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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Quequto - 25


Quequto é aquele garoto irrequieto e indisciplinado, que está sempre a levar broncas por causa do seu mau feitio e outras coisas mais. Mas o que poucos sabem é que ele é também sensível e cheio de ideais que, talvez não pareça, mas em relação aos quais corre atrás. Eu sei porque duas vezes por semana tenho que levar com ele e tenho que ter tanta paciência com ele como ele comigo. 

Durante muito tempo tinha um disco que era sempre o mesmo: "vou ser como o Ronaldo! Vou ser igual a ele!" Cansei de ouvir esta ladainha vezes sem conta. Por tudo e por nada, ou seja, porque se sentia diminuído e inferiorizado, muito provavelmente, umas vezes com razão, outras nem tanto, sei lá. Oito anos apenas... nem sempre é fácil. Até porque uns têm tudo e outros não têm nada.

O facto, é que eu já não podia ouvir aquela cena do vou ser igual ao Ronaldo. Até a uma simples pergunta que lhe fazia, antes de responder directamente à questão, primeiro saía aquele disco. Logo, aquela afirmação era pertinente. Se não sou bom naquilo que os outros querem que eu seja, vou já avisando que serei um “clone” do Ronaldo.

Então, um dia, comecei a pensar na forma de alterar aquela distorção de personalidade. Porque a mim, aquilo não soava nada bem. Querer ser igual a alguém é mau, porque implica uma anulação do eu. Eu quero ser o outro. E ninguém é o outro. Cada um só é igual a si mesmo. Para isso tem que se encontrar.

E o Quequto, um menino das Áfricas, de família humilde, carenciada, etc..., não fugia à regra. E não era por ter apenas oito anos que não era relevante. Enfim, a minha cabeça começou a ponderar naquele assunto e a passar a mensagem para o sítio certo: o coração. 

Um dia, enquanto estávamos no apoio a trabalhar com as crianças, mais uma vez apanho o Quequto com o disco do costume, sempre acompanhado de uma falsa superioridade, pelo facto de querer ser igual ao outro. E não esperei mais. Pus as mãos nos ombros dele, abanando-o ligeiramente, mas com muita firmeza enfrentei-o olhos nos olhos e depois de um curto silêncio em que o trouxe inteiro a mim, fazendo-o focar toda a atenção nas palavras que ele ia ouvir, não sem algum receio e inquietação, pois acho que pensou que seria mais uma bronca, disse-lhe simplesmente: “ouve o que te vou dizer. Ouve bem, com muita atenção e nunca, mas nunca te esqueças disto - e a ansiedade dele crescia, mas aguentou-se sem me interromper -, tu não vais ser igual ao Ronaldo, ouviste? - E o olhar dele estava fixo e imóvel, sem saber se ficava de rastos ou se explodia, como era seu costume com tudo - Tu não vais ser igual ao Ronaldo, nunca. Sabes porquê? - E os olhos dele enchiam-se de brilho e ficavam ainda maiores - Porque tu vais ser muito melhor do que ele. Mas muito, muito melhor. Por isso, nunca mais te quero ouvir dizer que vais ser igual a ele. Quando fores um jogador profissional, nunca mais ninguém vai falar do Ronaldo, porque tu vais ser muito melhor do que ele”.

Baixou a guarda e continuou a olhar para mim, como se estivesse anestesiado. Jamais pensou que poderia ouvir de alguém semelhante coisa. Tenho a certeza de que por momentos ele experimentou a sensação do sonho impossível que na realidade não é impossível. O facto é que ficou curado e nunca mais, nunca mais voltou a falar do Ronaldo. Em contrapartida, começou a ganhar cada vez mais confiança em si mesmo, no que se referia ao aprendizado que era o pretendido.

Eu acredito que o Quequto um dia pode vir a ser melhor do que o Ronaldo. Quem diz ele diz outro qualquer. 

Porque não?

 

sábado, 28 de novembro de 2015

Sofia - 24


Sofia era uma jovem mimada e às vezes, chata até dizer "chega". Passava a vida a ligar-me para saber se estava em casa, vir a correr ter comigo e ficar, ficar até já não a poder ver nem ouvir. E se não estivesse em casa, havia de arranjar maneira de se encontrar comigo onde quer que fosse. Precisava sempre muito de falar comigo. Era sempre tudo muito importante e só podia ser comigo. Era eu que sabia sempre o que ela havia de fazer e falava comigo sobre todas as coisas da vida dela. Concordava sempre comigo, mas depois... depois, acabava sempre por fazer completamente o contrário e tudo dava sempre errado. Era fatal como o destino.

 

Imensamente desordenada, sem método algum. Era difícil compreender como conseguia segurar o emprego, uma multinacional onde trabalhava há vários anos como gerente e onde era super eficiente. Isso é que me intrigava, porque fora desse contexto, Sofia, com trinta e três anos, que podia ser minha filha, era uma completa desnorteada. 


Mas era linda! Linda de morrer, a danada. Tinha sempre um ar de modelo, capa de revista. Era demais. Adorava ser fotografada porque era muito fotogénica e algumas vezes fomos para sítios especialmente bonitos para a fotografar, o que na verdade era fácil. Era fácil captar o que de melhor tinha: o sorriso, a simpatia, a sedução, a figura bonita e o ar transcendental e ao mesmo tempo enigmático com que posava, tudo junto, traduzia-se num excelente resultado em termos fotográficos.  

