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domingo, 23 de dezembro de 2018

A "sagrada" bíblia - 46


Que me lembre e desde que me reconheço e me entendo por gente, que me questiono e me interrogo sobre questões existenciais como: quem sou eu, o que é a vida, o que estamos todos aqui a fazer, etc… um rol de perguntas que me vinham à cabeça, e ainda mais o porquê de estar sempre a pensar nessas coisas. As outras pessoas não pensavam nessas coisas, achava eu. Viviam a sua vida, o que quer que ela fosse, levantavam-se e deitavam-se, seguiam a sua rotina e o seu rumo, sem essas preocupações, pensava eu… enquanto que eu estava sempre numa luta comigo mesma por causa dessas respostas que, ao mesmo tempo, não tinha onde ir buscá-las. Se tentava perguntar, logo me conseguiam fazer mudar de assunto, dizendo-me que quando crescesse haveria de saber. Mas isso era muito tempo!

O facto é que toda a gente parecia conviver bem sem falar e sem querer saber disso, o que para mim era um verdadeiro enigma. Como era possível não se olharem no espelho sem conseguirem ir ao seu interior? Quando me via no espelho, para além do que estava à vista, sentia sempre que havia mais do que isso. Eu não era só o aquilo. E achava que os outros também não. Para mim, em cada criatura, havia o exterior e o interior, que não era assim tão interior. E então, esse interior que me parecia envolvido de mistério e segredos, onde estava ele, o que era isso?

A minha família era católica por tradição e, portanto, a igreja foi-me imposta desde sempre. Não pelos meus pais, que não faziam questão de ser religiosos, mas pela restante família, avó e tios. Além disso, a escola também fornecia educação católica e tudo era muito católico na minha vida. Como gostava de saber das coisas e como era suposto a bíblia conter toda a verdade da vida, eu lia.

A caquetese era a única base de informação a que tinha acesso. Havia caquetese na igreja e catequese na escola. E todas as crianças aprendiam o que vinha nos catecismos e só isso. E ouviam e decoravam aquelas coisas todas que tinha que se saber na ponta da língua, desde a mais tenra idade, porque seriam guardadas para nos acompanharem pela vida fora até sempre. Quem é Deus? Deus é o nosso pai do céu. Onde está Deus? Deus está em toda a parte.  E assim por aí adiante.

Questionar? Impossível. Questionar, só por si, já era um grande pecado. Tudo era muito sagrado, inalterável e imutável. E todas as histórias que nos contavam e que se liam na Bíblia, eram um grande mistério. Pai do céu?!... Em toda a parte?!... Mas se diziam que era assim, assim tinha que ser. E a minha “formatação” começou a trancar-me, como aconteceu com tanta gente. Não há perguntas, não há questões. Há que acreditar e aceitar, caso contrário, caíamos em pecado e íamos para o inferno. Um horror! Eu tinha pesadelos. E não era só eu. Havia outras crianças a quem acontecia o mesmo. Pelo menos isso ajudava-me a identificar-me um pouco com alguém e a não me sentir tão infeliz e tão só.

Fui crescendo e, apesar de tudo, a informação foi chegando de variadíssimas maneiras. Os meus olhos iam-se abrindo e o meu espírito sempre pedindo mais. Todavia, sempre que lia a Bíblia, apesar das contradições e das questões confusas, eu ainda estava “formatada” e havia muita coisa que ainda não tinha chegado, por causa do “véu” que me cobria desde criança. É difícil. É mesmo muito difícil. E quando pensamos que já crescemos espiritualmente e já nos livrámos de toda a carga do passado, é mentira. A coisa ainda está lá bem enraizada, e assim somos apanhados de surpresa. O que fazer?

 

Meu filho Henrique, quando era criança, recebeu de presente da avó paterna um livro de histórias intitulado “A Bíblia para crianças”. O livro tinha desenhos bonitos, alusivos às diversas passagens bíblicas mais relevantes e adaptados às crianças. E como ele gostava que lhe lesse uma história já na cama, antes de dormir, achei que não havia mal nenhum nisso, e comecei a ler-lhe a bíblia. E devo dizer que foi esse o meu grande “despertar”. Foram essas leituras inocentes, a uma criança sem vínculos à religião, virgem na sua formação de ser humano, livre de dogmas e formatações, que me fizeram abrir os olhos e despir a totalidade do véu que tudo embaciava. Foi o meu filho de cinco aninhos quem me ensinou a ler a Bíblia. Lembro-me como se fosse hoje. Até levantou a cabeça do travesseiro com a indignação da contradição que se deparava.

A história era a de Abel e Caim. Caim, filho de Adão e Eva, supostamente o primeiro homem e a primeira mulher, como todos sabem, mata seu irmão Abel. Perante isto, e como castigo, Deus expulsa-o do Paraíso e fica com medo de que alguém o mate. Esta é a história, sem entrar em mais detalhes, porque não necessita. E o meu querido filho, incomodado, pergunta “mas se não existe mais ninguém além de Adão e Eva, quem é que o vai matar? Perante esta observação fiquei a gaguejar e na verdade sem resposta. Mas foi aí que se deu o verdadeiro clique.

Perguntando a mim mesma se alguma vez eu tinha pensado nisso, para ser sincera, claro que sim. A questão é que, muito provavelmente fechava os olhos, porque ainda estava programada para aceitar tudo o que lia, sem sinal da mais pequena dúvida ou observação, apesar de já estar numa fase de “desmame”, isto é, de grande afastamento da religião. Mas foi aí que fui obrigada a pensar e repensar que a criança tinha razão e que eu sempre soube que aquilo era uma grande mentira ou simplesmente uma história mal contada.

Recentemente, adquiri um livro muito interessante, intitulado “A Bíblia não é um Livro Sagrado” de um autor Italiano, Mauro Biglino, e como foi bom ler esse livro! É que, finalmente, alguém via as coisas da mesma perspectiva que eu. Alguém com bases e formação correcta, falava do que sempre se escondeu por trás dos panos. Alguém que teve a coragem e a lucidez de mostrar o que é e o que não é. E assim, a páginas tantas, mais precisamente na página 146 do referido livro, pode ler-se:

“Após ter assassinado Abel (Gn. 4), Caim não foi punido, mas simplesmente afastado e naquele momento exclama apavorado: “Seja quem for que me encontre, matar-me-á”. Mas quem poderia ser este “seja quem for”, já que sobre a Terra deveriam existir somente os seus pais, Adão e Eva?”

E mais… continuando, o autor descreve:

“A narração bíblica prossegue, informando-nos de que ele encontrou uma esposa, teve um filho e construiu uma cidade… Mas, para quem construiu ele uma cidade, se não existiam outros homens?”

