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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A loucura anda à solta - 10



Eu estava de férias, em viagem aos Emirados Árabes, uma viagem que repetiria de bom grado, não fora tantos outros lugares onde ainda gostaria de ir. Mas os Emirados Árabes são feitos à minha medida, porque é uma óptima combinação entre dois mundos, onde tudo está muito bem equilibrado. Isto, do meu ponto de vista, claro está. 

 

Éramos um grupo de quinze pessoas: dois casais, três homens e o restante, mulheres, incluindo eu. Nessa viagem, que durou uma semana, pouco me dei com os demais do grupo, posto que o meu interesse era com os locais, árabes ou não, mas no último dia, mesmo no último, comecei a falar com um dos homens, um senhor um pouco mais velho do que eu, com bom aspecto... enfim, uma pessoa aparentemente normal.

 

O nosso conhecimento foi feito às pressas, pensando que podíamos ter beneficiado mais da companhia um do outro. Em todo o caso, até à chegada a Lisboa, conversámos bastante e acabámos trocando números de telefone para depois nos falarmos. E foi assim, através dos longos telefonemas que todos os dias ele me fazia que, aos poucos, nos fomos conhecendo ou tentando conhecer. 

 

Era reformado da banca, onde tinha trabalhado durante quarenta anos e por esta altura, já há uns anos que se reformara, bem como regressara à sua terra natal, uma pequena aldeia perdida para os lados de Seia, onde tinha várias casas e alguns terrenos que os pais lhe tinham deixado. Para além disso, tinha ainda uma vivenda perto de Cascais, onde ficava sempre que vinha a Lisboa. 


O senhor que, pelo sotaque, se percebia que era da província, era uma pessoa que falava bem sobre qualquer assunto e que estava a par da actualidade, dos acontecimentos que iam pelo mundo, etc. Para mim, ele só tinha um senão. Estava sempre enfiado na igreja. Desde criança que era sacristão e não abdicava disso. A igreja era o mundo dele e aquilo não me agradava especialmente, mas cada um é como é. 


Havia ainda uma outra coisa que me intrigava. Nunca tinha casado e sonhava que, ainda assim, apesar dos seus sessenta e três anos, um dia, haveria de casar. Ora bem, se ele tanto o queria e reunindo condições para isso, porque então nunca tinha casado? Era um pouco estranho, mas fomo-nos conhecendo através dos telefonemas diários, que nunca demoravam menos de uma hora. Conversávamos sobre o dia-a-dia, a família, os afazeres e por aí fora. Uma conversa perfeitamente normal, que incluía alguns planeamentos de passeios que gostaríamos de fazer. Falávamos de gostos com a comida, do estilo de vida que fazíamos, no caso ele, porque, por esta altura, eu ainda trabalhava. 

 

E o tempo foi passando, até que algo inédito aconteceu e na história da minha vida o inesperado é sempre algo de relevante importância. Foi o caso. Um dia a conversa dele foi no mínimo estranha. A páginas tantas eu disse-lhe que tinha que ir ao cabeleireiro e que também precisava de arranjar as unhas, etc. Era isto um fim-de-semana e, na sequência da minha conversa, ele disse que também precisava de cortar as unhas, mas que tinha que esperar por segunda-feira. Pensei que seria por falta de tempo, mas não, segundo ele, não tinha nada a ver com isso, apenas porque só à segunda-feira podia cortar as unhas. Achei então que era por uma questão de disciplina. A limpeza na minha casa é feita todas as terças-feiras, portanto, considerei ser esse o motivo, mas imediatamente ele negou, dizendo que também não tinha nada que ver com isso. Comecei a ficar intrigada e continuei a fazer perguntas, até que ele me respondeu que, em tempos idos, quando era novo e tinha começado a trabalhar no banco, ouviu uma conversa de um colega que, conversando ao telefone com um amigo, o outro lhe dizia que, cortar as unhas às segundas-feiras fazia com que nunca se tivesse dor de dentes.

 

Desatei a rir, atribuindo aquela dedução a uma piada, que só podia ser, mas ele logo interrompeu dizendo que não era piada nenhuma e que desde que tinha ouvido aquilo, sempre cortara as unhas às segundas-feiras e nunca tinha tido dores de dentes. Ainda dentro de um clima de brincadeira a que eu estava a levar as coisas, chamei a atenção dele para o facto de, na semana anterior, ter marcado uma urgência para o dentista, visto estar com dores de dentes, mas ele reagiu fortemente dizendo que não era uma dor, somente uma moínha. Bom, a conversa estava a ficar difícil, por isso comecei a desconversar, dizendo-lhe que tinha que fazer e que continuaríamos o papo depois, no dia seguinte, ou quando desse e assim foi. 


No dia seguinte, à hora do costume, o telemóvel tocou e para variar era ele. Começou a falar das coisas do costume, da vida dele, do que tinha feito e do que não tinha, etc… até que, decidi voltar ao tema da noite anterior, os dentes ou as unhas do senhor Adelino, que continuou a insistir na sua tese de que cortar as unhas às segundas-feiras fazia com que nunca se tivesse dor de dentes. Acontece que eu já estava a ficar farta daquela parvoíce e, portanto, comecei a puxar por ele, no sentido de o fazer perceber que aquilo não tinha ponta por onde se pegasse, pois não fazia o menor sentido.  


Muito chateado comigo disse que, se era bom para os outros, também o era para ele. Insisti, dizendo-lhe que, certamente, tinha sido uma brincadeira do colega porque, ninguém, em sã consciência, podia acreditar num disparate tão grande e ele não me parecia ser uma pessoa estúpida a esse ponto. Mas o senhor Adelino não gostou do meu ponto de vista e foi então que, já muito chateado me disse que, se eu não quisesse acreditar, não acreditasse. Ele, porém, continuaria cumprindo religiosamente aquele ritual porque, até provas em contrário e até à data, só se tinha dado bem. Disse-lhe que a conversa ia acabar por ali, porque não tinha paciência para tanta burrice e assim o telefonema acabou. 


No dia seguinte, como de costume, ele voltou a ligar. Começámos a falar do trivial e, finalmente, a conversa voltou ao mesmo assunto, como não podia deixar de ser. Com toda a calma possível, tive que repassar tudo o que já tinha sido dito, que não me dava gozo nenhum, mas porque precisava de saber com que espécie de pessoa estava a lidar e era-me muito difícil acreditar que alguém fosse tão idiota a ponto de acreditar numa coisa daquelas.

 

No fundo, acalentava uma certa esperança de que ele caísse em si e percebesse aquilo que, em quarenta anos, não tinha conseguido perceber. E a conversa lá continuou comigo a perder cada vez mais terreno, porque o senhor Adelino, na verdade, estava mesmo convencido daquela treta toda, o que muito me impressionava no pior dos sentidos e, contra todos os meus esforços teimava obstinadamente, o que me deixava de rastos e sem palavras, sem argumentos, sem paciência, sem nada.

 

E na verdade, com tudo aquilo eu não precisava de saber mais nada dele. Não precisava nem queria. Achava que tinha chegado à meta, mas não. Surpresa das surpresas, o melhor estava para vir.  


E continuava: 

 

- "Quem pode garantir que um dia não aparece nos jornais que os cientistas descobriram que, cortar as unhas às segundas-feiras, faz com que nunca se tenha dores de dentes?!”… 

 

Ponto final. Não havia nem mais uma única palavrinha para dizer e muito menos para ouvir. Nem sequer um suspiro, nada, nada. Silêncio era tudo o que eu queria dali.

 

A loucura anda à solta e tem nome.