Há muito tempo que eu queria plantar uma
árvore. Não é que já não o tivesse feito noutros tempos, noutras
circunstâncias, em outras terras. Mas agora era diferente. Os ajardinados do
condomínio onde vivo, apesar dos cuidados regulares dos jardineiros da Câmara,
têm-se degradado ao longo dos anos. No início eram muito bonitos, com algumas
árvores, muitos arbustos e canteiros floridos que embelezavam o lugar. Contudo,
com o passar do tempo, muito se têm deteriorado e modificado para pior, não
para melhor. Os animais domésticos que vão a passear à rua com os seus donos,
muitas vezes também contribuem para isso, porque quem os leva não tem o
cuidado que deveria ter. Mas não é só isso. Parece que há mesmo quem goste de
estragar por puro prazer. É uma coisa que não consigo compreender.
Como gosto da natureza e de uma paisagem
bonita, os jardins sempre fizeram as minhas delícias, pela variedade de forma e
de cor que as plantas e as flores podem adquirir. Depois há a diferença entre o
Inverno e o Verão e toda esta modificação é por demais interessante de
observar. Por isso ando sempre de olho nos jardins. E o que reparo, com grande
tristeza, é que cada vez estão mais pobres, porque à medida que as plantas vão
morrendo, muitas vezes por razões não naturais, não voltam a ser repostas e
assim, sucessivamente, os relvados vão ficando mais monótonos porque, além da
relva, não têm mais nada.
Falando com uma vizinha especialmente
minha amiga, também ela comentou o facto de achar que, um dos relvados em
especial, estava muito pobre em matéria de vegetação. E as duas começámos a
ponderar hipóteses de fazer alguma coisa no sentido de inverter essa tendência.
Mas o quê? Umas árvores de fruto seria interessante. Era um espaço tão
desaproveitado e que podia ser muito bem rentabilizado, por isso a ideia de
árvores de fruto agradou a ambas. Mas teria que ser uma coisa que se aguentasse
com o clima e que não desse muito trabalho. E de repente ela lembrou-se que
tinha em casa um pequeníssimo abacateiro a despontar na terra de um vaso. Tinha
tido abacates e depois de comer um, em vez jogar o caroço fora decidiu pôr na
terra e passado algum tempo começou a despontar. Um abacateiro? Seria uma boa
ideia?
Comecei à procura de informação e percebi
que precisava de muita água, pelo que a melhor altura para o plantar no jardim
seria no início do Outono, quando chegam as primeiras chuvas. Porém, a esta
altura era início de Verão. Se por um lado era bom por causa do calor, por
outro, corria o risco de secar, o que não queríamos que acontecesse em hipótese
alguma. Era certo que era apenas uma experiência, contudo gostaríamos que desse
certo. E depois de muito pensar decidimos que não iríamos esperar pelo Outono.
Íamos pô-lo na terra e todos os dias teríamos o cuidado de o regar
convenientemente para que se aguentasse. Assim fizemos.
Um belo dia, com luvas de plástico e uma
pequena pá, lá fomos para o jardim e bem no centro do relvado vazio começámos a
cavar o suficiente para enterrarmos bem o pé de abacateiro que já tinha uns
bons centímetros de altura e folhinhas a rebentar. Uma graça. E embora perdido
no imenso relvado, pensávamos que se resultasse, iria ficar ali muito bem. É
claro que os vizinhos que passavam ficavam muito admirados e queriam saber o
que raio estávamos a fazer. E cada um dava a sua sugestão e metiam o bedelho
onde não eram chamados. Alguns até já queriam outro ali e mais ali, etc…, dando
sugestões que pareciam mais uma ordem, o que me pareceu uma coisa espantosa!
A questão é que ninguém liga, ninguém quer
saber, todos têm muito em que pensar e o que fazer, percorrendo os assentos dos
cafés os dias inteiros, concentrando-se apenas e somente no seu umbigo, além
das beatas que atiram para o chão, dos cigarros que não param de fumar e etc….,
contudo, quando alguém tenta fazer um pequeno gesto que pode marcar a
diferença, as vozes fazem-se ouvir, como se sempre estivessem estado na ribalta
e na primeira fila do espectáculo da vida. Sim, porque, ali, o público éramos
nós, a minha amiga e eu. E ainda assim, para outros, a figura que estávamos
fazendo, de rabo para o ar com as mãos na terra, parecia-lhes um pouco
imprópria, para não dizer muito “reles” ou outras coisas piores que lhes ia na
cabeça.