Quando li isto, logo me veio à memória esse episódio do meu filho, criança, chamando-me a atenção para o facto. Parecia que tinha sacado do meu livro de memórias aquela situação embaraçosa da falta de poder para responder. Passaram mais de trinta anos, mas aquela memória foi de imediato accionado, tão embaraçosa fora a situação.

E assim, por aí adiante, o autor vai descortinando tudo e pondo a nu uma verdade que se esconde por uma eternidade sem fim. Tal como ele, na verdade não penso que a bíblia seja uma mentira. Acho é que foi interpretada da maneira que deu jeito e por quem assim o quis. Umas vezes por falta de informação nas questões da tradução, outras vezes porque era o que dava jeito. A ignorância da humanidade sempre foi muito bem aproveitada. É sempre importante, pois assim é bastante mais fácil conduzi-la. O “sagrado” é coisa que não existe nesse contexto. A elaboração do “homo sapiens” é um projecto pensado e elaborado por seres alienígenas com tecnologias impensáveis para nós. As igrejas e demais locais de culto não foram construídos para essa função, mas adaptados a isso, simplesmente porque eram a “morada dos deuses”. E a morada dos deuses era tudo que havia de mais profano sobre a terra.

Durante grande parte da minha existência procurei, procurei, procurei… até que um dia encontrei esta preciosa coisa que me fez para de procurar, porque aí estava contida uma verdade intemporal, que me fez parar as buscas incessantes e sossegar:

“A vida é evolutiva e nunca criada a partir do nada. Todos estamos ligados.”  - Pasteur pensou, Pasteur escreveu. 

E quando li isto, percebi que tinha encontrado a resposta. É que, na verdade, não havia nada para procurar, mas apenas “assistir” à evolução, à passagem do tempo. Somos viajantes do espaço, por mais que isto seja difícil de encaixar. Todas as igrejas e demais lugares “santos”, carregados de ouro e outros metais preciosos roubados à mãe terra, não passam de uma pequena amostra do orgulho, da vaidade e da soberba dos “deuses” que por aqui passaram e alguns por aqui ficaram, misturando-se com a obra que criaram à sua imagem e semelhança, para seu próprio benefício – o homem, o Adam ou ADN. Israel e a Palestina é uma guerra sem fim que não faz o menor sentido, simplesmente porque é uma guerra que não é nossa, mas dos “deuses” que a começaram e nunca mais acabou.

Somos o resto, os restos de uma mega civilização que se adiantou e se aproveitou do nosso ADN de todas as maneiras e feitos. Tudo o que somos de bom e mau está aí. Está na hora de acordar e crescer.

Com todos os dramas, complicações, aflições de todo o género, catástrofes e epidemias, temporais e outras coisas mais, até hoje não sei se a vida faz sentido ou não. Mas é bom viver.


O segredo - 45



Como era lindo!… pensava ela. A imagem dele estava gravada desde o dia em que o vira pela primeira vez. Nessa altura, pensou… se tivesse menos dez anos, não precisava de mais, menos dez anos eram o bastante e ele não escaparia porque, se havia um adjectivo que a caracterizava bem demais era “aventureira”. 

 

Mas a aventura não era por “casos” ou “flirts”… não era nada disso. Aventura era ela personificada, porque nunca deixara de viver nada por conta dos outros e dos preconceitos ultrapassados e enfadonhos em que a maioria das pessoas se deixava envolver, inibindo-se de viver, em nome de falsos moralismos.

 

Realmente, isso não se lhe aplicava. Desde os dezassete anos que tomara as rédeas da sua vida e isso sim, fizera dela uma aventureira nata. A vida tinha o gosto da aventura, sim, porque tudo o que fazia e tudo em que se metia, era para ser vivido a cem por cento, caso contrário, não estaria lá. Amava a vida com todo o respeito e a alegria que lhe conferia e lhe atribuía, pela sua simples existência neste mundo, onde nada se podia perder, a não ser aquilo que realmente não era preciso e isso sim, era para definitivamente descartar para todo o sempre. 

 

Há três anos que ali estava com a família. Não a mulher e os filhos, porque esses tinham ficado no seu país. Ele viera para ficar, arranjar papéis e então trazer a família já em segurança. Mas vivia com os irmãos. E a vida era trabalhar para ganhar dinheiro e enviar para a família, a fim de lhes proporcionar uma vida melhor, até os poder trazer e fugir à guerra, à vida miserável que tinham, apesar dos cursos que tinham tirado. Num país em guerra, de nada serve ser isto ou ser aquilo. Num país em guerra, tudo é inútil, todo o esforço é em vão e nunca se poderão fazer planos. É duro, mas é a realidade.

 

De vez em quando, cruzavam-se nas escadas, nos elevadores e da mesma maneira que ele sabia que não lhe era indiferente, também ela sabia que alguma atracção exercia sobre ele, mas as reticências eram tantas que não havia ponta por onde se pegar. Era a diferença de idades, eram os irmãos, eram as culturas - a barreira das culturas(!) - embora, até certo ponto, ela soubesse lidar com isso. Mas não, não podia ser, era muito complicado.

 

Todavia, sempre que se cruzavam, ele encarava-a com uma curiosidade impossível de esconder e impossível de não perceber. Parecia que alguma coisa ficava sempre por dizer, algo que precisava de sair, mas que acabava sempre por ficar engasgado, por conta da inibição que também sempre se sobrepunha. Lá teria as suas razões, também ele. Era melhor… era melhor que tudo ficasse assim, por ali mesmo, tudo no seu lugar.

 

Até que um dia, ao sair do elevador, abrindo a porta e antes de ter tempo de sair, alguém abre a porta mais rápido e quase esbarram um no outro. E nesse dia não houve tempo para pensar, nem ficar inibido e a pergunta saiu. Eram onze horas da noite e apesar do programa ter sido bom, ela vinha cansada, querendo chegar a casa e dormir. Ao esbarrar nele, inesperadamente os olhares de ambos se fixaram inevitavelmente, de um jeito quase hipnótico. Atordoada, veio à realidade com a pergunta inquisidora e que foi mais forte do que ele “onde vai?”. Claro que o que ele queria saber era de onde ela vinha, porque vinha a chegar sozinha àquela hora. Mas o seu fraco português fez o que pôde.

 

Apanhada de surpresa, atrapalhada, apressou-se a responder “classic music concert”, como se sentindo coagida a dar-lhe satisfações. Como se, de repente, sem mais nem menos, ele fosse seu dono… e com mil e uma questões na cabeça, ao mesmo tempo que surpreendida com o que se estava a passar com ela - porque, enquanto a sua voz interior perguntava a si mesma o que a tinha levado a dar-lhe justificações da sua vida -, a ponto de se ter deixado levar. E para tudo isto não havia resposta.