 

Era muito simpática, um doce!… Mas uma chata, também. Às vezes muito lamechas, parecia uma gata a pedir carinho, mimo e eu não tinha muita paciência para essa parte. O problema é que ela tinha uma relação péssima com a mãe e para lá de boa com o pai o que, em minha opinião, segundo o que ela me contava, enciumava um pouco a mãe. E a minha missão foi precisamente essa. Restabelecer a ligação dela com a mãe, que tinha ficado perdida algures no tempo. 

 

Quando ela corria para mim, para me colocar alguma questão, pedindo-me ajuda para qualquer situação, porque estava sempre em apuros, se eu não lhe dava razão, depois de me ouvir, respondia rindo “pareces mesmo a minha mãe”, mas quando eu achava que ela estava certa e ficava do lado dela, dizia “tu entendes-me… porque é que a minha mãe não consegue ver as coisas como tu?”

 

Mas eu gostava muito dela, embora, na maior parte do tempo, a achasse uma chata muito grande, porque me cansava demais, não me dando descanso e estava sempre a esquecer-se de que eu não tinha a idade dela.  O namorado, com quem viveu sete anos, um dia cansou-se e deixou-a. Ficou mal, não aceitou a situação e decididamente fui eu que levei com a crise em cima. Não dava um passo que não fosse comigo, fosse para onde fosse. Não me dava trégua. Quando eu pensava que ia ter um tempinho para mim, lá vinha ela com qualquer invenção, invadindo a minha vida e a minha privacidade como um verdadeiro furacão. Tudo fazia para passar o menor tempo possível em casa, sozinha, porque dizia que sentia um enorme vazio pela falta dele. 

 

Então, um dia, sugeri-lhe que fizesse algumas mudanças em casa. Mudando o cenário, talvez fosse mais fácil desligar-se da presença dele. Compreendeu o meu ponto de vista e aceitou, mas com a condição de ser eu a fazer isso, porque ela não sabia que volta dar à questão. Pronto, como é que eu não tinha pensado nesse pormenor?! Mas também, se andávamos sempre juntas para todo o lado: praias, cinemas, restaurantes e outras coisas mais, é claro que tinha que sobrar para mim. 

 

Era verão, um calor desgraçado! Entrámos pela garagem para estacionar o carro e subimos no elevador até ao quarto andar. Na entrada da porta, do lado de fora, estava uma coisa parecida com um sol, em metal. Perguntei-lhe para que era aquilo, respondeu que para dar sorte. Para dar sorte? Só me faltava esta! Mas já me esquecia dessa faceta da Sofia. Ela era ou tinha a mania que era esotérica, toda metida a espiritualista, frequentava e fazia cursos e workshops de tudo o que se possa imaginar, onde gastava uma porrada de massa, mas não faltava a nada dessas coisas. Astrologia, reickys, massagens, palestras, enfim, era um rol das mais variadas fantasias, que nunca mais acabava. Ah, vegetariana, que ela fazia questão de dizer a toda a gente, com um ar de quem era única, uma “ávis” rara. Dizia “eu sou vegetariana” com um certo ar de superioridade, como se realmente fosse única no planeta. Só não dizia que comia salmão, marisco e o que lhe apetecia, porque gostava. Assim como, também, as coisas naturais eram todas muito boas, mas fumava e disso não abdicava, o que não dava com nada. E sobre todos os cursos que fazia, nada do que aprendia era para pôr em prática. Mas tinha feito o curso. Aliás, mais um para a colecção ou para o curriculum da Sofia.

 

E lá estava o sol para dar sorte. Tudo bem, se ela acreditava naquilo, fazer o quê? Cada um acredita no que quer. Abriu a porta, entrei e logo tropecei num tapete que, por pouco, não me fez cair. Mas isso não interessava, o que interessava era o tapete que eu tinha maltratado e que era muito especial. Cuidado com o tapete(!), dizia ela. Perguntei porquê, porque tinha um desenho duma treta qualquer que era sagrado. Fiquei feita parva a olhar para ela, enquanto ria, meia tola, com ar feliz das suas coisas especiais. Olhei uma vez mais para o tapete tão especial, que para mim era um trapilho, nada mais, que nem o desenho se percebia e que atrapalhava grandemente a entrada em casa. OK, era a casa dela. Por mim, saía já dali. 


A seguir, entrámos na cozinha. Uma bela janela carregada de vasos e vasinhos de plantas aromáticas, todas a morrer, porque ela não cuidava delas. E, à parte isso, era uma cozinha normal, desarrumada e muito mal organizada, do meu ponto de vista. Mas era a cozinha dela.

 

Entrámos na sala e era tanta coisa a chamar a minha atenção que eu não sabia para onde olhar primeiro. Um festival de budas e deusas, espanta-espíritos, luas e sóis, velas e cacarecos que nunca mais acabava. Aquilo parecia uma loja esotérica. Incenso por todo o lado e um monte de coisas que não serviam para nada. Mas era a sala dela!

 

No meio da sala tinha um sofá com chaise longue, virado para a parede, como se na frente tivesse uma tv. Acontece que a tv não estava lá. Estava num canto, que mal se dava por ela. No centro da parede, bem em frente ao sofá, tinha uma tela enorme, um borrão em azul e branco. Perguntei-lhe o que era aquilo, respondeu que um quadro que lhe dava muita tranquilidade. Mas aquilo é horrível(!), disse-lhe eu. Olhou para lá e riu, aquele riso simpático, mas de tonta, que nem tem argumentação possível. “Oh, mas gosto dele”, respondeu com um ar lânguido, como se fosse uma deusa ou uma ninfa. “Dá-me paz e tranquilidade…”. “Pois... por isso é que não queres estar em casa, por conta dessa paz e dessa tranquilidade”, respondi-lhe. Continuou a rir e agarrou-se ao meu pescoço, beijando-me no rosto, como tinha o hábito de fazer, o que muito me irritava. É que, em casa, enfim, mas na rua, num centro comercial, num lugar público, aquilo parecia uma exibição de lésbicas e eu afastava-a logo, o que muito a chateava. Mas eu queria lá saber! O que eu não queria era parecer o que não era e perder alguma oportunidade... enfim.