Não nos incomodámos nada com isso e
continuávamos o nosso plano para deixar o pé de abacateiro o mais bem
instalado possível na sua nova morada e a única coisa em que nos centrávamos era
no gozo e na satisfação que aquilo nos estava a dar no momento e depois a
curiosidade do desenrolar dos acontecimentos. Púnhamo-nos a adivinhar como ele
se iria aguentar, se iria resistir e adaptar-se à mudança. E caso vingasse, o
facto de termos ali uma árvore de fruto plantada pelas nossas mãos, era deveras
um sentimento muito agradável. Se desse frutos então seria a cereja em cima do
bolo. Mas mesmo se não desse, só o facto de ela crescer e estar ali, para nós
já era uma dádiva enorme. Só isso.
Com efeito, o pé de abacateiro nos
primeiros dias da sua existência em plena liberdade no jardim era uma emoção e
tanto para nós. O cuidado e a preocupação que exigia, dava-nos a
sensação de que tínhamos entre mãos um bebé que carecia de todos os nossos cuidados
e de toda a nossa atenção. Era uma alegria ir espreitá-lo e perceber que continuava lá, direitinho. Às vezes eu pensava que se calhar deveríamos ter
esperado pelo Outono porque, de facto, o calor secava-o muito. Mas ele era
rijo. E se umas folhinhas secavam logo outras apareciam e estávamos sempre em
apuros. Ora tristes, porque parecia que estava a secar, ora felizes e
sorridentes porque mais folhas novas surgiam. Houve até várias tentativas de o
fazer desaparecer, não sei porquê. Só sei que mais do que uma vez cheguei ao pé
dele e estava abafado, com porcarias em cima dele, mostrando bem a intenção de
quem o tinha feito. Mas eu não ia deixar-me intimidar por ameaças que não
tinham outra intenção senão a de desrespeitar a natureza, ao mesmo tempo que não dignificavam
quem o que tinha feito.
É preciso esclarecer que quando me veio
esta ideia, a primeira coisa que fiz, foi enviar um email para a Junta de Freguesia com conhecimento para outras entidades oficiais, pedindo a devida e
formal autorização para este acto, uma vez que era uma intervenção numa área
que não me pertencia. Contudo, a resposta a esse conteúdo nunca chegou. Nem
sim, nem não, o que me deixava um pouco chateada e na dúvida. Até que um dia
encontrei um jardineiro que estava a regular a rega automática e então nem
pensei duas vezes tendo ido imediatamente falar com ele. E da conversa com ele
resultou que eu podia perfeitamente fazê-lo. Ele era o responsável do pessoal
que trabalhava naquela área e portanto deixou-me completamente à vontade para o
efeito. Disse-me, inclusivamente, que havia pessoas que o faziam. Apenas
precisava de falar com os colegas para que, quando viessem cortar a relva, por
distracção, não passassem a máquina por cima. Nesse sentido, quando plantei o
abacateiro, tive todo o cuidado em fazer uma cerca com pedras brancas em volta,
o que o deixou bastante bem destacado. E com esta conversa fiquei mais aliviada
e não pensei mais no assunto. A minha decisão foi para a frente.
O Verão passou e o abacateiro
desenvolvendo-se lindamente. A certa altura nem precisou mais dos nossos
cuidados especiais, porque todas as noites a rega automática entrava em
funcionamento e a água que recebia era mais que suficiente para o seu
crescimento. Estava finalmente vingado e independente.
Um dia eu vinha a subir as escadas que
ligam a praceta de baixo à minha, num nível mais acima e vejo um jardineiro a
cortar a relva, mesmo junto ao abacateiro. Corri na direcção dele para lhe
pedir com delicadeza, o cuidado devido com a planta. Era um indivíduo na casa
dos trinta e muitos, de aspecto rude, pele muito estragada do sol e parava a
máquina para dar uma fumaça no cigarro que mantinha entre os dedos.
