Eu estava furiosa. Furibunda! Quem era aquela criatura diabólica,
mal humorada, que estava na minha frente, enfrentando-me da maneira mais
agressiva e desagradável possível? Aquilo não podia existir.
Eu tinha ido a casa da minha tia que já estava bastante doente,
movimentando-se com imensa dificuldade, o que fazia com que as minhas idas
fossem cada vez mais frequentes, para a ver e dar o apoio possível.
Numa dessas idas, já de saída, dirigi-me ao carro, estacionado em
frente de casa, do outro lado da rua, no que fui surpreendida por outro carro
estacionado atrás do meu, em segunda fila. Naquela zona, bem no centro de
Lisboa, acontece muito isso. Todavia, normalmente as pessoas estão atentas ou
colocam indicação sobre o tablier, bem visível, informando o contacto, para não
dificultar a vida de ninguém.
Acontece que, depois de ter inspecionado o veículo, não encontrei
nada, absolutamente nada que me desse uma pista, o que achei muito estranho.
Olhei em volta e não vi ninguém suspeito. Como não houvesse a mais pequena
hipótese de sair dali sem que o carro mal estacionado saísse, dei uma
buzinadela rápida, não querendo fazer muito alarde. Mas, ao contrário do que
era esperado, ninguém deu sinal de vida.
Aquilo estava estranho. Muitos carros estacionavam ali em segunda
fila e caso não colocassem nenhuma mensagem sobre o tablier, bastava dar um
toque rápido para alguém sair correndo e pedir desculpa pelo incómodo. E assim,
tudo ficava bem, sem problemas de maior. Agora, aquela cena, não me estava a
cheirar nada bem. Contrafeita, decidi dar outra buzinadela. Esperei, mas uma
vez mais ninguém se acusou. Estava tudo tranquilo demais para o meu gosto. O
que se estaria a passar? Não era normal. Quem, em sã consciência, deixaria um
carro assim?
Esperei, a pensar no que haveria de fazer, ao mesmo tempo que
tinha esperança de que, entretanto, alguém aparecesse correndo e desculpando-se
por isto ou por aquilo. O facto é que nada acontecia. Buzinei mais uma, duas
vezes, aumentando a intensidade e o tempo e eu própria já estava mais do que
incomodada por ter que ser obrigada a fazer o que não queria. Não faltaria
muito, a rua toda estaria a chatear por causa do barulho, mas fazer o quê?
E vinha uma pessoa à janela espreitar por trás dos vidros, abrindo
sorrateiramente o cortinado, o que me dava uma esperançazinha, para logo se
retirar, o que me deixava muito desolada. E depois outro aqui, outro ali, mas a
verdade é que ninguém se acusava e também ninguém reclamava do barulho que eu
estava a fazer, o que me deixava ainda mais intrigada. A minha intuição dizia
que havia ali alguma coisa estranha que me escapava e eu não conseguia
entender.
Sempre na esperança de que alguém acabasse por vir, mais minuto
menos minuto, comecei a investigar o carro. Um Honda, que no banco traseiro
tinha uma cadeira de criança pequena. Portanto e, em princípio, seria um
residente. Mas para ser um residente não podia abandonar o carro assim tão mal
estacionado. Ter-se-ia esquecido de deixar indicação? Mas depois de tantas
buzinadelas e tanto chinfrim que eu já tinha feito, não era possível que ainda
houvesse alguém que não tivesse ouvido!?...
A minha impaciência já tinha começado a dar sinal há muito tempo,
mas agora era mais do que isso. Eu sentia-me prisioneira e isso estava a dar-me
cabo do juízo. Não sei lidar com isso. Como era possível que ninguém viesse
tirar o carro dali? O proprietário tinha deixado o carro ali abandonado, sem
ligar peva ao assunto ou então teria morrida subitamente! Era esquisito por
demais.
Foi então que, não tendo alternativa, liguei para a polícia
informando o que se estava a passar. Pediram-me a informação do local, a identidade
e fiquei-me, aguardando a chegada das autoridades, embora sentindo-me muito mal
por ter que ser obrigada a isso.