 

E antes mesmo que terminasse a frase “classic music con…” já ele respondia “ah...” ao mesmo tempo que acenava que sim com a cabeça, em sinal de aprovação. E não havendo mais nada para dizer, ela saiu de vez do elevador para lhe dar passagem, enquanto os seus olhares se refugiavam um no outro, até a porta se fechar novamente e cortar de vez aquele momento embaraçador, mas mágico.

 

Já em casa, enquanto se despia para se deitar, pensava em mil e uma razões para aquela pergunta intempestiva. E uma delas, é que era absolutamente impensável na terra dele, uma mulher sair assim, sozinha e ainda chegar a casa àquela hora da noite. E muitas outras coisas… mas a verdade é que não era nada daquilo. Sabia bem qual era a verdadeira razão daquela pergunta. Ele queria lá saber das horas e do resto. Ele queria mesmo era ter a posse de todas as suas horas, não só daquela, mas de todos os dias e saber como era a vida dela, que para ele era um grande mistério, apenas porque a desejava, independentemente da idade, de não ser a mulher mais bela do mundo, disto e daquilo… a verdade é que sentia por ela uma atracção irresistível, que ele próprio não compreendia e nem se daria a esse trabalho.

 

Aquela mulher, que entrava e saía a qualquer hora, com o ar mais indiferente deste mundo, que sempre estava sozinha ou com amigas, sem uma companhia masculina; aquela mulher que tinha um ar ainda jovem e vestia como uma adolescente: jeans, leggings, vestidos compridos, frescos e fluidos, mostrando o corpo magro e bem delineado, aquela mulher era uma fonte de atracção e de mistério; um grande enigma para ele, com trinta e oito anos apenas. Se ele, a viver com os irmãos, se sentia tão só, com a esposa longe, sem amor por perto, impedido de uma vida sexual normal, por via das circunstâncias; para quem a vida era apenas trabalho, comer e dormir - tudo isto em nome da promessa de uma vida melhor, que tardava em chegar - e aquela mulher sozinha, como ultrapassaria ela a sua solidão? Como poderia ela estar sempre sozinha?…

 

Já tinha entrado na sua casa com um dos irmãos, por conta de uma pequena questão técnica, para a qual necessitara de intervenção exterior. Por isso os chamou e ficara deliciado com a casa. Aquilo era um verdadeiro refúgio de amor. Ali, havia qualquer coisa no ar que era indecifrável. Ali, estava-se bem. Também não sabia muito bem se era da casa, se apenas da presença dela. Mas tudo ali se conjugava. Tudo era perfeito. O meio ocidental, meio oriental, tudo funcionava maravilhosamente bem, fazendo-o lembrar do que precisava de conquistar, jamais esquecendo as suas origens. Até nisso ela era fabulosa.

 

Os olhos dele brilhavam, com aquele brilho que só eles têm. Aquilo era um mundo mágico que o seduzia e o deixava completamente perdido. Tudo ali era simples, sem luxo, mas prático, confortável e funcional. Mas muito mais do que isso: acolhedor, convidativo. Mas era também muita paz e muito amor que sentia ali. A pessoa que vivia ali só podia ser uma pessoa muito especial. Aquilo era tudo o que ele precisava. Aquela misteriosa mulher não tinha idade. Podia ter uma idade qualquer, que a ele em nada lhe importava. O que importava era o que ela era e o que ela representava. E ela era sem dúvida, a única pessoa que o podia ajudar.

 

Ali tão perto, era só atravessar o patamar. Meia dúzia de metros, apenas, a separar as portas de casa. Mas depois havia as outras quatro. E ainda os outros andares. E estavam sempre a entrar e a sair. Mas o pior de tudo eram os irmãos. O que fariam se soubessem? Seria uma chacina. Ainda por cima ele era o mais velho, aquele que tinha que dar o exemplo! E tudo apenas por um pouco de paz, um pouco de amor. Sexo, sim, mas mais do que isso, beijar, acariciar, sentir a ternura do contacto da pele com pele. Entrar em casa e arrancá-la ao que estivesse a fazer; pegar nela ao colo e deitá-la em cima da cama, naquele quarto sensacional, com uma tapeçaria oriental na cabeceira, em tons de azul e verde; aquele quarto de uma simplicidade incrível, era um convite ao erotismo, aos sentidos mais sublimes, submetidos ao prazer do amor e da sensualidade. Aquela mulher era o caminho para a sua liberdade.

 

Enquanto ele observava tudo minuciosamente, ela seguia-o atenta e curiosa no pormenor com que reparava em tudo. Sentia-se lisonjeada mas, ao mesmo tempo, um pouco devassada. Contudo, não lhe podia recusar esse privilégio. E aos poucos, foi-se libertando e até aguçando a sua curiosidade, que não deixava de a fascinar. Afinal, ele era o tal, especial. Ele era lindo! Isso era inegável. Até as amigas vizinhas, já o tinham comentado. Mas elas eram novas, era perfeitamente natural. Em todo o caso, o facto é que ele era mesmo bonito. E não era só a beleza física. Era a altura, o porte, o ar com um misto de timidez e o sorriso só no olhar. Era aquela cor morena de quem está permanentemente bronzeado do sol. Era uma coisa que só ele tinha ou que só ela via, porque não se podia explicar.

 

E quando ela fez questão de lhe mostrar a casa de banho, um espaço tão importante como os demais, ele ficou em êxtase profundo. Com o olhar, percorreu as quatro paredes e deteve-se no quadro dos banhos turcos, com as mulheres semi-nuas na água e dizia oh, oh… estava impressionado com a beleza da pintura, mas o facto de as mulheres estarem quase despidas com os seios à mostra, deixava-o mudo, engasgado, ao ponto de ela ter de intervir para lhe fazer lembrar que aquilo não eram mulheres nuas; aquilo era arte e a arte era para ser apreciada e admirada sem qualquer julgamento. Ele respondia “yes, yes…” numa voz tão sublime quanto velada, num tom de submissão e rendição absoluta. Era de uma doçura impressionante!

 

 

Como era lindo!… pensava ela. Não tinha mudado nada, desde a primeira vez que o vira. A sua doçura continuava igual. Tudo nele continuava na mesma. Doce, terno, com aquela maliciosa ingenuidade e aquele olhar misterioso de sempre, apesar de que todas as portas tinham sido definitivamente abertas. Sem regras, sem limites, sem objecções; sem compromissos, apenas o compromisso da felicidade através do amor que proporcionavam um ao outro, tudo no maior sigilo, para não ser corrompido nem interrompido contra a vontade de ambos. Tudo o que havia para partilhar era aquele amor indefinido, intemporal, sem reclamações, sem exigência alguma. Só a liberdade prevalecia. Só a liberdade era permitida e permanecia. Para isso se tinham quebrado definitivamente as algemas, banido todos os credos e tudo o mais. Ali não havia lugar para a voz dos outros. Já era tão pouco o tempo que tinham um para o outro, sem contar com a ginástica que era preciso fazer para não dar nas vistas e manter tudo no maior segredo. Era um esforço e tanto, segurar aquela adrenalina que não parava de disparar, quando se continuavam a cruzar e se metiam outros pelo meio, porque a vida continuava. 

