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quinta-feira, 24 de março de 2022

Os Museus - 69

 

Quando eu era criança, a minha primeira escola foi na metrópole, depois da vinda de África, onde eu era uma criança completamente feliz. Os meus pais e a minha irmã de dois anos ficaram em África, mas eu vim para Portugal, com a desculpa de que tinha que ir à escola. Desculpa, porque, só mais tarde fiquei a saber o verdadeiro motivo, que agora não vem ao caso, mas na altura foi essa a razão apontada. Já era difícil a situação de ter sido separada dos meus pais e ainda por cima ter que deixar África que eu amava, onde tinha liberdade total e fazia o que queria. Eu não gostava da metrópole e muito menos dos hábitos e da maneira como as pessoas viviam, fechadas em casa, sem o menor contacto com a natureza, com frio, chuva e dias tristes. Chuva sim, mas chuva quente. E aqui a chuva trazia o frio, o vento e tudo muito desagradável. Mas era o que era. E lá fui eu para a escola, porque no ano seguinte iria para o ensino oficial e era preciso ir já a saber ler.

A escola era a casa de uma senhora de idade que, para além de viúva, tinha perdido o seu único filho ainda muito jovem e que era padre. A senhora vivia sozinha, numa casa enfadonha e tenebrosa, um verdadeiro museu, onde ela idolatrava os seus mortos. Logo à entrada da porta, a primeira divisão que se via era um quarto transformado numa minicapela, que até um banco de igreja tinha. Um altar com um cristo na cruz no centro, flores por todo o lado, com toalhas arrendadas, tudo muito caprichado, mas muito escuro e lúgubre, apenas com a luz de uma vela.

Depois era a cozinha, onde ela nos dava as aulas, porque apesar de ser uma cozinha, estava transformada em escola. Tinha bancos corridos junto às paredes e enquanto ela cozinhava e fazia outras coisas, era aí que nos ensinava. Luz, era coisa que muito pouco havia. Bastantes crianças, todas ali enfiadas e onde se passava o dia. Levávamos o almoço de casa e só saíamos ao final da tarde, quando alguém nos ia buscar.

Até aqui, todas as crianças passaram pelo mesmo que eu. Só que à hora da saída, todas tinham quem as fosse buscar. Já eu não. Eu ficava, ficava, ficava… completamente esquecida e abandonada. Era todos os dias a mesma cena. Se aquela casa já era de uma tristeza sem fim durante todo o dia, quando todas as crianças saiam e só ficava eu, tudo piorava de uma maneira avassaladora. A solidão aumentava. O escuro ficava mais escuro. A má disposição dela ganhava proporções alarmantes, porque se sentia importunada com a minha presença, sem ninguém para me ir buscar. Era o frio, a humidade, a angústia e o desespero de me deixarem ali, sem o cuidado de me irem salvar daquele mausóleo infernal. Ela gritava comigo e com uma certa razão, que ninguém queria saber de mim. Apesar de eu não me queixar, de não dizer nem ai nem ui e de tudo ouvir sem resmungar. Mas não havia nada que eu pudesse fazer. Estava terminantemente proibida de sair sozinha, apesar de ser muito perto de casa, pelo que tinha que esperar até que os meus avós chegassem a casa para me irem buscar.

E ela dividia-se entre a cozinha e a capela, onde tinha as fotos do filho e do marido, porque estava constantemente a ir rezar. Ajoelhava-se e ali ficava, ora em silêncio profundo, ora rezando baixinho. Tudo ali era mórbido. A luz desaparecia completamente para dar lugar à noite. E eu ali sozinha, sem ninguém, rodeada de velharias, de roupas feias e pretas, num ambiente austero e deprimente, que cheirava a mofo, sem cor, sem alma, sem vida. Um verdadeiro inferno. O primeiro de muitos que se seguiriam.

Mas a vida acontece e as coisas mudam, umas vezes para melhor, outras nem tanto. Assim, cresci, amadureci e vivi, até ao dia em que fui visitar um museu. E lembro-me de que a sensação não foi realmente das melhores. E outro, e aconteceu exatamente a mesma coisa. Eu não me sentia bem naqueles lugares. E por aí fora, todos os museus que fui visitando, todos eles me transmitiam a mesma sensação nostálgica e me deixavam mal e só me apetecia ir embora. Podia até gostar do que via, mas só o facto de estar lá dentro já me deixava triste e sem vontade de apreciar como os outros. Sempre os achei tristes, escuros, onde só havia coisas velhas, coisas antigas e por mais esforço que fizesse nada daquilo me chamava.

Mas os museus são lugares por demais visitados, aonde acorre um número incalculável de pessoas de todo o mundo, em todo o mundo. Quem não gosta de museus? Eu nunca conheci ninguém que não gostasse. Quando há uma viagem seja aonde for, as primeiras coisas em que se fala é nos museus que se quer conhecer. Há museus de toda a ordem, com conteúdos os mais variados. E as pessoas acorrem em massa para ver, visitar, conhecer, apreciar, admirar e enriquecer a sua cultura. Os museus permitem compreender muito do que ficou para trás, entender a história da humanidade, acompanhar o percurso do homem desde que dá os primeiros passos até aos nossos dias.

É, pois, muito importante, guardar e estimar essas relíquias, o que quer que sejam, para que os que vêm depois as conheçam e de alguma forma partilhem dessa vivência. Assim, podemos acompanhar a evolução e o crescimento dos povos, sob todos os ângulos e pontos de vista. Os museus encerram tesouros, independentemente do valor real que contenham no seu interior. Dir-se-ia mesmo que o maior tesouro é a história, a verdadeira história, muito mais do que todo o ouro do mundo.

Por tudo isto, é perfeitamente compreensível e admirável, que toda a gente goste de museus, que toda a gente seja apaixonada por museus. Eu tinha pena de não sentir o mesmo que os outros, mas realmente foi sempre muito difícil entrar num museu e fazer uma visita calma e serena como toda a gente parecia fazer. E sempre que podia fugia deles, porque lá vinham as memórias enfadonhas com que recusava enfrentar-me. Escutava no meu íntimo, penetrava no mais fundo do meu ser, onde as memórias começavam a acessar e a vir à tona, no álbum de recordações do meu passado, onde tudo estava devidamente marcado e assinalado, onde as más lembranças vinham novamente ao de cima, fazendo-me sentir mal, porque havia uma certa analogia. Era o “velho”, o “antigo”, o “escuro”. Tudo lá de trás. Vinha tudo do mesmo saco, pelo menos na minha maneira de ver e de sentir e era uma experiência verdadeiramente muito má.

Hoje já existem museus modernos, de arquitetura muito avançada e arrojada, que fazem toda a diferença. São leves e respira-se bem, porque têm uma energia muito própria. Aí, quando entro, a minha atitude é outra. Aí é possível caminhar, apreciar sem stress, sem nostalgia. A luz entra sem pedir licença, para se poder admirar do fundo da nossa alma e acima de tudo, sem as sombras tenebrosas do passado.