O tempo ia passando e nisto tudo já lá ia uma hora. Achando que
era um abuso e que ninguém tinha o direito de fazer uma coisa daquelas, esperar
pela polícia sim, mas decidi que havia de fazer mais alguma coisa para mostrar
o meu completo desagrado por aquela lastimável situação e comecei a buzinar sem
tirar o dedo da buzina. Aquilo até doía. Doíam os meus ouvidos, a minha
paciência, os meus nervos, os meus dedos… mas tinha que ser. Precisava
desesperadamente de saber quem era o imbecil ou a imbecil que se atrevia a não reagir
perante um ato daqueles.
Em vão, porque tudo continuava na mesma até que, no prédio em
frente, do lado contrário da rua, aparece à janela aberta para o efeito, num
terceiro andar, um indivíduo dos seus trinta e cinco anos, dizendo “toque no
rés-do-chão direito”, ao mesmo tempo que apontava para baixo. Eu nem queria
acreditar. Tinha surtido efeito. Alguém tinha reagido, mas ainda não era ali.
Era apenas o caminho.
Mal tive tempo de agradecer, o rapaz fechou a janela e
desapareceu. E lá fui eu, atravessando a estrada, dirigindo-me ao tal do
rés-do-chão direito. Uma luz no fundo do túnel. Mas era uma luz um pouco
escura, para não dizer muito escura. Pensando bem, aquela história estava cada
vez mais estranha. Eu estava a fazer aquela barulheira toda a escassos metros
do presumível proprietário do carro e ainda assim o sujeito ou a sujeita não
dava a cara? Só podia ter morrido! Que outra razão levaria uma pessoa normal a
agir assim, sem se importar com o estrago que estava a fazer na vida dos
outros?!
Dei um toque na campainha, ainda esperando que alguém viesse
correndo com alguma desculpa que ainda não me tivesse ocorrido, mas nada. O
sujeito de cima, que me tinha dado a indicação do proprietário, era credível,
com toda a certeza. Não tinha como duvidar. As chances de se ter enganado eram
praticamente nulas. Agora eu até já começava a pensar que talvez o proprietário
estivesse habituado a fazer aquilo… e como ninguém respondesse, perdi a
paciência de vez, pus o dedo na campainha e não tirei mais. Ah… agora sim,
alguém vinha lá. Ingenuamente, pensava comigo mesma, qual seria a desculpa que
teriam para me dar(?).
Qual desculpa, qual quê… eu estava era a sonhar acordada e
completamente fora da realidade que me esperava. Abriu-se a porta de casa e sai
de lá uma mulher que aparentava os seus sessenta e muitos anos, mal humorada,
carregada de energia negativa, que parecia que me vinha bater. Nos segundos que
ela levou para percorrer o espaço da porta de casa até à porta do prédio, que
abriu furiosamente, percebi imediatamente que estava lixada, como se fosse eu
que estivesse no caminho dela e não ela no meu.
Ao abrir a porta a mulher simplesmente descarregou em cima de mim
todo o seu mau humor, num tom de voz insuportável “páre com isso que ainda me
acorda a criança!” Eu nem podia acreditar no que acabava de ouvir. Então, uma
louca daquelas, esgrouviada, com uns cabelos que parecia uma bruxa, tinha uma
criança a seu cuidado? Uau!...
Quando consegui começar a falar tive que ser muito firme e ter
muito sangue frio, para apenas lhe perguntar se o carro mal estacionado era
dela, ao que ela olhando para mim de alto a baixo e cada vez mais agressiva,
respondeu “é sim, porquê?” Porquê, perguntei, não percebe que está mal
estacionado e que preciso de sair(?), continuei. Quero lá saber, respondeu ela,
com o maior desdém e o maior desprezo. O quê? Retorqui, pois fique sabendo de
que já chamei a polícia. Quero lá saber, continuou ela, olhando para mim como
se eu fosse o seu inimigo número um e continuando, dizia, pode chamar a polícia,
pode chamar quem quiser, sabe porquê, eu não moro aqui, dizia ela com um ar
triunfante, teatral e doentio.