 

Aliás, tudo continuava na mesma, exactamente igual, apenas eles tinham revertido o jogo, porque já não eram mais estranhos um para o outro. Quando uma porta se fechava, logo a outra se abria, para deixar entrar por toda a casa, pelo ar que respiravam, pelo calor que seus corpos embrenhados emanavam, todo aquele prazer que os fazia respirar com mais leveza e viver com a mesma intensidade, cada momento como se fosse simultaneamente o primeiro e o último. O único, porque também o único segredo de suas vidas.

 

 

 

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Danielzinho - 44


“Danielzinho” … Danielzinho… dizia a rapariga loura, bonita, de olhos azuis e pele muito branca. Parecia uma nórdica. De trato fino, comedida e educada, de onde teria ele desencantado aquela angélica criatura?! Sim, porque precisava de ser um anjo para aturar o Daniel. Sentados à mesa, frente a frente, os gestos dele, amplos, descoordenados e desajeitados, para não dizer abrutalhados, com algo de agressivo, estavam em completa discordância com os dela. A vida tem destas coisas, aparentemente estranhas e eu não conseguia desviar o olhar e a atenção deles, porque aquilo não encaixava. Havia ali uma disparidade muito grande. E já a tinha visto várias vezes ali, a almoçar com ele no refeitório da RTP, o que me intrigava ainda mais.

 

Daniel era engenheiro. Tinha sido aluno dos Pupilos do Exército, onde tirou o curso, mas qualquer incidente na sua vida o tinha perturbado tanto que se tornara um psicopata. Passava a vida encharcado em medicamentos e era uma lista interminável de antidepressivos e ansiolíticos, que nunca mais acabava. Tinha coisas estranhas, atitudes e… todo ele era estranho. Olhando uma primeira vez, era uma pessoa normal e até era engraçado, bem parecido, mas depois, quando começava a falar, logo se percebia que ali havia coisa. Alguns chamavam-lhe o “maluco”, mas ele não era maluco. Era descompensado, isso sim e à conta disso levava por arrasto uma série de maluquices sem conta. Também havia quem tivesse medo dele, mas não era caso para tanto, embora, em boa verdade, não possa dizer que fosse totalmente inofensivo. Estou a lembrar-me, por exemplo, de uma altura em que todos os dias ele ia à Mesquita, à hora do almoço e vinha contar-me aquilo com um ar triunfante, que me dava um sinal de alerta, quero dizer, de que algo se passava; aquilo queria dizer alguma coisa. Com efeito, descobri pouco tempo depois, que ele ia à mesquita àquela hora para tirar partido do almoço de borla, à custa dos muçulmanos que, quando se aperceberam disso, logo trataram de correr com ele, claro. Por isso, o ser inofensivo dele não era evidente tanto assim. Daniel era astuto e tinha a mania que era esperto, o que fazia com que sempre acabasse por se dar mal, que é o que geralmente acontece com gente desta natureza e muito especialmente com ele, pelos problemas que já tinha.

 

Um dia ofereceu-se para ir jantar comigo. Digo, ofereceu-se, porque eu sabia de antemão que não era um convite. Ele não seria capaz dessa proeza e além disso nunca tinha dinheiro. Mas fui, até porque ele não tinha amigos, nem ninguém que se interessasse por ele. Claro que por esta altura, a rapariga loura que era namorada dele, já tinha ido à vida. Era duro aturá-lo. Durante o jantar, Daniel fez tanta cena, disse tanto disparate, que só me apetecia dar-lhe um tabefe e ir-me embora. A meio do jantar, disse-me que tinha feito um óptimo negócio. Fiquei a olhar para ele à espera do que seria um óptimo negócio. Em pleno jantar, descalça um sapato, que coloca sobre a mesa e metendo a mão dentro do sapato, saca da palmilha nojenta, fedorenta, dizendo-me para sentir o toque. Eu olhei para ele aterrada com tamanho disparate. Seria possível que aquela criatura não se desse conta do que estava a fazer!? Como era possível ser tão desprovido de sensatez, de ética e não ter a noção de que há coisas que não se fazem em hipótese alguma, sendo que aquela era uma delas? Estávamos a jantar, o sapato estava sujo e cheirava mal e ele metia a mão em cima da palmilha, sem quaisquer escrúpulos e queria que eu fizesse o mesmo?! A minha vergonha era tanta que me apetecia dizer em voz alta “não conheço este senhor de lado nenhum e não tenho nada a ver com ele!”. Mas era tarde, agora tinha que gramar, senão, o que faria eu com ele ali a jantarmos na mesma mesa?...

 

Mas então o excelente negócio que havia feito é que aquela horrorosa palmilha, que só de olhar para ela já me dava náuseas, segundo ele, fazia uma série de coisas ao mesmo tempo, tais como: massagem, relaxamento, fisioterapia e o rol nunca mais acabava. Fazendo as contas a cada uma das especialidades da dita cuja, aí estava o óptimo negócio que ele tinha feito. E nem se levantou para ir lavar as mãos… eu já não o podia ver nem ouvir. E nem vou enumerar nem contar a série de asneiras que continuavam sem parar.

 

Daniel trabalhava nas instalações do Campo Grande, que um dia foram encerradas e por isso foi transferido para a sede da RTP na Avª 5 de Outubro, tendo ficado sob a chefia do engenheiro RS, uma pessoa espectacular, um excelente profissional, educado, fino, de muito bom trato, uma pessoa a quem não havia o que apontar. Mas, para seu azar, Daniel ficou colocado no mesmo gabinete dele, o que passou a ser uma dor de cabeça para o engenheiro. Certo dia em que o chefe não estava lá, por ter saído em serviço, Daniel fechou a porta e trancou por dentro. Para quê? Para dormir, certamente, mas primeiro tratou de pôr uns pauzinhos de incenso, provavelmente para o ajudarem a adormecer, o que aconteceu, claro, só que o fumo saía por debaixo da porta e foi preciso chamar a segurança para a abrir e perceber o que se estava a passar. Daniel acordou muito confuso e com a voz toda embargada disse que estava a "meditar"… enfim… só se esqueceu de que estava a trabalhar, mas isso era para esquecer.

