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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O Candeeiro - 8


O candeeiro não saía de jeito nenhum. Até parecia que tinha nascido ali, de tal forma estava colado ao chão. Era um candeeiro de pé alto, que tinha uma base redonda bem grande, em pedra. Muito pesado, de facto, mas já o tinha movido várias vezes, pelo que, o problema não era do seu peso. 


Estava no gabinete do meu chefe, aproveitando uma breve ausência dele para pôr coisas em ordem e como o espaço não era muito, precisava de desviar um pouco o candeeiro, mas ele brigava comigo e eu já estava cansada. Olhei para o chão e percebi que havia uma grossa camada de cera que não tinha sido espalhada e, provavelmente, logo após a aplicação, puseram o candeeiro em cima e ele tinha colado. Só podia ser isso e já estava assim há algum tempo. Teria que ligar para a logística e pedir para virem removê-lo. 


Enquanto isto, vejo passar o Cruz, um colega da manutenção, que tinha problemas de vária ordem e uma vida muito complicada. Mas às vezes conseguia ser engraçado e apesar do seu quase permanente semblante fechado, quando finalmente ria, era um riso gostoso. Precisava de se rir mais e precisava de muitas outras coisas que a vida tinha sido obrigada a tirar-lhe, dada a sua condição de dependência de drogas para acabar com outras drogas. 


Para ser totalmente franca, nem nunca entendi muito bem como a DRH conseguia mantê-lo nos quadros da empresa, pois se fosse noutra empresa qualquer, há muito teria sido despedido. Não se podia dizer que não tinha sorte porque, na verdade, tinha um chefe que o protegia, pelo facto de ter um filho pequeno que precisava do emprego do pai para sobreviver. Mas era um quadro difícil, porque estava constantemente a recair e tudo se repetia, com a falsa promessa de que era sempre a última vez. 


Quando vi o Cruz, decidi brincar um bocadinho, sem maldade, apenas para nos descontrairmos um pouco. Chamei-o e ele reagiu como de costume. Primeiro ficava parado, ausente, naquele seu ar aparvalhado, com a barriga exageradamente para fora e as costas completamente curvadas; a boca sempre aberta com o maxilar inferior descaído e a língua de fora, como um cão cansado. Era o preço da sua pouca força de vontade. E ficava parado sem resposta, na verdade, esperando que desistissem dele, tal como ele desistia de tudo e de todos, a começar por ele mesmo. 


Na segunda chamada ele veio. Chegou ao pé de mim e pedi-lhe para entrar no gabinete, a fim de me ajudar a tirar o candeeiro do lugar onde estava. Sem olhar para mim, perguntou porque não o tirava eu sozinha e essa era a resposta perfeita, a resposta que eu sabia de antemão que viria. Respondi-lhe que não conseguia.

 

Ficou um pouco parado e depois reclamou “não consegues?” E voltei a responder que não. Olhou para mim com um ar super desconfiado e voltei a dizer-lhe a verdade, que não conseguia. Só não lhe disse que ele também não ia conseguir.

 

Podia dizer que não sabia o que se passava na cabeça dele, mas o facto é que sabia exactamente o que ele estava a pensar, porque eu o conhecia muito bem, e não só a ele, e ainda porque ele era tudo, menos imprevisível.

 

E naquele momento passava pela cabeça dele que, não havia razão alguma para lhe pedir ajuda. Qualquer pessoa fazia aquilo. Pedia ajuda porque era a ele, se fosse a outra pessoa não o faria. E nada disto era verdade, nem uma nem outra coisa. Eu realmente não conseguia levantar o candeeiro do sítio e depois não estava a fazer dele moço de recados. 


É que, por causa das suas limitações, deixavam-no para trabalhos que, por vezes, nada tinham a ver com a sua categoria profissional e ele não gostava disso. Mas também não restava alternativa porque, em boa verdade, para alguma coisa ele tinha que servir, já que o conservavam lá e lhe pagavam um ordenado normal. 


Como ele não reagia e eu estava a perceber que a cabeça dele estava a matutar desnecessariamente, peguei no varão do candeeiro, fazendo mais uma tentativa de o levantar, em vão, para ele ver que realmente não conseguia e percebendo que afinal eu não estava a brincar com ele - e depois era mais um favor quase pessoal, do que outra coisa -, mudou de atitude e deve ter pensado que era uma boa oportunidade para mostrar a sua macheza e mais: que, afinal, as mulheres sem um homem nada são e em alguma altura da vida um homem sempre faz a diferença. 

 

Deixei-o divagar um pouco e ver o que decidia, e como o decidia porque, talvez ele ainda não soubesse, mas era livre de pensar, tão livre como o era em agir, embora na maioria das vezes essa liberdade de acção se traduzisse em negativo.  Mas isso ele teria que aprender.


E nesta altura ele já sorria um pouco com um certo ar de escárnio da minha pessoa, claro, mas não me importei. E o sorriso dele foi aumentando, aumentando, porque devia achar que não tinha como não tirar o candeeiro. Na cabeça dele, e eu percebia isso perfeitamente, aquilo era fácil, fácil, por isso ria com gosto ante a expectativa de me poder mostrar a facilidade com que julgava que o ia fazer. 


E como ele só ria, fazendo-me de ingénua, perguntei-lhe de que se ria. Ele abrandou um pouco, fez uma pausa e, naquela voz rouca e embatucada, respondeu “então não consegues tirar o candeeiro?” Fingi estar chateada e respondi-lhe mais uma vez que não. Ele não entendia, mas também não desconfiou de nada e era essa a minha vantagem, porque eu queria rir quando ele pegasse no candeeiro e percebesse que também não o conseguia tirar. A menos que eu estivesse enganada o que, evidentemente, podia acontecer. 


Finalmente parou de rir, aproximou-se e pegando no candeeiro, primeiro com uma mão e logo a seguir com as duas, não o conseguiu levantar, claro está. Dobrou o seu empenho e pediu-me para sair do lugar onde estava, para ter mais espaço de manobra. Puxava de um lado, empurrava do outro, ficava rubro do esforço que fazia, mas todas as tentativas foram em vão, até que percebeu que era válido o meu pedido de ajuda, que não era uma brincadeira e que, afinal, tinha ficado mal na fotografia. 

 

Perguntei-lhe o que é que se passava e a resposta dele olhando, olhando, mas sem encontrar explicação, foi “não sei”. “Ah, mas riste-te de mim!” - disse-lhe eu e continuei – “Pois é, ri melhor quem ri por último”. 

 

Mas ele estava entristecido. Afinal de contas não tinha conseguido provar nada. Mas eu também não queria que ele ficasse chateado. Então propus-lhe que tentássemos os dois. Voltei para junto do candeeiro e os dois começámos a abanar para lá, para cá, tanto o sacudimos e empurrámos que, finalmente, cedeu, mas ainda assim, não tinha sido fácil. Por baixo, tinha uma enorme camada de cera, claro está. 

 

Então ele riu e riu, já todo satisfeito porque, afinal, sempre tinha servido para alguma coisa e não tinha ficado mal visto de todo. E lá foi, no seu andar autómato, batendo os pés um pouco mais apressado do que o costume, impulsionado pela adrenalina, mas com a cara sempre no chão e a língua de fora, como sempre. 

 

Há coisas que nunca mudam.