se aqui, juntando-se ali e especialmente nalguns sítios específicos, no poço, completamente coberto de folhas secas, caídas das árvores e arrastadas pelo vento.

 

Apesar de Outono o dia estava lindo, o céu azul transparente e o sol afagava docemente como que acarinhando a nossa pele. A quinta era um convite ao bem estar, ao lazer, à boa disposição. Sobretudo, depois da excelente refeição com que fomos presenteados. Pessoas humildes, mas gente muito boa que davam o que tinham e o que não tinham.

 

O gado pastava livremente enquanto estávamos sentados em volta da mesa conversando disto e daquilo, vagarosamente, sem pressa de nada. As crianças brincavam e a quinta parecia que sorria alegremente para nós.

 

Para quem nasce na cidade, vive na cidade, a oportunidade de estar entre a natureza é uma verdadeira dádiva. Era assim que eu me sentia. Presenteada pela vida. E aquilo é que era correr, espreitar tudo, observar as sementeiras, contar as árvores de fruto, tudo era motivo de admiração e observação. E o poço!...

 

O poço já deveria ser muito velho. Já devia ter dado muita água, regado muita terra, alimentado muito gado e muita gente, como não? Uma quinta não sobrevive sem um poço. Agora, o tempo tinha passado, tudo era diferente, mas o poço lá estava coberto pela folhagem. Por baixo da folhagem devia haver terra seca ou enlameada, se é que alguma coisa sobrava.

 

E não havia tédio. De alguma forma todos se distraíam. Ao fim do dia partiríamos, mas até lá, era aproveitar com todo o agrado o que a natureza tinha de melhor para nos oferecer.

 

E a brincadeira foi para o jogo das escondidas, onde cada um arranjava um sítio melhor que o outro. Estava realmente um dia excepcional e um clima maravilhoso. E o poço!... O poço, que sem saber porquê, tanto me cativava, activando a minha imaginação. Mas ali não havia nada. Apenas folhas e mais folhas, um verdadeiro amontoado de folhas. Seria interessante que assim não fosse, que estivesse limpo e cheio de água. A água é sempre interessante de se observar. E imaginava o poço a funcionar, com baldes carregados de água a saírem de lá para várias funcionalidades. Olhava a espessa camada de folhas e tentava imaginar água limpa, onde tudo se reflectiria. Rostos, corpos, árvores, céu, sonhos… enfim. Era uma pena o poço tão seco e abandonado.

 

No meio de tanta brincadeira e descontracção, de um dia que parecia perfeito, apeteceu-me entrar no poço, passar para o seu interior. Sem hesitar, pulei o muro que o circundava, com cuidado para não me desequilibrar e cair, não fosse magoar-me, o que não dava jeito nenhum e fiquei de pé, prontinha para cair lá dentro. E no preciso momento em que me predisponho a saltar para dentro, eis que uma pedra vinda não sei de onde, alguém que se lembrou de a atirar, passa no meio da folhagem, ao mesmo tempo que se ouvia um som característico como um “tlim”… desaparecendo por completo, enquanto um repuxo de água se solta, atingindo uns bons centímetros de altura, para voltar a cair por sobre a folhagem, abrindo caminho, apartando as folhas secas, deixando-me com a respiração cortada e completamente em desequilíbrio, quase sem tempo para apenas recuar, olhando abismada as folhas que continuavam a deslocar-se, mostrando toda a água e mais água, que se aclarava e se aquietava à medida que as folhas se afastavam, levando o meu enorme espanto, que seguia o rumo da pedra, perdendo-se pelo poço dentro para no fundo repousar e não mais voltar.