 

Mas o pior de tudo… Daniel teve que deixar o apartamento onde morava para se mudar para casa dos pais que tiveram que o receber embora sem o mobiliário, porque não tinham espaço para isso e talvez nem precisassem. Então, andava muito agoniado por conta desse problema que tinha que resolver. Um dia, falou com o chefe, dizendo que precisava de levar os móveis para a RTP(?), porque estava sem casa. Perante tal disparate o engenheiro fez de conta que não ouviu, porque ficou tão irritado e enervado com o assunto que saiu a falar sozinho para não ter que disparatar com ele. E vinha pelo corredor fora dizendo umas asneiras que não faziam nada o género dele, sempre muito bem comportado. “É maluco, é doido e agora tenho que aturar isto)?)”, etc..., etc…

 

O facto é que um belo dia ligaram da recepção, dizendo que estava uma carrinha de mudanças à porta da RTP com mobiliário para entregar no gabinete do senhor engenheiro RS, da parte de quem?... O resto é fácil de adivinhar…

 

domingo, 20 de maio de 2018

A mala do chinês - 43


Centro Ásia, Chelas, 60 lojas onde há tudo o que se possa imaginar.

 

A Teresa e eu tínhamos acabado de almoçar e naquele dia não tínhamos o grupo do costume. Todos se tinham dispersado. Cada um com seu motivo, todos faltaram ao convívio, tendo ficado só nós duas.

 

O dia estava bonito e decidimos dar uma volta nos jardins do condomínio das instalações da RTP. Andando e conversando, passámos junto à vedação que dá para as instalações do grande Centro Ásia, um mega armazém de revenda onde está instalado o mundo do comércio Chinês. Como tínhamos algum tempo, decidimos ir ver as novidades por aquelas bandas.

 

Saímos as portas da RTP para entrarmos nas portas mesmo ao lado, as do Centro Ásia e depois de termos dado uma voltinha rápida e geral decidimos entrar numa loja de malas que tem malas, malinhas, malões para todos os gostos e feitios. Mas, ao entrarmos, fomos logo informadas pela única pessoa que lá estava a tomar conta daquilo, que só vendiam às caixas e cada caixa tinha uma série de malas ou sacos, o que não nos interessava. E, em princípio, nem comprar nada nos interessava. Só queríamos ver.

 

Era um chinês alto, bastante alto para chinês e magro, muito magro também. Um rapaz novo, com menos de trinta anos que, após ter dado o recado, voltou a sentar-se no banquinho onde estava antes de se levantar para vir falar connosco.

 

Respondemos que não queríamos comprar nada, mas gostaríamos de dar uma volta só para ver. O chinês, que voltou ao seu posto numa posição nada cómoda, mas que parecia não o incomodar, tinha um recipiente com comida no chão, e a refeição a meio. Podia-se ver que já tinha iniciado, mas depois, por qualquer razão, parou, largou e deixou por ali mesmo, em pleno chão, sem qualquer proteção. Já tinha visto destas cenas na rua, em Nova York, no bairro chinês, por isso não fiquei muito espantada.

 

Claro que o espaço era tudo menos limpo. Pó e lixo era o que não faltava, mas isso não interessava nada. Ele sentava-se com as costas todas curvadas para se apoiar na parede atrás dele e fechava os olhos, tentando dormir. Perante a nossa inesperada entrada, foi obrigado a fazer um pequeno intervalo para nos advertir que não podíamos comprar à unidade. Havia algumas lojas em que isso era possível, ali porém, ele acabava de nos informar que tal não poderia ser. Não, não podia… reforçava ele, sempre com o mesmo semblante, sem qualquer outra expressão ou reacção. Está bem… não podia, não podia e nós na verdade não tínhamos a menor intenção de comprar o que quer que fosse, porém, informámos que faríamos a nossa ronda só para apreciar, mais nada. Ele não dizia que não, mas sentado mal e porcamente, por assim dizer, estava de olho em nós. Dormia mas não queria ou queria mas não dormia, porque um olho estava fechado e o outro aberto. Era assim uma cena meio estranha. E lá iniciámos a nossa ronda, sob a vigia que dormia atento a cada passo, a cada movimento nosso.

 

Olhávamos os expositores, dávamos dois, três passos e apreciávamos o que estava à nossa frente. Comentávamos, trocávamos impressões e o chinês, como um autómato, abria os dois olhos só para dizer novamente “não pode levale; só a caixa inteila…” mas nós já sabíamos disso, não era preciso ele repetir. Mas respondíamos que sim e continuávamos a nossa visita pela loja, ignorando o chinês. E esta cena repetiu-se vezes sem conta. Nós já sabíamos que mais uma vez ele ia abrir a boca para dar o recado e ele também já sabia que a seguir a nossa resposta ia ser a mesma, mas aquele diálogo continuou certinho, durante todo o tempo que lá estivemos, que foram cerca de trinta minutos. Já não o podíamos ouvir. Porém, teimosamente, continuávamos na nossa intenção de ver todas as malas, da primeira à última, percorrendo assim o espaço completo da loja.

 

E quando acabámos de ver tudo e estávamos na recta final, já em direcção à porta da rua, faltava apenas um enorme caixote que estava no chão, a pouquíssimos passos de distância do chinês, a Teresa e eu parámos para espreitar e mais uma vez o chinoca lembrou “não pode levale, só a caixa inteila”… porém, em vez de responder, como fizera anteriormente de todas as vezes que ele interviera, fiquei parada num saco que atraiu a minha atenção. Sussurrei com a Teresa que era giro, o que ela confirmou. Fiquei um pouco a contemplar o saco, observando-o de vários ângulos, olhámos uma para a outra continuando a apreciar e estava decidido, o saco era meu porque eu o queria, mas só aquele e não a caixa “inteila”, claro estava. Mas como havíamos de fazer? Olhámos uma para a outra pensando o mesmo, mas sem perder tempo e com o saco na mão, desprezando completamente as suas advertências da caixa inteira, virei-me para o chinês e perguntei fria e secamente: quanto custa?

 

Ao mesmo tempo que sentia o constrangimento da Teresa que parecia que até tinha ficado com a respiração em suspenso, o chinês levantou a cabeça e sem sequer pestanejar, respondeu: cinco euros. Estava feito(?!).



sexta-feira, 18 de maio de 2018

Aula de Informática - 42


Rosinha tem dificuldades acrescidas a outras tantas. Esteve muito tempo ausente e já nem se lembra de como ligar o computador da sala de informática. Mas com um pouco de ajuda para reavivar a memória a coisa vai. Olinda já liga o computador com facilidade mas mais uma vez reclama porque a palavra passa não é aceite. Digo-lhe para introduzir novamente mas o computador não aceita. Digo-lhe que está errada mas ela diz que não, que não está errada e que tem acerteza que é aquela. Mas o computador não aceita e ela fica bloqueada. Rosinha, entretanto, já tem o computador ligado e puxa-me pelo braço para lhe dizer como é que entra no mail. Depois de entrar na página esbarra no mesmo problema de sempre. Não se lembra do seu próprio endereço electrónico e não trouxe os apontamentos. Vai ligar para a filha para lhe resolver o problema.

