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domingo, 21 de fevereiro de 2016

África - 27


Uma das coisas de que sempre gostei foi de correr riscos. Sempre gostei de sentir a adrenalina, quando algo perturbador se aproxima de nós. Contudo, os meus riscos foram sempre calculados, de modo que as hipóteses de darem errado sempre foram acauteladas. Não deixaram por isso de ser um risco maior ou menor. Em cem por cento de cautela, havia sempre um por cento ou talvez um pouco mais, das coisas correrem mal. Por isso, se alguma vez tivesse falhado, sabia bem de quem era a responsabilidade. Ainda assim, correr o risco valia a pena, pela pura adrenalina, mas falhar, não podia acontecer.

 

Em criança, com cinco anos, vivia em África, onde a minha vida era uma liberdade sem limites porque, literalmente, fazia o que queria. O meu pai passava uma boa parte do dia no quartel e a minha mãe em casa, fazendo alguma coisa ou simplesmente descansando, ao ar livre. Nunca passou pela cabeça de ambos, as coisas que eu fazia. Sempre fui uma aventureira inata. Descobria por minha conta e risco o que queria e me interessava. Sempre tive a noção do perigo e protegia a minha irmã, mais nova do que eu e bem assim, os amiguinhos, porque sabia que não tinha que metê-los nos mesmos apuros em que eu me metia. Além de que, a confiança que tinha em mim, não tinha nos outros. Os outros, considerava-os crianças. Em relação a mim mesma, sempre me considerei meio criança, meio adulta. Sempre soube que havia em mim um passo um pouco mais adiante em relação às outras crianças. E isso, de certa forma, fazia-me sentir responsável por eles. Por isso, o que servia para mim, não servia para eles, não permitindo que, só porque estavam comigo, fizessem as mesmas loucuras que eu. Podiam assistir, ver, mas tinham que estar quietos. 

 

Eu trepava às árvores, pior do que os garotos da minha idade, o que muito aborrecia o meu pai, que passava a vida repetindo que eu era uma menina e não um rapaz e que havia coisas que as meninas não podiam fazer. Mas aquela conversa não me interessava. Eu não tinha a menor intenção de lhe desobedecer, em todo o caso, subiria às árvores todas as vezes que os cajueiros tivessem um só caju, que seria para mim e para mais ninguém. Chateados, os garotos, sempre haveria um que acabava por me denunciar e depois era a parte que doía, porque eu sabia que o meu pai ficava muito aborrecido. Claro que o problema dele era que eu caísse e me machucasse, mas eu achava que isso nunca ia acontecer. Era tão simples subir às árvores! E os cajus justificavam. Não havia fruto mais bonito e delicioso que um cajú madurinho e suculento. Não havia nada igual. O problema, também, é que eles não tinham tempo de amadurecer, porque eu não lhes dava essa oportunidade, desde que uma vez perdi uma bela duma manga, apenas porque estava à espera que ela estivesse no ponto certo. Claro que à mangueira não podia subir. Mas nem precisava. A pernada do ramo quase entrava por uma das varandas do primeiro andar da casa do quartel onde morávamos nessa altura. Contudo, na altura certa, a manga desapareceu. E não é que não houvesse mangas em casa. Mas aquela era minha. Alguém roubara a minha manga, o que me deixou triste durante alguns dias, enfiada pelos quatro cantos da casa.

 

Em Bissau, nos arredores da cidade, onde vivíamos, nas casas que o exército disponibilizara para os militares, a vida era uma aventura. Desde que acordava até à hora de me deitar, era uma festa. Contudo, a verdadeira festa acontecia durante a noite, depois de me deitar. É que, quase todos os dias depois do almoço, a minha mãe fazia-nos dormir uma sesta e com o calor, às vezes dormia de mais e à noite, sobrava energia. O quarto dos meus pais dava para a estrada nacional, mas o nosso, dava para o mato. Mato cerrado. E quando não conseguia dormir, começava a ouvir algo que inicialmente achava estranho, mas que com o tempo começou a ser habitual e mais do que isso, familiar. Eu ouvia um batuque ritmado e forte, acompanhado de uma espécie de canto. Eram vozes que se manifestavam de um modo particularmente estranho, porque indefinido. Aquilo não parava. Entrava pela noite dentro despertando a minha curiosidade de criança e aguçando o meu desejo de correr riscos. Eu tinha que descobrir o que era aquilo. Eu tinha que ver. E no meio da noite escura, na ausência total de luz, apenas com a luz da lua, levantava-me, certificava-me de que a minha irmã no seu berço dormia tranquilamente, punha uma cadeira junto à janela que estava sempre aberta, protegida com uma armação de rede por causa dos mosquitos e sem fazer o menor ruído tirava a rede que colocava em baixo, no chão, e saltava para o lado fora.

