Era uma vez um sofá, comprado no Ikea…
Um dia a minha tia pediu-me para ir com ela ao Ikea comprar um
sofá individual para o meu tio se sentar confortavelmente a ver televisão,
posto que o seu estado de saúde não era dos melhores. Acontece que o Ikea é a
minha loja para todas as ocasiões, para tudo o que se possa imaginar, para mim,
para a família e amigos, sempre, Ikea. Todos à minha volta sabem disso.
Então, numa tarde de sábado, lá fomos ao Ikea, no carro dos meus
tios, por ser bem maior do que o meu. Até aqui, tudo certo. Chegados lá,
começamos a ronda pela exposição dos móveis, para o meu tio experimentar por si
mesmo e escolher, uma vez que o sofá se destinava exclusivamente a ele e depois
de muita escolha, experimenta e não experimenta, lá se chegou a um consenso e o
sofá foi eleito. Dirigimo-nos ao andar de baixo, à loja propriamente dita, a
fim de carregarmos a embalagem no carrinho de transporte até à caixa.
Já aí começou a agitação, porque a minha tia achava que eu sozinha
não ia conseguir tirar a embalagem da prateleira para o carro e ela e o meu tio
não iam podiam ajudar, claro. Com toda a paciência, disse-lhes que não se
preocupassem com isso, que era problema meu e lá pus o sofá embalado no
carrinho, com grande espanto e admiração deles, que não deixavam de estar
preocupados com o modo como o faríamos chegar ao seu destino, porque a cada
passo, aumentava a preocupação deles. Por mais que lhes dissesse que estivessem
calmos e me deixassem fazer as coisas do meu jeito, estavam sempre a dar
palpites e a meter o bedelho e pior, a fingir que ajudavam em alguma coisa,
quando na verdade só atrapalhavam as minhas manobras. Mas é assim mesmo.
Fomos para a caixa, o sofá foi pago e lá fui eu empurrando o
carrinho até ao elevador, com eles atrás de mim, com aquelas caras de aflição,
como se de uma missão impossível se tratasse. A cada passo, lá vinha uma
questão que, para eles, parecia intransponível. Cansavam-me com tantas
perguntas de como é que vamos fazer, como é que vamos acontecer… bla, bla, bla…
e eu já não os podia ouvir.
Chegámos ao carro e a aflição deles só aumentava a cada minuto, a
cada segundo. Eu bem os afastava e lhes pedia por favor para me deixarem fazer
as coisas sozinha, mas eles queriam meter o nariz em cima de todos os movimentos
que eu fazia. Era uma verdadeira canseira. Abrimos o porta-bagagens do Mazda e
percebi que tinha que me livrar da embalagem, levando só o sofá, a fim de caber
na mala do carro. E lá foi, com dificuldade, é claro, mas lá enfiei o sofá de
modo a conseguir fechar a mala.
Todo o caminho tive que ouvi-los “e tu conseguiste, eh pá, como é
que tu conseguiste fazer aquilo sozinha?” Enfim, aquela conversa não
interessava para nada, mas era um mistério para eles. Chamaram-me precisamente
para aquele fim e depois tanto espanto porque eu conseguia o que eles queriam.
Sinceramente, não os entendia.
Finalmente chegámos a casa. Saímos do carro e lá ficaram eles
novamente a torrar a minha paciência para tirar o sofá do carro. Tive que lhes
dizer outra vez para se afastarem, para eu me poder mover, mas a cena foi
idêntica à anterior. Eu a precisar de me movimentar e eles em cima de mim a
meterem o nariz e a dar sugestões, que não faziam sentido nenhum. Mas o sofá
saiu e carreguei com ele até à entrada do prédio e depois tive que subir os
degraus desde a entrada do prédio até à porta do elevador, que não são
poucos. Mas lá foi e tudo isto sob a vigilância atenta dos olhos da minha tia,
especialmente, que não perdia nada, completamente espantada com a minha força,
com a minha destreza, etc. Agora restava pôr o sofá no elevador e a minha
missão estaria cumprida, sem grandes complicações, só que aqui, precisamente,
começou a complicação e não foi pouca.