Entretanto, António, o professor de informática, foi até Olinda que continuava em apuros ainda por causa da dificuldade da palavra passe que não entrava. Claro, estava errada, mas o professor conseguiu a proeza de mais uma vez a recuperar. E o senhor João? Ah, o sr. João, com a sua voz baixinha que mal se ouve, diz-me que hoje quer fazer um mapa de despesas no excel. Pergunto-lhe se sabe trabalhar no excel, responde que já soube. Bom, se já soube já é alguma coisa. Vamos a isso. E começo a dar-lhe umas explicações de como funciona uma folha de cálculo. Fica radiante com as facilidades que o programa oferece. Quase em segredo diz “é isso mesmo que eu quero”. Excelente, estamos no caminho certo.

E Martim? Ah, Martim é uma graça. Um fofo! Um menino de setenta anos. Martim chama por mim desde que se sentou, mas eu ainda não tinha conseguido lá chegar. Finalmente aproximo-me dele, que está sempre em aflições, mas não deixa de sorrir. Martim quer enviar um mail para a filha, com um anexo, mas não sabe como. Não sabe nada. Desde a semana anterior já não se lembra como é que faz para chegar à página dos emails. Todas as semanas ele começa sempre do início, porque diz que já se esqueceu. Ele traz sempre o seu PC para ser mais fácil treinar em casa. Martim é alto, é grande, de olhos azuis e cabelos claros, é um menino em ponto grande. Emagraceu uns bons quilos, como se pode ver pela forma do seu corpo. Continua bem cheio mas tem tudo pendurado. São as bochechas, é a barriga, está tudo pendurado, mas é um bem disposto, excepto quando a aula não corre como ele quer.

Foi à internet e escolheu algumas imagens que quer guardar para pintar na aula de Pintura. Então pede para lhe explicar como é que envia uma daquelas imagens para a filha, que depois tira fotocópia para ele reproduzir. Digo-lhe para compor um mail, mas ele diz que não sabe como é que isso se faz, como se não o tivesse feito já dezenas de vezes. Mas tudo bem. Digo-lhe que leia o que tem na sua frente e veja onde se diz “compor” mas, Martim, desanimado, diz “não sei” e olha para mim com um ar de desolado, como se estivesse completamente desprezado. Agarra-me no braço e exige que me sente ao pé dele. Pronto, faço-lhe a vontade, porque também não há alternativa. O professor não chega para as encomendas, portanto fico a ajudar Martim. E com as minhas dicas, consegue chegar onde quer, embora reclamando sempre que aquilo é muito difícil. Deixo-o entregue ao texto enquanto vou espreitar o Cid.

Cid é um senhor de mais de setenta anos, de baixa estatura e magro. A sua forma de falar é sempre na base da filosofia, filosofia muito própria dele. De modo que, quando lhe perguntei se estava com algum problema, até tive que me sentar para o ouvir, porque o tempo que ele demora a digerir e a engendrar a filosofia adequada à minha pergunta leva tempo, tanto tempo que me obriga a sentar, senão, ai das minhas costas por estar tempo demais dobrada. E depois de responder, a resposta abrange tudo o que se possa imaginar menos responder à minha questão. Assim, pela segunda vez lhe faço a mesma pergunta e antes que venha outra resposta evasiva vou-lhe dando indicações para ir trabalhando. E no final das contas também não sabe a palavra passe. Deixo-o a pensar enquanto volto para Martim que já está novamente com o ar mais abandonado deste mundo. Entretanto, o professor está na outra ponta com o Joaquim, a Pilar, a Carolina que quer saber coisas do Face Book, etc…

Vamos para o Martim para o tentar acalmar. Martim quer enviar o anexo mas não sabe como. Digo-lhe sempre a mesma coisa: o que é que se faz quando se quer anexar um documento? Pega-se num “clip” não é? Ah, é verdade, diz ele, já sei e aponta com o cursor. Clica e abre a caixa de texto do arquivo. E agora(?), pergunta ele. Então, agora tem que ir procurar o seu anexo, digo-lhe eu, mas Martim já não sabe onde está. Nem nunca soube, porque guardou sabe-se lá onde!? Com toda a paciência do mundo lá vou eu intervir para tentar encontrar o que ele pretende. Mas o anexo que Martim quer não aparece e fica muito triste, muito infeliz, tal qual uma criança que não encontra o brinquedo que procura.

Martim é um indivíduo inteligente e bem sucedido na vida. Contudo, não teve experiência no campo da informática. Por isso, está agora a dar os primeiros passos. E cada passo que dá é para ele um passo gigante, fazendo-o ficar muito feliz com o que consegue. É por isso que é muito importante ajudá-lo e não só a ele, mas a todos os que nos procuram para esta iniciativa.

A minha paciência redobra. Digo a Martim para voltar atrás à procura do anexo e o guardar no ambiente de trabalho que é o sítio mais fácil para depois o encontrar. Martim vai então novamente ao google buscar uma vez mais o anexo e agora então guarda-o definitivamente onde lhe disse para o guardar e volta a fazer um mail para agora sim, anexar o que pretende, até que, enfim, a pintura lá seguiu o seu destino.

Mas Martim quer ter a certeza de que aquilo seguiu. Digo-lhe para olhar um pouco para cima e ler o que lá está: “a sua mensagem foi enviada, para vizualisar clique aqui”. E Martim clica. Mas, ai… o que foi que aconteceu? Martim não está nada satisfeito, nem um pouco, só falta chorar. É que o anexo não foi direito, diz ele, ficou com a ponta dobrada. Como? Não foi direito(?), perguntei. Sim, diz Martim apontando para o ecran, exactamente para o canto inferior direito do anexo: “Não vê que ficou com a ponta dobrada?”… (!?...)


segunda-feira, 19 de março de 2018

O caos - 41



Um pardalito acabava de pousar no telhado da escola mesmo ao lado da minha casa, imediatamente seguido de outro que se veio juntar a ele, desviando assim a minha atenção do caos em que estava mergulhada.

 

O caos. Um verdadeiro caos, por nada. Apenas porque o meu medicamento da tensão tinha sido alterado e eu estava com medo de algum efeito indesejável. Apenas isso. Acontece que detesto medicamentos, mesmo compreendendo que às vezes é necessário. E por isso corri para o meu posto de meditação/contemplação, na minha varanda de inverno, onde estou protegida das intempéries, podendo observar toda a serra que fica em frente, porque tenho vidros de cima a baixo, possibilitando-me um anglo de visão bastante alargado.

 

Absorta em pensamentos negativos que tentava afastar, porque não me faziam falta, observei os pardalitos que se tinham encontrado no topo do telhado do conservatório de música. Eram tão engraçados, tão felizes e livres que não resisti ao seu encanto. Era mesmo delicioso observá-los, correndo atrás um do outro, beijando-se com bicadinhas amorosas, passando por cima um do outro, lá iam felizes e contentes, sem pensar no dia triste e cinzento, carregado de nuvens, sem se preocuparem com nada nem ninguém. 