 

Então, na noite mágica, era só eu e eu. Sozinha, usava os sentidos com toda a atenção para perceber de que lado vinha o batuque e depois era só seguir naquela direcção. Se o som se perdia era porque estava na direcção errada. E assim, ia chegando perto, cada vez mais perto, olhando para trás para não perder de vista a direcção de casa, caso contrário, ficaria perdida no mato, sendo que esse era um dos riscos que não podia correr - perder-me -, de jeito nenhum, porque mais do que tudo eu queria a minha casa e a minha família. E só de cuecas, por causa do calor, só tinha medo de uma coisa: as cobras. Morria de medo das cobras. E como sabia que o mato estava cheio delas, ia sempre aos saltinhos, pulando de pé em pé, para fugir delas e não terem tempo de me apanhar, achava eu.

 

Tudo isto acontecia enquanto a minha irmã com menos de dois anos dormia tranquilamente, para não falar dos meus pais que estavam longe, longe, a milhas de pensar no que a sua primogénita tão bem comportada e sobretudo, tão sensata, como a minha mãe sempre fazia questão de realçar, andava a fazer durante as noites em que não conseguia dormir. E na verdade eu era sensata porque tinha a exacta noção do que fazia, dos riscos que corria, mas também tinha a noção de que aquela era a minha verdadeira natureza e que algo invisível me protegia sempre, como se na verdade nunca estivesse completamente sozinha, protegida de tudo e mais alguma coisa. E só por isso eu não tinha medo, coisa que fui tendo cada vez mais, à medida que fui crescendo e foram acontecendo coisas que eu não entendia porque tinham que acontecer.

 

E sempre fugindo às cobras, lá ia eu atrás do batuque. À medida que o som aumentava, a minha excitação era maior, porque sabia que estava a chegar. Parava um pouco para reflectir se havia de avançar ou retomar o caminho de volta para casa, mas acabava sempre por continuar. O perigo era mais sedutor. E à medida que me aproximava, primeiro de longe, sem ser avistada, escondida no capim ou no canavial, via o espectáculo todo. Os homens e as mulheres faziam uma roda, com faixas de grandes e bonitas penas à volta da cabeça. Uns dançavam, cantavam e outros tocavam nos tambores. Aquilo era bonito. Eu queria ver de perto, por isso ia-me aproximando devagarinho para não os assustar e perceberem que eu era inofensiva. 

 

A princípio assustavam-se, porque aceleravam o batuque e especialmente as mulheres, entravam em histeria ou transe mais acelerado, em sinal de alerta. A minha estranha e enigmática presença devia ser tão surpreendente para eles, como aquele espectáculo para mim. Só que, para mim, tinha sido uma escolha. Escolha minha. Para eles, não. Eles estavam a ser invadidos por algo insólito, que não tinham como compreender. Como, no meio da noite, uma criança branca tão pequena, aparecia ali no mundo deles, vinda de onde, perdida… devia ser muito complicado para aquelas cabeças?! 

 

Naquela altura eu não tinha como saber. Só muito mais tarde soube que eles eram feiticeiros e, portanto, estavam em pleno ritual, por qualquer motivo que só eles sabiam. A minha presença ali, infalivelmente, interferia nas intenções deles, no destino deles e isso deveria ter uma interpretação transcendental qualquer. Com certeza a minha presença encaixava no ritual, do qual eles tiravam uma qualquer ilação.

 

E quando eu já estava muito próxima deles e percebia que não me iam fazer mal, porque se quisessem já o teriam feito, e em vez disso continuavam olhando para mim mas, de certa forma, ignorando-me, eu chegava a entrar no círculo, onde ficava, encantada, extasiada, por fazer parte daquela festa, que para mim era única e exclusiva. Ninguém mais sabia daquilo. E ficava, ficava, às vezes até me sentava um pouco nas pedras do terreiro, deliciada, observando todos os gestos, movimentos, batuques e até as suas expressões. Depois, quando o sono começava a chamar por mim, levantava-me e tomava o caminho de volta, com o coração um pouco apertado, não fosse perder-me no caminho. Quando ao longe avistava a casa, então, respirava aliviada. Estava a salvo.