Eu queria lá saber onde é que morava aquela horrenda criatura. Eu
queria era sair daquele filme que não era meu. Eu queria era o meu sossego e a
minha paz. E a polícia que não vinha?... Sua louca, gritava ela para mim.
Incrível. Eu estava completamente passada, ainda sem perceber muito bem o que
se estava a passar. Sua louca, continuava a mulher, desafiando-me a todos os
níveis. Louca é você, disse-lhe eu. Ninguém deixa um carro estacionado daquela
maneira. Mas ela praguejava e esbracejava tipo “padeira de Aljubarrota”.
Aquilo era absolutamente surreal. Das duas uma: a mulher era ama
ou avó. E quem, em sã consciência, deixaria uma criança aos cuidados de uma
doida varrida!? Era isto que agora mais me incomodava. Mas para falar a
verdade, eu queria mesmo era sair dali. E lá foi ela, dirigindo-se ao carro, o
que muito me aliviou. Tirou o carro, eu tirei o meu e desapareci, nervosa e
chateada até mais não.
Saí dali, enfiei pelo eixo norte-sul em direção à Póvoa e foi um
tiro que nem via nada à minha frente. Passando na estrada nacional, passo na
polícia e resolvo parar. Estava tão transtornada que entrei e comecei a
desbobinar o acontecido e mais, sobre a criança, que não me saía da cabeça.
Relatei o acontecido, insistindo que uma criança não podia estar aos cuidados
de uma pessoa assim tão desequilibrada. O sujeito ouviu tudo o que falei e
argumentou “a senhora não vê que não temos bases para fazer seja o que for?”
Respirei fundo e disse “sei… sim, claro, mas falei”.
Na verdade, tinha que despejar aquilo o mais depressa possível,
que me estava a incomodar de que maneira. E sabia que tinha sido estupidez ir à
polícia, mas apeteceu-me e pronto. Estava feito. Eu tinha que descarregar em
alguém para ficar mais aliviada. Até já conseguia respirar melhor. Voltei ao
carro e segui para casa.
Durante uns dias não conseguia esquecer aquela cena macabra.
Sentia uma raiva e uma vontade de me vingar. Vingança, sim, era isso mesmo, eu
tinha que me vingar daquela mulher. Mas como? Fui à minha caixa das ferramentas
e saquei de um prego pequeno que olhei atentamente. Aquele prego seria a minha
vingança. E imaginei-me a chegar lá, passar ao pé do carro e espetar o prego no
pneu. Pronto, estava feito. Ela ia saber exatamente quem teria feito aquilo.
Era como se o meu nome lá ficasse escrito.
Várias vezes voltei a casa da minha tia, mas o carro não estava
lá, ou não tinha tempo ou disposição para me dedicar àquele assunto e pensava,
ainda não é hoje. Mas a tua vez está guardada.
E chegou o dia em que, descontraidamente, uma vez mais, lá fui ver
a tia. E passando calmamente, lá estava o carro à minha espera. Olhando em
volta, tudo me parecia tranquilo, pelo que seria fácil pôr o plano em prática.
Além disso, aquele assunto precisava de ser encerrado de uma vez por todas. Era
a hora. Assim, atravessando a estrada, passei para o outro lado da rua. Como
quem não quer nada, tirei da mala o prego e cerrei a mão. Aproximei-me do
carro, olhei para o sítio onde poderia espetar o prego e… e, de repente, tudo
deixou de fazer sentido. De repente percebi que afinal não queria e não
precisava de fazer nada daquilo.
Guardei o prego e respirei aliviada. Estava liberta.
Mas, o mais importante, é que aquela mulher não tinha qualquer
poder sobre mim e eu continuava a ser eu, apenas eu, igual a mim mesma, sempre
eu, apenas eu.