 

E, de repente, senti os músculos do rosto contorcendo-se, forçando um sorriso teimoso, a que não consegui resistir. Isso mesmo, aquelas duas minúsculas criaturas, seguindo o seu curso normal, tinham tido o condão de arrancar das minhas entranhas um sorriso que foi mais forte do que eu. Era uma ternura olhá-los e observar o envolvimento dos dois. Uma graça, que contrastava devastadoramente com o que ia dentro de mim. 

 

E quando acho que já passei em determinados testes da vida, que já superei determinadas barreiras, livrando-me desses flagelos para sempre, atingindo patamares mais dignos do ser humano, aí estão elas de novo para uma vez mais me testarem e uma vez mais me porem à prova. Um caos.

 

Pensando em caos e sem querer, fui transportada na minha viagem até à Índia, um dos maiores caos que tive de enfrentar até hoje, em que todo o tempo dava comigo a perguntar como era possível ter nascido naquela terra e ter sobrevivido? Era quase um milagre. E durante quinze dias que por lá andei, quando a coisa piorava e só pensava na “minha” casa, no “meu” quarto, na “minha” cama, enfim… tudo meu; meu isto, meu aquilo, porque tudo o que isso representava era conforto, paz, sossego. Mas aquela viagem de regresso às origens, por minha própria escolha e vontade e com plena consciência disso, não tinha sido exactamente o caminho para a tranquilidade, nem um pouco, e isso era sabido e admitido de todas as formas. Eu sabia de antemão que ia mexer com a minha zona de conforto a toda a prova e muito, muito mais. O caos em toda a ordem, com letras maísculas e numa dimensão elevada ao cúmulo de exagero.

 

Era a Índia! Não era surpresa nenhuma. Ainda assim era difícil de aceitar. "Aceitar" era a palavra certa. Aceitar era o segredo daquela gente e era essa a chave para a sobrevivência a todos os níveis. Para mim estava assegurada mais do que a sobrevivência a nível da alimentação, do alojamento e para falar verdade, de todas as coisas, o que não impedia a impossibilidade do equilíbrio psíquico. Por outro lado, eles não se queixavam de nada. Limitavam-se à existência do jeito que se apresentava e agradeciam tudo, o bom e o mau. E quem poderia dizer que isso era certo ou errado?

 

De regresso aos pardalitos, que não precisavam de se preocupar com nada, de repente achei que havia ali uma certa analogia com a vida na Índia, onde a grande maioria das pessoas não têm os problemas da “sua” casa, do “seu” quarto, da “sua” cama. Então estava tudo certo. E sempre olhando os pardalitos que iam brincando enquanto prosseguiam o seu rumo, pensei que, vendo as coisas por essa perspectiva, então a Índia não era necessariamente um caos. Estava tudo certo. O caos só existia na minha cabeça, na minha forma de ver as coisas. Melhor dizendo, na minha forma de viver. Eles não tinham, portanto também não tinham com o que se preocupar. Logo, não havia caos. Pelo menos para eles. Era eu que estava como peixe fora de água porque, apesar do meu espírito livre e aventureiro, a verdade é que há uma linha que, uma vez ultrapassada, nos tira da nossa zona de conforto para nos fazer sentir mal, deslocados, no caos. Como é que um simples medicamento me estava a roubar o sossego daquela maneira, era a única pergunta que não queria calar.

 

E ali estava eu, achando-me a criatura mais infeliz do mundo, fazendo do nada um problemão maior do que eu, como se fosse o fim do mundo. E os pequenos pardalitos aos pulinhos, comunicando-se na sua linguagem própria, completamente sintonizados um com o outro, limitando-se a viver plenamente, mostravam-me da forma mais natural e mais simples possível, como eu estava a ser estupidamente ridícula. Era isso que eu via ali. Parecia que, deliciados com a vida, eles tinham chegado ali para me mostrarem isso. Aquilo era uma lição de vida, a lição que eu precisava de aprender e não sabia. Tão simples, tão natural.

 

E o sorriso teimoso voltava aos meus lábios, através daquela doçura de cortar o coração, pensando… é a natureza. É a natureza no seu melhor, no seu pleno território, na sua zona de conforto e desconforto. Eles não reclamam nunca do tempo, do sol, do frio, da chuva, do calor. Eles não se preocupam com o que comer e vão sempre encontrando alimento pelo chão, pelos telhados, pulando nas árvores de galho em galho, bebendo água numa pocinha aqui, noutra ali, libertos e despreocupados. E quanto mais os seguia e os apreciava verdadeiramente encantada e extasiada, mais o meu sorriso aflorava e a minha alma respirava aliviada.

 

Cumprida a sua missão, com a mesma graça com que chegaram, partiram, deixando comigo uma bela e ternurenta mensagem de "aceitação", que custou uma lágrima bendita a correr pelo meu rosto.



quinta-feira, 1 de março de 2018

Um café - 40



O Riaz estava sentado numa esplanada de um café nas imediações da minha casa, à espera que um café lhe caísse do céu, porque estava sem dinheiro. Eu sabia que para ele o café era primordial. Podia não comer nem beber, mas o café para ele era absolutamente imprescindível. E enquanto falava comigo ao telefone insistia para eu regressar o mais depressa possível porque queria um café.

 

Um café. Uma enorme choradeira por causa de um café. Só que eu estava a trabalhar e nunca tinha hora para sair por causa da minha isenção de horário. E ele sabia disso, mas naquele dia estava muito impaciente. Tinha sido apanhado desprevenido e esquecera-se de que não tinha dinheiro. Era eu que lhe guardava o dinheiro e que geria a conta bancária dele. Ele tinha medo de fazer alguma coisa errada e não confiava em mais ninguém. Mas tinha um cartão multibanco, o qual só usava quando estava comigo porque se atrapalhava todo. Não falava português nem se esforçava nada por isso. Era eu que resolvia todos os seus problemas. Estava em Portugal há dois anos e, desde que nos tínhamos conhecido, apoiava-se demais em mim, achando que todos os problemas dele estavam resolvidos.

 

Era frequente telefonar-me amiúde, mas naquela tarde em que tinha sido dispensado do trabalho, estava mais inquieto. É certo que queria um café, mas não podia estar a ligar-me de cinco em cinco minutos. Portanto, a única coisa a fazer era esperar. Mas estava bem difícil. Não se conformava nem me dava descanso.

 

O Riaz foi meu companheiro de vida durante sete anos. Tinha alturas em que coabitava comigo, outras alturas ficava na casa dele. De vez em quando viajava para arranjar trabalho melhor, mas voltava sempre, assim que alguma coisa não lhe agradava, mas especialmente porque não conseguia estar muito tempo longe de mim. 

