“Escuta, ó Senhor das águas misturadas!
O imóvel dispersa-se, e o movente permanece”
(Basavanna)
Dois
dias depois de chegarmos aos Açores, para mais umas férias de Verão com a
família do meu marido, o Padre Domingos decidiu que íamos todos para a quinta,
a fim de mudar de ares e espairecer um pouco. Como com tudo era ele que
mandava, as suas ordens eram sempre para cumprir. Assim, depois de ter feito
duas viagens para levar algumas coisas que era importante ter lá, à terceira
fomos todos enfiados no carro, rumo à quinta, que ficava a uns vinte
quilómetros de Ponta Delgada.
A
quinta estava há muito tempo desabitada. Por isso, tanto no interior como no
exterior, estava tudo numa lástima. A minha sogra por lá andou a matar-se a
fazer algumas limpezas essenciais, mas, ainda assim, estava tudo num deus nos
acuda. Acontece que eu não ia de férias, propriamente, para andar metida em
limpezas e, portanto, tive que me sujeitar. O meu marido, esse, ficou para
trás, claro, porque não lhe apetecia ficar na quinta, longe de tudo e do seu
passatempo, o trabalho, porque apesar de estarmos nos Açores, a RTP para ele
continuava, de férias ou sem férias, uma vez que não sabia fazer outra coisa na
vida e porque todos os seus amigos eram os colegas de trabalho.
Já eu,
queria ter direito a férias e estar longe ou fora do trabalho, onde estava o
ano inteiro. Se, para ele, a vida era só trabalhar, por dever e por gosto, para
mim, havia muito mais coisas do que o trabalho. Havia a casa, o filho, a
família, etc. Portanto, se alguém precisava mesmo de férias, esse alguém era
eu, com toda a certeza. Só que, a bem da verdade, as férias nos Açores eram
sempre um massacre. Ele chegava, pousava a bagagem, que incluía o filho e eu, e
pirava-se imediatamente para fora, para onde lhe apetecia, para fazer apenas e
somente o que queria e lhe convinha. Era eu que tinha que ficar em casa com o
filho e toda a família, sem reclamar ou refilar.
Na
quinta, tudo era poeira e teias de aranha. No piso de baixo havia uma enorme
cozinha e uma sala de jantar bem grande, assim como uma sala de estar que era
um autêntico salão. No piso de cima eram os quartos. A casa era muito bonita e
enorme, mas no estado de completo abandono em que estava, passava completamente
despercebida. Era difícil esquecer toda a lixeira e bagunça para a poder
apreciar devidamente. Havia um espaço enorme no exterior, totalmente
desaproveitado. Ali, em tempos idos, existia uma hortinha razoável e um pomar,
onde ainda havia árvores de pé. À volta da casa tinha um espaço para lazer,
outrora muito bem ajardinado, onde as flores teimavam em desabrochar, no meio
de toda a erva daninha.
O meu
cunhado e a mulher, esses, despacharam os filhos, de imediato, para a quinta,
para estarem com a avó, uma vez que o primo, o meu filho, estava lá. Mas a
questão não era essa, estarem com o primo. A verdadeira razão é que eles tinham
um medo e um ciúme desgraçado de que a avó se apegasse mais ao meu filho do que
aos deles, por ele só ir lá de férias no Verão e no Natal. Como se isso fosse
possível!? Aquelas crianças, a Catarina, com mais um ano e o André com menos
um, passavam tanto tempo com a avó, porque a mãe não tinha paciência para os
aturar, que era impossível a minha sogra vir a gostar mais do meu filho do que
dos deles.
Com
tudo isto, eu acabava sempre por ter três em vez de um, sendo que era bem mais
difícil aturar os outros que o meu. É a vida. Para o meu marido, tudo isto passava
ao lado. Se lhe falasse nisso ou se tivesse algum desabafo com ele, logo diria
que era até muito bom, para que o Henrique tivesse convivência com os primos e
tal e coisa. Não é que não tivesse razão, porém, quem aguentava com tudo em
cima era eu. E tinha mesmo que ser assim, caso não fosse, a minha sogra não suportaria
toda a carga que sempre tinha em cima dela. Ela aguentava coisas que eu não
compreendia porquê. O facto de aceitar ir para ali já era um sinal disso. Era
muito mais fácil para ela ficar em casa. Era, no mínimo, mais sossego, mais
descanso. Ela sempre tinha uma barra pesada, onde quer que estivesse, mas em
casa dela, pelo menos, tinha tudo organizado, sem precisar de mais esse
adicional.