Primeiro, o sofá, por um triz, não cabia no elevador ou eu não conseguia
fazer com que coubesse porque as portas, por pouco, mas muito pouco mesmo, não
fechavam. Por essa eu não esperava e depois de várias tentativas, achei que a
solução era carregar com ele até ao terceiro andar. Então, respirei fundo,
mentalizando-me de que essa era a solução, enquanto ganhava tempo para me
preparar fisicamente, a fim de subir as escadas com ele. Claro que nesta altura
os meus tios já estavam alucinados e os meus nervos completamente em franja.
Dizia-lhes que fossem para casa que eu resolvia o problema da maneira que
tivesse que resolver, mas eles não arredavam o pé dali por nada deste mundo.
Bom, fiz a tentativa de carregar o sofá, mas assim que subi os primeiros
degraus, logo percebi que não ia ser possível. Era muito complicado e eu não
era de ferro. Os meus cinquenta quilos não chegavam para aquilo, portanto, essa
não ia ser a solução.
Deste modo, a possibilidade era tentar voltar a pôr o sofá dentro do elevador,
dando o jeito de conseguir fechar a porta e assim o fiz. Lá foi o sofá
novamente para o elevador, embora a porta continuasse a não fechar. Empurra
daqui, empurra dali, passa para lá, passa para cá e os “mirones” sempre
atentos, falando o que lhes vinha à cabeça, que eu nem prestava atenção. A
minha concentração era tal, que eu não ouvia nem via nada à minha volta.
Felizmente, que tudo isto se passou num sábado e o prédio estava silencioso. Ao
fim de uma longa hora, consegui finalmente fechar as portas do elevador. Tinha
sujado um pouquinho o sofá, mas não era nada de mais, sairia facilmente. Enfim,
estava cansada, não o podia negar, mas já podia respirar de alívio, porque
estava na ponta final daquela ingrata missão, pensava eu. Entrei no elevador e
carreguei para o terceiro andar. O elevador subiu e com grande alívio estávamos
chegados ao destino. Eu nem queria acreditar.
Saio cá para fora, começo a puxar pelo sofá para o tirar e lá vem
a minha tia a “tentar” ajudar e eu a empurrá-la para ela se meter em casa e me
deixar manobrar à vontade. Mas então, tu não podes sozinha, dizia ela, como se
já não tivesse podido antes. Bem, começa outra vez a minha luta, porque o sofá
agora não queria sair de jeito nenhum. Eu puxava, empurrava, saltava por cima,
para dentro, para fora, mas o sofá, teimoso, não cedia de maneira nenhuma. Eu
estava doida e só me apetecia pegar num martelo e parti-lo todo, de farta que
estava daquilo. Mas isso não podia ser, pelo menos até eu fazer todas as
tentativas possíveis e impossíveis.
Não adianta explicar aqui as cenas que se passaram. O sofá não
saía. Voltei a descer para tentar tirá-lo no rés-do-chão, onde ele tinha
entrado, podia ser que a medida não fosse bem a mesma, mas o resultado era
igual, não saía e pronto. Passou uma hora e eu estava de rastos. Eu e o sofá
numa luta desgraçada. Passou mais uma hora e tudo continuava na mesma, só eu
mais e mais cansada. Mais que isso, derrotada, transpirando por todos os poros.
O cabelo estava uma verdadeira sopa. Parecia que tinha saído do esgoto.
Transpirava dos pés à cabeça, com a roupa colada ao corpo. O meu rosto estava
com um aspecto deplorável, com umas olheiras fundas e escuras como eu nunca
tinha visto e o pior de tudo é que não via uma saída.
Parei para pensar e porque já não aguentava mais. Tínhamos ido para o Ikea logo
a seguir ao almoço e já era. A noite estava instalada e o diabo do sofá a
atazanar a minha paciência. Que fazer? Sentia-me completamente encurralada.