 

Bom, dei uma olhadela em volta e percebi imediatamente o que podia mudar para alterar o panorama. As coisas não eram feias, eram giras, o problema é que era muita tralha. Um exagero! Mas com a Sofia era assim mesmo. Passei a mão na mesa e tinha uma camada de pó que parecia inacreditável. Depois olhei para uma estante e também estava carregada de pó, que devia pesar mais do que os livros que lá estavam. Perguntei-lhe há quanto tempo não limpava a casa e sempre rindo, desculpou-se, dizendo que não tinha tempo para isso. Eu nem queria acreditar no que ouvia. Chateei-a, dizendo-lhe que aquilo era inadmissível e que em nada correspondia à imagem que ela queria passar aos outros de “pura”, “intocável”, que era tudo falso. “Oh, não sejas assim”, respondeu, rindo. Olhei para o tecto e vejo uma enorme teia de aranha num canto, tão grande que me deu medo. Pedi-lhe uma vassoura e foi buscá-la. Quando percebeu que era para matar a aranha, empurrou-me e tirou-me a vassoura da mão para não matar a “pobre da aranha”. Coitada da aranha! Sofia, a vegetariana, não podia matar os animais, nem danificar a natureza, mas deixou o gato fechado em casa, naquele calor sufocante de um verão tórrido, que quase matou o pobre animal, que teve de ser reanimado porque não podia respirar e as plantas, as suas belas plantas nem água viam, estavam todas a morrer de sede. “Ah, não tenho estado em casa”… boa. Muito boa.

 

 

No corredor, a cena era a mesma. Pó, só pó e sujidade por todo o lado. Aí, chateei-me a sério e disse-lhe que ela não precisava de casa para viver. Para viver assim, podia ir para a rua, não precisava de casa nenhuma. Mas ela só ria e quanto mais eu ralhava mais ela ria. Mas o melhor estava para chegar. Tinha uma bela varandinha que ligava dois quartos e fui ver. Olhei para o chão e vi um carreiro de formigas como nunca tinha visto. Aquilo não era um carreiro, era um verdadeiro exército e tranquilamente, lá iam elas. Vi o percurso e percebi que era por conta de um pequeno pires, que estava num extremo da varanda. Então, ingenuamente, retirei o pires, a fim de libertar a varanda daquela praga. Lá vem a Sofia a correr “deixa estar, deixa estar…” não entendi logo, mas entendi depois, quando ela se apressou a trazer um frasco de mel, que verteu sobre o pires, onde acrescentou um pouco ao que já havia. Era para alimentar as formiguinhas e não morrerem de fome!...



sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Um dia com a Clara - 23


Era o mês de Agosto e a Clara já andava há algum tempo a dizer que queria ir passar uma semaninha com a mãe a Setúbal. Assim, pegaria na Sara e no Afonso, para também estarem com a avó, e comigo seríamos cinco. A mãe iria apreciar. Depois, estar com a Clara é sempre uma aventura, mas acima de tudo uma grande incógnita. Depende dos “ventos”…

O Verão decorria, os dias passavam e a Clara continuava a falar naquilo que seria uma semana, mas que sempre que falava ia encolhendo. Já não era uma semana mas cinco dias, que depois passaram para três e finalmente encolheu ao ponto de irmos num dia e voltarmos no outro. Uma semana compacta, digamos, porque os acontecimentos, esses seriam extensos, extensos, sem nunca mais acabar.

E o famigerado dia chegou, sendo que até esse foi avançando, avançando… já não podendo ser de manhã, nem depois do almoço e nem à tarde, por isso, à noitinha lá fomos nós finalmente, alegres e contentes buscar a mãe, que não parava de reclamar por causa da semana que tanto tinha encolhido.

Já a caminho de Setúbal, a Clara várias vezes fez notar que no dia seguinte logo de manhã, iríamos para Tróia, portanto, que ninguém se atrasasse. Era quase uma ordem. Contudo, sendo que a Sara não pôde ir connosco por causa de um festival de música qualquer e só no dia seguinte se juntaria a nós em Setúbal, eu já não estava muito bem a perceber como é que ela queria ir logo de manhã bem cedo, a ponto de ter que fazer um aviso prévio. Ainda por cima não sabia a que horas ela chegava. A coisa começava a ficar enrolada, bem ao jeito dela. Mas eu nem me dava ao trabalho de fazer perguntas. Só a mãe estava constantemente a perguntar “e a Sara, quando é que chega?” e a Sara quando é que chega. Mas não havia mesmo resposta para lhe dar, o que muito a enervava.

No outro dia logo de manhã, com efeito, comecei a ouvir a mesma cantilena de que tínhamos que nos despachar. Ainda eu estava na cama já ouvia a Clara com o mesmo disco. Mas a Sara ainda não estava e nem se sabia a que horas chegaria?! Se calhar nem praia ia haver. Mas isso para mim também não importava nada. O certo é que a mãe tinha-se levantado bem cedo para fazer face aos planos furados da Clara. E agora perguntava “então e a Sara quando é que chega”? E a resposta era sempre “não sei”. Posto isto, olhava para mim e entre dentes murmurava “mas esta rapariga é maluca ou quê?”