E
pronto, lá estávamos, a aguentar as férias ou o que quer que fosse. Eu já sabia
que só ia descansar quando voltasse ao continente, à minha casa e, a bem dizer,
à minha rotina. Mas não tinha outro remédio. Cada um tem a vida que merece. É
complicado quando uns podem fazer tudo o que querem e nunca o que não querem e
outros têm sempre que fazer apenas e somente o que não querem.
Num
sábado à noite, quando entrei na cozinha, onde a minha sogra passava a maior
parte do tempo, porque ainda por cima a culinária dela não era propriamente
simples e muito menos rápida, percebi que, em cima da gigantesca mesa de jantar,
estava alguma loiça que pensei que seria para pôr na mesa. Quando lhe
perguntei, respondeu que o Domingos queria comer lá fora. Se ele queria comer
lá fora, queria isso dizer que todos iríamos jantar lá fora. Era uma ordem.
Mais uma. Mas lá fora porquê? Aquilo iria dar um trabalho desgraçado. Claro que
isso para ele não importava nada. Mas era comodista ao ponto de querer lá fora
apenas para não ter de levantar o rabinho dali.
Sempre
a seguir ao almoço ele batia uma sorna, fosse ou não para a igreja. Primeiro,
tinha que arranjar tempo para a sua soneca. E naquele dia não foi diferente.
Mas depois disso, levantou-se e foi lá para fora, sempre com o seu precioso
missal, sentando-se à mesa de pedra que havia debaixo de uma árvore, que tinha
uma copa enorme, e onde se ficava resguardado do sol. Sentado no banco de pedra
com o missal aberto em cima da mesa, ali ficou a tarde toda, compenetradíssimo
no que estava a ler.
Então,
a minha sogra explicou-me que ele lhe tinha dito que queria comer lá fora,
porque não se queria levantar dali. Isso foi logo o que pensei, mas aquilo era
o cúmulo. Como podia ser?! Mas ele era assim mesmo. A mesa não ficava longe da
cozinha para ir andando a pé. Mas para comer lá fora, era uma grande maçada
para a pobre da minha sogra, que não ia ter sossego. Enquanto ele ia ficar ali
refastelado, a ser servido de toda a maneira e feitio, a coitada não ia parar
de andar para fora e para dentro, carregando com tudo. Não, não podia ser.
Achei que aquilo não era tolerável de maneira nenhuma e fiquei muito
incomodada.
Então
pensei para comigo mesma que desta vez, pelo menos desta vez, as coisas iam ser
diferentes e não iam ser do jeito dele. Por isso disse à minha sogra que não se
preocupasse que eu resolvia por minha conta e risco. Fiz de conta que não sabia
da imposição dele e comecei a pôr a mesa dentro de casa. A minha sogra percebeu
imediatamente o meu plano e embora receosa, não se manifestou nem me
contrariou, aceitando tudo o que eu estava a fazer.
Quando
tudo estava pronto para o jantar, chamei as crianças para a mesa e fui lá fora
ao encontro do Padre Domingos, que continuava imperturbável, agarrado à sua
importantíssima leitura. Aproximei-me calmamente, dizendo-lhe, simplesmente,
que a mesa estava posta e estávamos todos à espera dele, pelo que agradecia que
viesse para dentro.
Vagarosamente,
parou a leitura e levantou um pouco a cabeça, enquanto com um ar extremamente
calmo e apenas com uma ligeira admiração, perguntou se não jantávamos ali. Do
mesmo jeito calmo e tranquilo, respondi que não, que a mesa estava posta lá
dentro, enquanto me fui desviando, propositadamente, de retorno a casa, para
não lhe dar oportunidade de questionar fosse o que fosse, nem fazer comentários
que não me interessavam de todo.
Para
meu espanto, percebi que se moveu lentamente, fechando o livro e levantando-se
com todo o vagar, seguiu-me em direcção a casa, onde entrou e sem reclamar
absolutamente de nada, sentou-se à mesa para o jantar. Pensei para comigo
mesma, “tudo em ordem, tudo na boa”. Pelo menos desta vez, só por uma vez, ele
teve um comportamento aceitável e adequado, rem refilar, sem reclamar. Só por
esta vez, a minha sogra ficou um pouco mais aliviada e tudo correu na
perfeição. Às vezes temos que ter a coragem para fazer a diferença.
“O imóvel dispersa-se, e o movente permanece”