Eles tinham-me pedido ajuda porque não tinham alternativa. Só eu estava
disponível para os ajudar e olha o que tinha acontecido. Deus do céu!
Estávamos os três parados, em silêncio, com umas caras de
defuntos, como se estivéssemos num velório, onde não há nada a fazer a não ser
estar. Sozinha comigo mesma, pensei que tinha que resolver aquele assunto, por
todas as razões e mais algumas e porque eu sempre resolvo tudo e onde meto os
pés meto a cabeça. Só que ali, naquele caso, tinha que o resolver recorrendo à
ajuda de alguém, porque verdadeiramente e finalmente tinha que admitir que
sozinha não conseguia. Tinha que recorrer a alguém e precisava de agir
rapidamente, porque o dia estava a acabar e aquilo era para ser resolvido ainda
naquele mesmo dia. Não ficaria para o dia seguinte, de maneira nenhuma, posto
que era ponto assente e continuávamos todos em silêncio, dando pequenos passos
à toa. Não tinha a quem recorrer, que eu conhecesse e pudesse ir ali, portanto,
restava-me a solução mais louca, mas a mais prática e porque sou uma pessoa
prática, assim pensei, assim fiz. Anunciei alto e bom som, que ia à rua arranjar
um ou dois homens fortes para tirarem o sofá dali.
Oh, foi o fim da picada. Vieram os comentários da ordem, que eu era doida, já o
sabia. Onde e quem é que eu ia buscar? Aí estava uma coisa a que eu não podia
responder porque, sem antes ir, não podia saber. Disse-lhes, então, que
ficassem ali a tomar conta do sofá. Insistiam em querer saber onde eu iria.
Gritei que não sabia, não tinha ideia, mas iria aonde fosse preciso e
necessário para trazer comigo alguém, a fim de resolver o problema. Não sabia
quanto tempo levaria e mais nada. Que desassossego, Deus meu! E lá saí eu porta
fora, com um ar e um aspecto miserável. Enfim!…
Começo a descer a rua e as primeiras pessoas que vi, eram dois
casais, gente nova, bem vestidinhos… esses não interessavam. Não eram
apropriados para o efeito. Mais uma ou outra pessoa que nem valia a pena
indagar. Virei a esquina e passava gente, pouca, mas passava. Tinha mesmo que
dar uma de doida e abordar alguém. Não iria presa por isso, foi o que achei. Eu
só precisava de ajuda e isso não era crime. Quando os outros precisavam de mim
eu estava pronta para o que fosse, portanto, estava na minha vez de pedir ajuda
e para isso tinha que pôr de lado e esquecer completamente a ética, o
preconceito, o orgulho, a vergonha e mais alguma coisa de que agora não me
lembro. Era uma varridela completa ao mais íntimo do meu ser, do meu âmago.
Paciência.
Sempre andando, dou uma olhadela geral e vejo um indivíduo encostado à parede,
com um joelho dobrado e o pé para trás, apoiado na parede, com um cigarro,
deitando fumaça para o ar. À frente dele estava uma rapariga com quem ele
parecia falar. Ainda por cima aquela era uma zona bem afamada, quem me garantia
que não era prostituição!? Mas o indivíduo, que de noite e ao longe, aparentava
uns trinta e cinco anos, mais ou menos, tinha um porte atlético, exactamente
como eu naquele momento precisava. Com toda a certeza ele fazia muito exercício
físico, pois ninguém podia ter um cabedal daqueles sem ser assim. Pessoalmente,
não gosto de homens demasiado musculados, mas naquele momento, era tudo o que
eu precisava. Estava resolvido, ia caçá-lo, fosse como fosse. Pedi a Deus que
me desse forças e comecei a encaminhar-me para lá.