Por ali ficámos toda a manhã, até que a Clara informou que afinal a Sara só chegava à hora do almoço, pelo que logo a seguir iríamos para Tróia. Mais um aviso à tripulação. E para isso tratou de marcar almoço na churrascaria ao lado de casa, para termos mesa a horas e nos despacharmos para ir, mesmo sem saber ainda bem a que horas chegaria a Sara, porque vinha de boleia com uma amiga. Está bem, pensei comigo mesma. Por mim estava sempre tudo bem. O Afonso também tanto lhe fazia. Só a mãe estava numa inquietação cada vez maior. Ela só via o tempo a passar e nada a andar.

O almoço foi devidamente encomendado para não haver atrasos e ao meio-dia a pontualidade imprevisível da Clara insistiu para que tomássemos os nossos lugares na churrascaria e até fôssemos pedino o que já estava encomendado, para não perdermos tempo. Sendo que não poderíamos ir sem a Sara, como é que se justificava tanta pressa? Era daquelas coisas assaz estranhas. Parecia uma gozação com o povo. Mas como era a “semana” da Clara, tínhamos que nos ajustar. Sem comentários.

As sardinhas vieram para a mesa, a salada, o pão, as azeitonas e a Clara, que ainda não tinha tomado o assento dela, porque andava dentro e fora, fora e dentro, sem conseguirmos perceber qual era a tarefa, lá veio finalmente e quando pensávamos que se ia sentar, anunciou que enquanto esperávamos pela Sara, que estava quase a chegar(?), ela, Clara, ia dar um pulinho ao horto(?) e já, já, estaria de volta para o almoço que nós estávamos precisamente a começar(!)…

E a mãe e eu olhámos uma para a outra, não querendo acreditar no que acabávamos de ouvir. Eu, por mim, com as sardinhas à minha frente, queria lá saber do resto? Mas a mãe estava que não se continha. Incrédula no que acabava de ouvir, porque o horto não era propriamente ali ao lado. Ficava a uns bons quilómetros, não sendo precisamente a altura certa para isso, o que a deixou completamente passada e quase fora de si, tentando controlar-se conforme podia. Deve ter pensado o mesmo que eu, lá se vai a ida a Troia!... O Afonso sempre de telemóvel na mão, passava-lhe tudo ao lado. Era como se ali não estivesse. Agora até eu já tinha dificuldade em admitir se iríamos à praia ou não.

E lá partiu em direcção ao horto, enquanto nós resolvemos esquecer tudo para nos concentrarmos nas sardinhas que tínhamos à nossa frente a rir-se para nós. O resto era o resto. Uma coisa de cada vez. Comendo a saboreando, descontraindo com uma piada aqui, outra ali, já estávamos na sobremesa quando a Clara chegou. O horto estava fechado!? Oh!... A Clara sentou-se e logo de seguida chegou um carro com duas garotas lá dentro. A Sara acabava de chegar. As coisas estavam a compôr-se.

Eram precisamente cinco horas da tarde quando chegámos à outra margem. Já tínhamos feito a travessia no barco e caminhávamos agora pelo passadiço que nos levava à costa, o que não era muito fácil, dadas as dificuldades de locomoção da mãe. Mas devagar, devagarinho, para ela aguentar a caminhada, dizendo umas parvoíces para rir e descontrair, lá íamos nós. A Clara ordenou ao Afonso que abrisse o chapéu de sol e fosse ao lado da avó para que ela não apanhasse muito sol. O chapéu era vermelho e a mãe com as suas vestes de praia, enfiada numa longa túnica de cores vivas, mais parecia um andor numa procissão e nós atrás, em passos de tartaruga. O Afonso, discreto e descontraido como sempre, embora com o chapéu aberto, tapava tudo menos a avó e nós ríamos. Ríamos de tudo.

Chegados ao outro lado, finalmente abancámos e cada um se aninhou na areia ao seu jeito. A páginas tantas, decidi que me apetecia fazer uma caminhada e logo a Clara se levantou para me acompanhar. Vendo-nos levantar, a mãe quis saber se também podia ir. Respondemos que sim, mas fomos andando sem lhe prestarmos muita atenção e só já muito adiante é que demos pela ausência dela, deduzindo que teria desistido. Quando chegámos levámos uma enorme rebocada porque ela não conseguiu ir no nosso ritmo, e nós nem ao menos tínhamos esperado por ela. A Clara e eu estávamos cansadas e suadas e fomos para a água, pelo que todos nos seguiram. E assim se passaram umas horinhas bem passadas, entre o sol, a água e o descanso. A tarde já ia avançada, pelo que decidimos levantar o acampamento. Os barcos eram de hora a hora, sendo que de um lado saíam à hora e do outro à meia hora.

Pegámos na tralha e preparávamo-nos para começar a caminhada de regresso, quando a Clara disse “esperem… esperem um bocadinho”. Cansados, virámo-nos para ela para perceber o que seria. E largando a tralha na areia começou a despir-se novamente, dizendo que lhe apetecia um último banho. Um último banho, como se não tivesse já tido banhos suficientes?! Era tudo menos compreensível. E com toda a calma e descontracção, despiu novamente a roupa que tinha acabado de vistir, dirigindo-se para a água, onde entrou parecendo uma diva, calma e tranquilamente, com ar de quem saboreava o seu primeiríssimo banho, deixando-nos estupefactos e completamente sem reacção. Parecíamos estátuas, ali especados à espera dela. A mãe estava possessa da vida. As atitudes da Clara sempre a surpreendiam, como se não conhecesse a própria filha, o que me dava um imenso gozo.

