Era
uma vez uma caixa de óculos que jazia há cerca de vinte anos, abandonada numa
garagem de uma tia minha já falecida. Um dia fui lá com o meu pai para ver uns
sofás que estavam guardados e que precisavam de ser retirados e esbarro numa
série de caixas e caixotes e sei lá o que mais. Lá fui empurrando para o lado,
mas uma caixa desperta a minha atenção. Espreito e vejo óculos. A caixa, como
todas as outras, estava coberta de uma espessa camada de pó. Com as pontas dos
dedos de ambas as mãos, abri um pouco e percebi que eram mesmo óculos.
Chamei
o meu pai para ele ver e depois de o fazer e de ter feito uma cara estranha,
disse que era para deitar no lixo. Deitar no lixo(?)… fiquei a pensar com os
meus botões e perguntei porquê para o lixo, ao que me respondeu que eram muito
antigos e deviam estar ali por esquecimento, talvez desde que a loja fora
fechada. Ela tinha tido uma óptica durante muitos anos e àquela data já estava
fechada também há muitos anos. Como é que ficava esquecida uma caixa de óculos
na garagem? Bom, não valia a pena pensar muito naquilo, até porque naquela
garagem tudo estava esquecido. Era o carro, era mobiliário, era tudo o que se
possa imaginar. Então, se os óculos iam parar ao lixo, perguntei se podiam
ficar comigo e logo ele se prontificou a pôr-me a caixa na bagageira do carro.
Curiosa,
lá fui com uma caixa enorme cheia de óculos e cheia de pó. Era quase impossível
ver os óculos. Ao chegar a casa espetei com tudo na banheira. Peguei em
detergente e enfiei tudo lá para dentro. Finalmente peguei no duche e comecei a
limpar um por um. Lavei a caixa também, que era de cartão, mas como era verão,
secou rapidamente. E finalmente os óculos começaram a aparecer. Eram dezenas de
pares de óculos. Eu já tinha andado a ver nas lojas dos centros comerciais as
novas colecções e pude constatar que eram uma e a mesma coisa. Havia de tudo,
para todos os gostos. Os modelos repetiam-se, mas não mais do que meia dúzia de
cada. E todos eles estavam marcados ainda com os preços em escudos. À medida
que ia tirando da água e limpando, voltavam de novo para a caixa, mas agora
todos arrumados e limpíssimos. Bem, para o lixo não iriam, com toda a certeza.
Até porque os que estavam nas lojas eram réplicas daqueles que eram genuínos,
já que tinham, inclusivé, a assinatura dos estilistas. Fantástico! Enfim, tinha
uma caixa enorme cheia de dezenas de óculos e não tinha a menor ideia do que ia
fazer com eles.
No
outro dia quando fui para a televisão falei com a Lúcia - minha parceira de
viagens e farras - a esse respeito e logo ela disse: “amiga, vende”! Vender?… Ela
sabia que eu não sei vender. Não tenho jeito, não gosto de vender. Mas ela
insistia “vende a um euro cada”. Nem assim. Vender não combina comigo.
Bati
à porta da minha vizinha e amiga e perguntei-lhe se não precisava de óculos.
Ela riu, contei-lhe a história e começou o desfile dos óculos. O primeiro
desfile. Experimentou vários, dos quais escolheu sete pares. Dos sete, não
sabia por qual se decidir, por isso disse-lhe que ficasse com todos. E rimos as
duas que nem umas tontas. Em seguida, chamei umas miúdas brasileiras também
minhas vizinhas e foi outra festa. Experimentaram, ensaiaram, tiraram fotos,
uma bagunça e tanto e lá se foram mais uns quantos óculos com dono. A caixa começava
a ficar mais leve. No fim-de-semana tínhamos um almoço de aniversário em
família e decidi meter a caixa na bagageira do carro. Findo o almoço, fui
buscar a caixa e pus em cima da mesa que era ao ar livre. Foi uma festa. Toda a
gente queria saber onde eu tinha ido buscar tudo aquilo. Não havia ninguém que
não experimentasse óculos e perguntasse para todos “ficam-me bem”? Uma loucura.
As pessoas nas outras mesas olhavam incrédulas, sem entenderem nada do que se
estava a passar. E os óculos lá iam andando com dono. Só me perguntavam “posso
ficar com estes”? E eu “sim”, sim, sim.
No
final do almoço, quando pedimos a conta, perguntámos às moças que nos serviram
se queriam gorjeta ou óculos, a que elas logo responderam que queriam óculos.
Lá escolheram e foram todas felizes da vida. Passou uma senhora, com a filha de
dezoito anos, que não resistiu e veio perguntar se estávamos a vender. Respondi
que não. Disse que a filha gostaria muito de ter uns óculos. Respondi que
escolhesse o que quisesse à vontade dela, eram oferta. A miúda escolheu e lá
foi já com os óculos postos, toda contentinha.
Na
segunda-feira seguinte levei a caixa para a televisão e fui chamando as minhas
colegas. Aquilo foi um festival. Havia óculos para toda a gente. E se elas
riam! E por mais que eu distribuísse, os óculos nunca mais acabavam. Parecia
que nasciam da caixa. Então lembrei-me de chamar a Critina Emanuel, uma colega
Guineense muito engraçada, da Rádio, que costumava almoçar com as colegas dos
programas da Televisão e com ela sempre havia histórias de rir perdidamente.
Nunca me esqueço do dia em que ela contou que, indo na segunda circular, já de
regresso a casa, chovia água que Deus a dava e o trânsito parado. A Cristina
aflita para fazer um xixi, não foi de modas, saiu do carro, abriu as duas
portas, baixou as calças e desopilou a bexiga.
Contando
esta cena, ninguém podia ficar indiferente, já que as descrições dela eram de
uma sinceridade total. Víamos-lhe no rosto o ar de satisfação ao contar o
alívio que sentiu ao esvaziar a bexiga e quando contava que os carros passavam
do outro lado e se metiam com ela… claro. Mas ela estava-se nas tintas. Estava
aliviada e isso é que contava. De modo que, quando chamei a Cristina, calculei
que teríamos uma bela representação em função dos óculos e não me enganei. Ela
perguntava, mas são para mim? E quanto custam? Zero? A Cristina punha e tirava
e via-se no espelho da casa de banho e ensaiava e dizia “pareço ou não uma
modelo?”… “eh pá, sou muita gira!” E nós ríamos com a performance dela, encantada por ganhar óculos de
sol de borla.
Quando finalmente o último par de óculos saiu e a caixa ficou
vazia, foi um alívio. Aquela caixa estava guardada e destinada a fazer feliz
muita gente. E fez.
Missão cumprida.