Entretanto, chegou outro indivíduo mais velho, que não tinha nada a ver, também
a fumar, mas daria para ajudar, caso eu conseguisse comovê-los com a minha
história. Esse é que era o problema e naquele momento eu tinha que ser tudo
menos eu, ou não estaria ali a fazer aquela triste figura. Mas lá fui na
direcção deles, até que cheguei ao pé dos três, que ficaram a olhar para mim
com um ar surpreso e inquisidor, como era de esperar.
O rapaz mais novo pôs o cigarro na boca e em vez de atirar o fumo para o ar,
como o estava a fazer, atirou para a frente, num jeito meio provocador, que
tive que me afastar ligeiramente, mas nem por isso desisti. Pedi desculpa pela
intromissão e fui direita ao assunto. Disse que tinha ido ao Ikea comprar um
sofá para o meu tio que estava doente e na volta, o sofá, que tinha entrado no
elevador – só não disse o trabalho que deu -, não queria sair e não sabia o que
fazer, por isso precisava de alguém que me desse uma ajuda, para não deixar os
meus tios a braços com aquela empreitada, dada a idade avançada
deles. Saiu, agora restava acreditarem em mim e permitirem-se fazer uma
boa acção.
Silêncio... enquanto o fumo se dispersava no ar, perdendo-se, para logo em
seguida vir outra fumaça. Olharam todos uns para os outros, numa atitude de
aparente indiferença, até que a rapariga intercedeu por mim e num tom de
humildade, pediu ao rapaz para dar uma ajuda. O rapaz olhou para o outro
indivíduo e por sua vez pediu-lhe ajuda, enquanto a rapariga continuava a fazer
o papel de boa samaritana, instigando-os a irem ajudar-me. Apagaram os cigarros
no chão, com o pé, e lá fomos todos, os quatro, enquanto eu começava a respirar
aliviada por toda aquela forçada encenação que, com toda a verdade, não estava
no programa. E enquanto nos dirigíamos para casa, na direcção contrária,
aparecem os meus tios, que me vêm com aquela desconhecida turma. Em vez de
estarem calados e quietos, que só facilitavam, nada disso. Começam a fazer as
observações mais despropositadas e caóticas possíveis e eu a ver quando é que
iam deitar tudo a perder. Santo Deus! Quem são, perguntavam eles, mas quem é
essa gente e eu, chiu, chiu, falem baixo. Mas donde é que os conheces? Não os
conheço. Então como é que eles vêm contigo? Calem-se, por favor, dizia-lhes eu,
que só me apetecia estrangulá-los. Então e agora, o que é que vão fazer? Vão
tentar ajudar, se vocês derem licença, a menos que queiram resolver o problema
à vossa maneira… enfim… não estava sendo nada fácil.
Chegados à entrada do prédio, toda a gente entrou e os homens
depararam-se com o problema que eles não faziam ideia do que ia ser. Quando
olharam, de certeza acharam que eu era uma inútil, coitada. No olhar deles
estava estampado que aquilo era canja. A minha expectativa era grande, pois na
verdade, não fazia ideia do que ali se iria passar. Tudo era possível. Tudo.
Enquanto a rapariga falava com os meus tios, mais propriamente com
a minha tia, os dois homens tinham dado início à tarefa e eu não desviava a
minha atenção deles, por nada deste mundo. Queria ver o que aquilo ia dar e
rezava para que eles conseguissem resolver o problema. E aí passaram cinco
minutos, e dez, e vinte e já estávamos com meia hora bem contada e o sofá não
saía e o homem mais velho volta e meia perguntava, foi a senhora que meteu o
sofá no elevador? Já não o podia ouvir. E passou mais meia hora e os dois
homens estavam alagados. Transpiravam por tudo quanto é lado e a minha tia com
as mãos apertadas e os dedos cruzados, não parava com a mesma lamentação “ora
esta”, ora esta… os meus ouvidos já estavam saturados e os homens suavam,
suavam. Eu estava quase a pôr termo àquilo tudo, indo buscar o martelo para
quebrar o sofá e esvaziar o elevador quando, finalmente, como que por milagre,
o sofá saiu inteiro, sem precisar de ser abatido.
Fantástico!