Finalmente e uma vez mais iniciávamos a caminhada de volta para o barco. O sol já se tinha posto e a noite aproximava-se vagarosamente. Estávamos todos esfomeados, mas até chegar a casa ainda tínhamos bastante que nos aguentar. Entretanto havia a feira do artesanato e a Clara queria ir, apesar de mais ninguém estar interessado. Mas também havia um outlete ocasional no interior do edifício novo, a que a Sara manifestou vontade de ir. Era certo que a noite ia ser longa. A mãe só queria saber a que horas chegaria a casa porque dava sinais de fadiga. Então a Clara decidiu que iríamos ao outlet e depois jantar, dado o adiantado da hora. E mais uma vez a mãe boquiaberta e os olhos espantadíssimos, olhava para mim como que a pedir socorro. Fazer o quê?

Entrámos no edifício para ir às lojas, mas aí deparámo-nos com um senão. A entrada era paga e ninguém estava para esses ajustes. Mas a Sara e o Afonso queriam entrar. As pessoas chegavam, dirigiam-se à bilheteira e entravam. Enquanto isso, ficámos ali, pensando se valeria a pena ou não, pagar para entrar. Decidir e não decidir, decidi mesmo sentar-me num dos bancos que estavam cá fora. Estava morta de fome como todos os outros. A mãe, aproveitando a minha deixa, sentou-se ao pé mim, sussurrando as coisas do costume “com esta rapariga é sempre assim… é tudo uma confusão, não tem horas para nada”… o costume. E enquanto aguardávamos a decisão da Clara, chegou um grupo grande que tirou os bilhetes e preparando-se para entrar, a Clara com os dois, um de cada lado, como quem não quer nada, enfiou-se no meio do grupo e mesmo sem bilhetes, enfiaram-se todos lá para dentro.

Ups! Eu e a mãe enfiámos a nossa cara no chão, virámo-nos para o outro lado fingindo não ver, nem saber de nada e a vergonha consomíamo-nos. Era demais. E o pior é que agora tínhamos mesmo que esperar, esperar, até que os três se cansasssem de lá estar ou aguardar até ao fecho das vendas que era às vinte e uma horas. Era realmente preciso ter muita paciência e a mãe aproveitou para uma vez mais descascar das atitudes da filha, deitando cá para fora tudo o que lhe vinha à cabeça.

Olhando para o relógio, já lá ía meia hora. Tanta coisa para ver, perguntava a mãe. E apareceu outro grupo de se dirigiu à bilheteira para comprar os bilhetes. A mãe levantou-se dizendo que estava farta. Vagarosamente, aproximou-se da entrada fingindo que estava a espreitar, e quando o último grupo entrou, misturou-se no meio deles e fez exactamente o que a Clara tinha feito. Depois de ter falado o diabo da filha, fez precisamente o mesmo. Eu estava passada de todo. Aquilo era uma família de desnaturados. Não se podia confiar mesmo em ninguém. Os empregados da bilheita olhavam para nós vendo o número reduzir, reduzir, e pensando sabe-se lá o quê. Pareciam ciganos! Claro que deram pela entrada sem bilhete da Clara e dos filhos. Claro que deram pela entrada sem bilhete da mãe. Só restava eu. Eu olhava para o outro lado fazendo-me de desentendida e distante dali, para não pensarem que era da mesma laia. E na verdade não sabia mais se ria ou chorava.

Faltavam quinze minutos para fechar as portas quando o empregado da bilheteira, dirigindo-se a mim, teve a gentileza de me convidar a entrar, pelo facto de estar quase a fechar. Apanhada de surpresa e ainda envergonhada, como quem não quer nada e fazendo-me pouco interessada, respondi com uma certa desplicência que sim e agradeci. Finalmente, agora até eu estava lá dentro. Ao fim e ao cabo tínhamos entrado todos e sem pagar! Espantoso.

Havia roupa por todos os lados, pendurada, caída no chão, enfim, era mesmo um festival ou uma feira. Uns experimentavam, outros viam as marcas e então dou de caras com o meu pessoal “olá Lilly” disse a Clara. Já vamos embora. Pois, já não era sem tempo, pensei. E só mesmo porque está na hora de fechar. A Sara comprou um top e o Afonso uma camisola. A mãe já tinha esquecida o cansaço, lamentando não ter encontrado nada para ela. Enfim… sem comentários.

O que se seguiria agora? O Afonso viu um restaurante de Québab e fez questão de dizer que lhe apetecia jantar québab. Québab, que raio de coisa é essa, pergunta a avó. E todos começaram a rir. Québab, mãe, dizia a Clara, é bom, muito bom. Nunca tal ouvi, repondia. Vamos, dizia a Sara, estou cheia de fome, enquanto todos ríamos dos comentários da avó por causa do québab. Embora lá. Vamos todos ao québab. E os ânimos melhoraram. Entrámos, a Clara foi explicando à mãe o que era, por conta da cara feia que ela fazia e a Sara e o Afonso já se foram sentando.

Cada um com seu québab preferido, demos início ao jantar. Estávamos todos esfomeados e esfalfados. Não víamos mais nada à frente. A mãe comendo e comentando as mais diversas coisas, enfim, o costume. Alguns momentos de silêncio e de repente a Clara lembra-se de que ainda queria ir à feira do artesanato. Aí, todos os québabs tiveram uma ligeira pausa, enquanto digeríamos o que ela acabava de dizer. E todos em silêncio pensávamos o mesmo. Ir à feira do artesanato, ainda, àquela hora? Era assim tão importante? Até que a Sara quebrou aquele momento de impace, dizendo que não estava absolutamente nada interessada em ir à feira do artesanato. Logo de seguida o Afonso também barafustou. A avó aproveitou a deixa para se tentar impôr, dizendo que estávamos todos muito cansados e eu fiquei aliviadíssima por não precisar de me manifestar.