 

Estranhamente, toda a minha família gostava muito dele, porque sempre foram todos tão exigentes comigo em tudo, que era realmente estranho terem gostado tanto dele. Mais do que isso, todos se rendiam ao seu charme e ao seu encanto. Ele era alto, bonito, magro, com um porte fino e eu dizia-lhe muitas vezes que ele podia ser modelo de alta costura. Tinha muito boa figura. E a minha família que tanto me massacrou aquando do meu divórcio, pelas razões mais idiotas e fora de contexto, extraordinariamente, aceitavam o Riaz como se fosse a coisa mais natural desta vida, sem questões, sem reservas. Acabaram-se todos os preconceitos, a religião, os hábitos, a cultura, enfim, ninguém ousava questionar fosse o que fosse. E o Riaz sentia-se em casa, completamente. Adorava aquele chamego todo e ficava envaidecido de ter todos rendidos ao seu encanto. E como!

 

E a questão continuava. O Riaz não me dava descanso pelo facto de estar sem dinheiro para o café. E tudo porque tinha medo de ir ao multibanco levantar dinheiro. Perguntei-lhe se tinha uma caixa por perto e ele logo respondeu que sim, mesmo em frente dele. Pedi-lhe que se dirigisse à máquina, mas ele não queria. “Oh… não sabe”, dizia ele. Já sei que não sabes, mas eu vou-te dizendo, respondi. Pedi-lhe para pôr o cartão na ranhura e esperar pelo painel para me dizer o que lá estava. Mas ele começava a ler e sinceramente, eu não compreendia nada do que ele dizia e ele explicava-se mal, depois dizia uma data de asneiras na língua dele, algumas que eu já conhecia, outras não e acabava por terminar a sessão porque o cartão, sem ordem para cumprir, saía automaticamente. Duas vezes isto aconteceu e eu disse-lhe que não o fizesse mais para que o cartão não ficasse retido, que era pior a emenda que o soneto. Assim não dava.

 

Era preciso encontrar outra solução. E tinha mesmo que resolver o problema de alguma maneira, porque sair mais cedo por causa daquilo estava absolutamente fora de questão. Foi então que me lembrei de uma coisa. Ele só precisava da ajuda de alguém para levantar o dinheiro e me deixar sossegada. Mas quem? Tinha que confiar na sorte. Comecei a pensar, a pensar e estava decidido.

 

Pedi ao Riaz que olhasse em volta e observasse as pessoas perto dele. Ele não percebia o que ia na minha cabeça, claro está e dizia que estavam algumas pessoas, mas poucas e que isso não interessava. Insisti com ele para me começar a descrever como eram as pessoas, se estavam sozinhas ou acompanhadas, mas ele não queria, não estava a levar a sério o que lhe dizia, achando que era uma brincadeira minha. Mas não era brincadeira e continuei a insistir para ele me ir descrevendo as pessoas, uma por uma. Até que ele me disse que estava um casal. 

 

Perguntei-lhe que idade teriam e respondeu que talvez trinta. Perguntei-lhe se achava que estavam bem um com o outro, bem dispostos, se não estavam a discutir ou com cara de chateados. Ele olhava, ficava um pouco a observar e depois, não sem esforço, lá começava a dizer o que via ou que lhe parecia. Disse que achava que estavam bem dispostos um com o outro, falando baixinho, juntinhos, etc. É isso, é isso mesmo que eu quero, respondi eu. 

 

E continuando com o meu plano, pedi-lhe que se levantasse e fosse ter com eles, com toda a calma para não os assustar. Mas o Riaz recusava-se. Dizia que não e não. Perguntei-lhe se queria ou não o dinheiro. Se queria ou não um café. Respondeu que sim. Então faz o que te mando, confia em mim, disse-lhe eu. E como ele não tinha alternativa e também porque confiava mesmo em mim, por mais louco que fosse o que lhe dizia, continuou e lá foi junto do casal. 

 

Depois disse-lhe que pedisse desculpe e lhe passasse o telemóvel a ele e só a ele, caso contrário, se fosse a ela, havia já ali uma grande confusão e isso era tudo o que não podia acontecer. A coisa tinha que ser feita com toda a diplomacia possível. Ele continuava renitente e a não querer, porque tinha medo, tinha vergonha e eu dizia-lhe que não estávamos a fazer nada que envergonhasse ninguém. Não era um comportamento usual mas, fora isso, nada de errado. Ele compreendia o que eu dizia mas encolhia-se, o que também dava para entender. Ele era muito discreto. A questão é que a situação urgia um procedimento um pouco bizarro, mas era pegar ou largar. 

 

E lá foi ele, que acabou por ganhar a coragem necessária, pedindo desculpa, meio sério meio sorrindo, que dava para ouvir bem. Pediu desculpa e disse para o sujeito “fala aqui, por favor, fala aqui”, ao mesmo tempo eu falava alto no telemóvel, para o sujeito ouvir a minha voz. E quando o indivíduo, um pouco confuso e desconfiado, finalmente pegou no telemóvel, fui logo pedindo desculpa, muita desculpa, que o meu namorado não falava português, mas que não se assustasse, só precisava de um grande favor e não podia pedir a qualquer um. Foi preciso dizer isto para que o sujeito percebesse que o assunto era delicado e que exigia uma certa responsabilidade da parte dele e que poderia aceitar ou não o favor que lhe estava a ser pedido. 

 

Nesta altura ele já estava a falar comigo com tranquilidade e expliquei-lhe uma vez mais que o meu namorado não era português, que eu estava a trabalhar e ele precisava de levantar dinheiro para tomar café, sendo forçoso ir ao multibanco, mas com a ajuda de alguém, porque sozinho não conseguia e se ele fizesse o favor de ir com ele. Pedia-lhe e ao mesmo tempo ia agradecendo e pedindo mil desculpas. 

 

O sujeito compreendeu, acreditou em mim e prontificou-se a acompanhá-lo. Pedi ao Riaz para não desligar a chamada para ir acompanhando o que se estava a passar. Ouvi-os chegar à máquina, ouvi o ruído do cartão a entrar, a máquina a arrancar, o sujeito perguntando se ele sabia inserir o código, ele sorriu e disse que sim, inseriu e o outro perguntou-lhe quanto dinheiro queria. Ele respondeu, o outro marcou no painel, saiu o dinheiro, saiu o cartão e o fulano disse ao Riaz “pronto, está tudo certo”. O Riaz agradeceu, eu agradeci e voltei a pedir mil desculpas pelo incómodo. O rapaz voltou para junto da companheira, o Riaz voltou ao lugar onde estava com o seu característico sorriso e estava tudo resolvido.

 

Ainda em linha comigo o Riaz perguntou novamente “quando vem”? Respondi “não sei. E continuou com o seu sorriso malandro, dizendo: “crazy, you”!...