 

No meio destas aventuras todas, nunca ninguém me fez mal, nunca ninguém me tocou ou me incomodou. Eu sentia-me em casa, em família. Hoje, penso que aqueles rituais, independentemente do motivo por que se realizavam, deviam estar ligados às fases lunares, quero dizer, deviam acontecer com determinadas fases da lua, não sei.

 

Depois, havia os crocodilos. As casas ficavam à beira da estrada nacional. Do outro lado da estrada, a caminho do quartel, na cidade de Bissau, havia o mercado e um pouco antes do mercado, havia um fosso que vinha lá do meio do canavial e como era um fosso, fazia um desnível no terreno. Como era tudo terra batida, com as chuvas, a parte de cima do fosso tinha uma abertura pequena, e lá em baixo havia crocodilos. Sempre que se juntava um grupo de criançada havia que fazer alguma coisa. Na melhor das hipóteses inventava-se e lá íamos nós para os crocodilos. Como a minha mãe confiava muito em mim, eu andava sempre com a minha irmã atrás e tal como as nativas, tinha uma faixa que amarrava à cintura, onde sentava a minha irmã e rodava para trás, colocando-a às minhas costas, com o pano amarrado à cintura, o que fazia com imensa facilidade e assim a carregava para todo o lado, apesar dos avisos da minha mãe, que achava que aquilo me fazia muito mal às costas. É claro que fiquei com uma escoliose e uma cifose, o que não foi por acaso. E lá ia com a criançada toda para os crocodilos.

 

Isto, só por si, não seria muito grave, não fora a questão do fosso estar aberto na superfície e nos pormos a espreitar lá para baixo, a chamar nomes aos crocodilos, como que a provocá-los. Mas pior do que isso é que a abertura do fosso dava para cair lá em baixo e eu, sempre com a tolice de gostar de correr riscos, tinha aí uma óptima oportunidade para sentir a adrenalina a subir até furar os tímpanos, porque mandava todos sentarem-se, do mesmo modo que sentava a minha irmã muito bem sentadinha numa pedra que sempre tinha o cuidado de arranjar, maneirinha, para ela ficar bem confortável, dizendo-lhe para não sair dali de jeito nenhum, no que ela me obedecia sem reclamação alguma e, afastando os outros miúdos, saltava sobre a abertura do fosso. A cada salto que dava, afastava-me o suficiente para ganhar velocidade necessária e abrir as pernas o mais possível, caso contrário, caía lá em baixo e os crocodilos faziam uma festa comigo. Eu sabia disso. Tinha plena consciência, mas o risco era uma tentação. De cada vez que saltava havia um silêncio profundo e um medo quase aterrador que se transformava numa verdadeira festa, logo que os dois pés atingiam o lado oposto e a miudagem batia palmas de contente e depois também queriam fazer. Mas aí eu não deixava. Eu confiava em mim, nos outros não e não me agradava ver nenhum deles cair lá em baixo e ser devorado pelos crocodilos que estavam constantemente a levantar aquelas carcaças horrendas, abrindo a bocarra toda com quantos dentes tinham, como que dizendo “que apetitosos que vocês são!” 

 

Depois, íamos ao canavial, cortávamos canas bem compridas, descíamos à parte mais baixa do fosso, a vala, e quando os crocodilos vinham na nossa direcção de boca aberta, enfiámos as canas pelas goelas adentro e corríamos novamente para a parte de cima, onde estávamos relativamente em segurança, desde que não caíssemos lá em baixo. Quando nos fartávamos dos crocodilos regressávamos a casa esfalfados das brincadeiras que ninguém imaginava.

 

 

África foi um maravilhoso presente que a vida me deu. Depois de ter perdido a minha Índia com três anos de idade e de ter sido trazida para Portugal, onde tudo me parecia estranho e feio, sem graça, onde as pessoas vivam com as portas trancadas e não havia liberdade nem espaço para as brincadeiras, África foi o melhor que a vida me podia ter dado naquela altura, o que me deixaria uma saudade imensa para toda a vida.