A ideia da Clara era absurda. O tempo para ela não era realmente igual ao das outras pessoas. Para começar, parecia que nunca se cansava e por aí fora. Faltavam pouquíssimos minutos para as dez e meia, hora de saída do próximo barco. E a Clara ainda queria andar cerca de uma hora na feira do artesanato para apanharmos o último barco que saía às vinte e três e trinta?! Perante esta expectativa ficámos todos com o que restava do québab entalado na boca, olhando uns para os outros, sem a menor vontade de ficar por ali mais uma hora. Não, mais uma hora não, nem mais feiras nem mais nada. A esta altura o povo só queria era chegar a casa e deitar-se. Perante este cenário pouco ou nada animador, de repente, todos se levantaram ao mesmo tempo e num rompante impressionante, cada um empurrando a sua cadeira para trás, com uma mão nos seus pertences e a outra no que restava do québab, desandámos dali a toda a velocidade, como se fôssemos uns ladrões, ou uns malfeitores, sem ter pago a conta, correndo o quanto podíamos, para conseguirmos apanhar o barco. A mãe ia quase de rastos. A Clara dizia, dá-lhe o braço daí que eu dou daqui e Afonso vai à frente para pedir ao homem para esperar um pouco porque vai aqui uma senhora que tem dificuldade em andar. Mas a mãe, pela primeira vez nem se queixava, dando às pernas o quanto podia. Pareciamos autenticamente uns doidos varridos de todo. Só vendo para crer. E no meio disto tudo ainda ríamos do caricato da situção. Fazer o quê?

Finalmente estávamos no barco. Um barco muito bom que nem se percebia que já tinha saído e que estávamos quase a chegar. Sentados, ninguém falava. Só a mãe de vez em quando perguntava “mas nunca mais saímos? Viemos a correr para quê?” Mas já ninguém respondia e já ninguém ouvia…

Um dia com a Clara e tudo isto num só dia. Uma semana como não seria?!


domingo, 11 de outubro de 2015

A Teca - 22


Os meus nervos estavam em franja! Em menos de meia hora o autoclismo já tinha tido pelo menos umas dez descargas. Que raio se passava ali que eu não estava a perceber? Mas havia tanta coisa com ela que eu não entendia mesmo!... Por exemplo, com metro e meio de altura, como tinha ela conseguido um emprego de hospedeira da Sata e ainda por cima com o grave problema da fobia das “alturas”(?)… enfim, só mesmo nos Açores.

 

À custa dessa cena das “alturas” passaram-se episódios com os quais até hoje me rio sozinha.

 

Uma vez chegou ao porto de Ponta Delgada um navio no qual vinham “macanudos”, isto é, radioamadores. E como os nossos homens eram radioamadores, lá fomos os quatro passar uma tarde no navio, com direito a jantar a bordo, o que foi bem divertido. 


À chegada, a maré estava baixa e a escada do cais ao navio estava praticamente na horizontal, com uma inclinação mínima. Não houve problema algum. O problema foi na volta. Passamos tantas horas lá dentro que, na saída, a maré estava cheia e o navio tinha subido. A escada estaria a cerca de quarenta e cinco graus. Para mais, era noite cerrada e a iluminação do cais muito pobre. Eles saíram à frente, depois eu e a seguir a Teca (Teresa). Isto, se ela tivesse conseguido sair. Já eles iam no final da escada quando ela chegou à porta do navio e se apercebeu da situação em que estava. Aí deu um grito enorme e começou a chamar o marido. Ao ouvi-la chamar ele parou subitamente e voltou-se para trás. Aliás, os dois viraram-se. E ela continuou a gritar “Oh José Manuel, vem me buscar”, na sua bela pronúncia açoriana da ilha Terceira. 

 

O José Manuel que, em contraste com ela, era alto e espadaúdo, mais do que habituado àquelas cenas, não deu muita corda. Disse-lhe que descesse, porque não havia problema. Mas ela insistia para ele a ir buscar e levar ao colo, porque ela não conseguia sair dali. O meu marido que era um gozão desgraçado e gostava de castigar a fraqueza alheia, respondeu-lhe que podia ficar lá a noite, caso não quisesse descer, e os dois desligaram literalmente, pondo-se na alheta. Tal e qual. Sobrou para mim, claro está. A verdade é que ela tremia que nem varas verdes e agarrava-se ao corrimão com todas as forças que tinha, o que tornava tudo mais difícil. Então foi a minha vez de gritar pelos dois, mas eles não quiseram saber. Pronto, aquela cena estava-me destinada. Missões impossíveis eram sempre comigo.