Quando cheguei ao pé dele, imediatamente
parou, desviando o cigarro, o que muito agradeci. Pedi-lhe apenas que tivesse o
máximo cuidado com o abacateiro que estava em início de vida, para ver se ele
vingava. Olhou para a planta e perguntou se me estava a referir àquilo,
apontando com o dedo. Respondi que sim e que por ser ainda muito pequeno,
poderia passar despercebido, apesar das pedras em círculo à sua volta.
Ele continuou a olhar vagarosamente para a
planta e foi fazendo umas perguntas em relação ao assunto em questão. Pela
pronúncia percebi imediatamente que era brasileiro. E no seu jeito de falar,
lento e afável, genuinamente brasileiro, foi-me tranquilizando, dizendo que
eram sempre cuidadosos com o que faziam. Ficou um pouco espantado por se tratar
de um abacateiro, por conta do clima, mas era tudo uma questão de sorte. E mais
umas quantas coisas acerca do mesmo. Dar fruto, não dar fruto, até me disse que
não me preocupasse quanto a isso que ele mesmo poderia, na altura certa, fazer
uma enxerto ou coisa que o valha, para o tornar produtivo. Mas se calhar nem
seria preciso.
Comentou que num espaço tão grande bem
podia haver mais árvores de fruto. Pois, respondi-lhe que pensava o mesmo. Por
isso mesmo tinha começado com aquele e se vingasse, o meu plano era “invadir” os
jardins com outras árvores. Aquela seria a experiência de partida. E só então
ele percebeu que tinha sido eu a mentora do projecto. Quando se apercebeu
disso, perguntou na sua bela pronúncia brasileira que eu tanto gosto e tanto
amo, quem tinha plantado ali o abacateiro.
Pensando que ele já tinha percebido isso,
respondi com toda a naturalidade que tinha sido eu. Ah… você? Perguntou. Sim,
respondi novamente, sem falsa modéstia, mas com a maior das humildades. E o
jardineiro, uma pessoa simples, bem simples, de aspecto displicente e até um
pouco rude, mas só por fora, porque por dentro já tinha mostrado grandiosidade
de espírito, o jardineiro do meu condomínio, a pessoa mais banal, talvez sem
instrução, de baixo nível social e sei lá mais o quê, espantado,
espantadíssimo, uma vez mais perguntava, “mais foi você qui plantou…?” Sim, fui
eu, respondi, sem perceber muito bem quanto espanto e quanta admiração,
pensando até se teria feito alguma coisa errada.
E olhando bem para mim, bem fundo nos meus olhos, enquanto eu também olhava para ele bem dentro dos seus olhos, à espera do desfecho de tanta admiração, um pouco desconcertada até, surpreendentemente, aquela criatura de natureza humilde, deixando-me sem palavras, respondeu: “Parabéns… parabéns, viu!”
Parabéns(!)... dizia ele...
Esperava tudo menos uma reacção daquelas.
Esperava que ele me chateasse a paciência porque aquilo lhe dava mais trabalho
a cortar a relva. Esperava que ele nem falasse comigo. Esperava que ele
encolhesse os ombros desdenhando a existência do abacateiro. Esperava tudo,
tudo, menos a reacção que teve.
De repente percebi o quanto somos
preconceituosos, mesquinhos e tanta coisa mais. O importante ali, o
inusitado e o que realmente é relevante é que o homem, que aparentemente era
insignificante, pelas suas roupas, por tudo, bem pelo contrário, não era nada
disso. Pelo contrário sim, era um ser altamente sensível, um diamante em bruto,
que simplesmente teve a nobreza de saber apreciar e valorizar um pequeno gesto
de ter plantado uma árvore, que para ele, contrariamente ao meu superficial
julgamento, era uma coisa muito especial.
E eu agradeci à vida por ter encontrado no
meu caminho aquela criatura sem rosto, de alma grande, grande. Era eu que
deveria dar-lhe os parabéns e não ele a mim. O seu gesto foi de uma rara beleza e jamais
esquecerei, pois é ele que está de parabéns, não eu.