 

Comecei a fazê-la entender que eles se estavam borrifando e que ela tinha que me ajudar para a tirar dali. Mas ela não queria saber de nada, não queria sair. Olhava lá para baixo e dizia que morria e gritava, gritava e… um Deus nos acuda. Finalmente tive uma ideia. Peguei num lenço que tinha ao pescoço, fiz uma venda e coloquei nela, pedindo-lhe para fechar os olhos e se esquecer de onde estava. Curiosamente, ou porque percebeu que não tinha alternativa, lá se acalmou. Depois, disse-lhe que se segurasse a mim como quisesse, que eu iria conduzi-la. E lá vinha ela, agarrada a mim com unhas e dentes, tremendo o corpo todo, tremendo a voz, que apelava a todos os santinhos e mais alguns. Mas passo por passo, degrau por degrau, lá conseguimos chegar à base, com imensa dificuldade, porque ela levava todas as minhas forças. Quando lhe disse que podia tirar a venda e abrir os olhos, certificando-se de que estava já no cais, livre da altitude, olhou para cima, curvou-se e desatou a rir, a rir, completamente histérica. Ela ria descontroladamente e eu assoprava por todos os lados, da tensão de carregar com ela, que não tinha sido propriamente fácil. Vamos embora, dizia-lhe eu, insistindo, porque já tínhamos perdido de vista os homens e ela já não tinha a menor pressa. Apenas, à sua maneira, libertava-se também da carga emocional a que tinha sido submetida.

 

Outra vez… alguns anos depois, já nós tínhamos regressado ao Continente, veio a Lisboa a uma consulta na maternidade Alfredo da Costa e depois foi ter comigo à RTP para irmos para minha casa, onde ela ficava sempre que vinha. E foi à maternidade sozinha. Tinha que apanhar o elevador para ir ao primeiro andar, mas não conseguiu porque o elevador era muito aberto e via-se tudo e lá vinha o problema das alturas. Então decidiu ir a pé. Só que, a meio, deu-lhe a “travadinha” e lá veio novamente a questão. Ficou paralisada, sem saber o que fazer e começou aos gritos. Passou um homem de bata branca e ela não fez mais nada: agarrou-se ao homem com unhas e dentes. Com a voz entramelgada e gaguejando por todos os lados, pediu-lhe muitas desculpas e só dizia “tire-me daqui, tire-me daqui”… o homem de branco que, por acaso, era médico e por acaso compreendeu a situação, pediu-lhe para se acalmar que ia tirá-la dali e lá subiu as escadas agarrada a ele, devagar… o costume. Ela contava-me aquilo rindo que nem uma doida e eu vendo a cena toda. Com um caraças!

 

Mas depois, na RTP fez-me outra cena inesquecível. Até hoje, está-me devendo essa.

 

O edifício da cinco de Outubro, que agora é o Hotel Zurik, era naquela altura a sede da RTP. Com treze andares, o edifício tem vários elevadores. Do lado onde eu trabalhava, sétimo andar, tinha dois elevadores que, por uma questão de poupança de energia, paravam alternados, de dois em dois andares. A Teca foi ter comigo até ao sétimo, sem problemas, porque os elevadores eram estanques, não se via nada para fora. Chegou ao sétimo andar e foi ter à minha sala. Então, quis ir tomar um cafezinho. Eu não tomava café, mas como ela queria, claro, lá fui com ela. E agora começa a tourada. O sétimo andar não tinha máquina de café porque também as máquinas de café eram de dois em dois pisos. Que aconteceu então? Era preciso subir ou descer um andar. Os elevadores, neste caso, não serviam, pelo que, toda a gente ia a pé. E ela não se opôs. Abri a porta de acesso à escada, entrámos no patamar e quando íamos começar a subir a escada ela joga-se ao corrimão e começa a gritar que vai cair. De repente, nem me lembrava daquele problema, mas logo me veio à ideia a cena das alturas e disse-lhe que só caía lá baixo se quisesse, porque nunca ninguém tinha caído. Além disso, as escadas tinham largura suficiente para se encostar à parede e comigo ao lado dela, do lado do corrimão, nem dava para ver a altura. Então, lá se acalmou, encostando-se à parede, conforme lhe sugeri. E começámos, aparentemente, subindo as escadas com calma e tranquilidade, mas quando eu achava que não havia problema nenhum, ela desata outra vez aos gritos, agarrada a mim, “ai que eu caio, ai que eu morro”… e dali não saíamos… e o pior é que eu não queria de maneira nenhuma que, naquele preciso momento, aparecesse quem quer que fosse e nos visse naquela cena. Aquele era o piso dos engenheiros e eu não queria aquela cena. E enquanto olhava para a porta de cima e para a de baixo, aflita, pedindo a Deus que não aparecesse ninguém, perguntei-lhe o que é que se passava agora, mas antes que ela me respondesse, rapidamente percebi. A parede tinha acabado e começava o envidraçado que acompanhava a escada desde a raiz ao topo do edifício. Ou seja, o patamar entre os dois lances das escadas era panorâmico. Inevitavelmente, ela olhava lá para baixo e ai Jesus que morro, que caio, etc. 

 

Imediatamente a puxei dali, o que foi fácil - porque não tinha onde se agarrar -, encaminhando-a para o segundo lance. E mais uma vez ela foi atraída para o corrimão, onde se agarrava com quanta força tinha, naquela histeria toda, olhando para baixo como se o mundo fosse acabar ali mesmo. Puxei-a para dentro e atirei-a contra a parede, mas a minha preocupação continuava: o medo de que alguém aparecesse. Aliás, só por sorte ainda não tinha aparecido ninguém e eu já não sabia mais o que fazer com ela. Tentei que se acalmasse, apelando ao bom senso que, claro, nestas alturas não funciona. Não tem como funcionar. O irracional está à solta, sem comando. Tremia ela e tremia eu. E o pânico era tanto, que se estendeu pelas escadas. Parecia uma cobra, agarrada aos degraus. E quanto mais eu lhe dizia para não olhar para baixo, mais ela se sentia atraída para o abismo. Comecei então a encorajá-la a rastejar, porque eram só mais uns degraus. Olhando para cima, apercebeu-se de que eu estava certa e rastejando, chegou ao patamar de cima. Recompondo-se, pôs-se de pé. Abri a porta que dava para o interior do edifício e a escada já tinha ficado para trás. Fomos à máquina do café e já com o café na mão, começámos as duas a rir, a rir que nem duas tontas. Para mim, o mais importante é que não tinha aparecido ninguém. A minha "reputação" estava salva.

 

Entretanto, já tínhamos demorado tanto com aquela cena que eu lhe disse que viesse bebendo o café pelo caminho. E ela já nem se lembrava que a tortura se ia repetir, até eu abrir novamente a porta da área de serviço. Antes que ela começasse novamente com os pânicos, falei-lhe com toda a seriedade para ter calma e não olhar para lá. E fazendo um esforço, lá foi, empurrada por mim, começando a descer a escada. Mas não durou muito o esforço. Lá se deitou novamente no chão, só que agora havia mais o café, que tremia por todos os lados. 

 

Sentei-me ao pé dela, uma vez mais, aterrada, com medo que alguém viesse e pedi-lhe que bebesse mais um gole de café, talvez ajudasse, pensei eu, que não bebo café. Mas nem ela conseguia levar à boca o copo de plástico, nem ouvia nada do que eu lhe dizia, só ai ai ai… ai ai ai… tirem-me daqui… que cena, que canseira! Eu não sabia para que lado me virar. Era o café, era ela, era eu, era tudo fora de controlo. Lá veio rastejando enquanto eu tentava tapar-lhe os olhos, evitando piorar o que já estava o pior possível. E com um esforço terrível lá conseguimos chegar. Pronto, porta fechada, escada para trás, ela ria que nem uma perdida. E eu ria também, pois.

 

E agora a cena do autoclismo que não parava. Eu estava provisoriamente numa casa de uma das minhas irmãs, porque a minha casa estava em obras. O meu marido estava nos Açores e eu estava com o meu filho na casa do Alto de S. João, uma casa que ela alugava a estudantes, num prédio muito antigo, onde tudo era antiquado. A casa de banho era espaçosa, mas tinha logo à entrada, do lado direito, o lavatório e a seguir a sanita, com um autoclismo cuja descarga era accionada por um cordão de metal que terminava numa maçaneta de madeira e que caía mesmo ao lado do lavatório.

 

A Teca estava a arranjar-se porque ia sair à noite. E pouco a pouco ia à casa de banho. Até aí tudo bem. Porque é que de cada vez que ia à casa de banho puxava o autoclismo, isso é que eu não conseguia entender! Primeiro, pensei que não estivesse bem dos intestinos, mas depois percebi que não podia ser, porque assim que entrava puxava logo a descarga. E quando eu já estava que não aguentava mais aquilo e me dispunha a averiguar, eis que a oiço falando sozinha “ah… corisco mal amanhado!” (uma expressão muito característica dela). Percebi, então, que não passava de um simples engano. Ela simplesmente confundia a maçaneta do autoclismo, que ficava pendurada ao lado do lavatório, com a luz do tecto que era logo à entrada, um interruptor normalíssimo. Aí, sozinha comigo mesma, não resisti à tentação e dei uma enorme gargalhada, porque eu própria já tinha cometido o mesmo erro, só que uma só vez, enquanto que ela repetia-o constantemente. 

 

Paciência, a Clara que se preparasse com a conta da água.

 

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

A vida e a morte - 21


Com a morte da minha mãe aprendi a viver. Com a morte do meu pai aprendi a morrer.

 

Com a morte da minha mãe aprendi a viver porque assim fui obrigada. Ou morria também ou aprendia a querer viver. A escolha era minha. E foi preciso “correr” muito e muito “trabalhar” para de novo renascer. A morte foi lenta, dura, dolorosa, penosa e angustiante, tanto para ela, como para quem ao seu redor estava. A revolta completa. A imoralidade sem dó nem piedade. Um estrago completo nas nossas vidas.

 

As células cancerígenas são imortais. Elas resistem, persistem e ficam vencendo e matando, ficando, ficando, até não terem mais com que se debater, até não terem mais o que matar. Vitoriosas na destruição, propagam-se na escuridão, queimando o corpo, definhando o cérebro, inviabilizando o direito à vida e à passagem da luz, que se vai apagando lenta, lentamente, sem alternativa possível. Nada sobrevive nessa chacina, a não ser o medo. O medo de ter, o medo de ser. Por isso, nessa morte trágica, tive que aprender a viver.

 

Com o meu pai, a morte veio suavemente, sem dor, durante o sono que o transportou para as margens tranquilas da eternidade. Nos últimos anos da sua existência, era eu que cuidava de tudo o que dizia respeito à sua saúde. Era eu que lhe marcava as consultas e supervisionava a rotina médica. Era impossível contar com a minha madrasta para esse efeito e as minhas irmãs também não podiam encarregar-se dessa tarefa.

 

A minha maior preocupação era fazê-lo perceber que não estava sozinho. Portanto, sempre que se fazia necessário, eu corria para onde ele estivesse, largando tudo: trabalho, casa, restante família e tudo o que fosse preciso, para ir ao seu encontro. Eu não queria que ele sofresse, para além do sofrimento físico que ninguém podia evitar.

 

Quando a minha mãe morreu, eu era uma criança. Com dez anos de idade, que sabia eu da vida? Nem da vida nem da morte. Portanto, o que poderia eu fazer por ela? Com o meu pai a história era outra. Ele tinha vivido uma vida longa, apesar de ser cardíaco. E tinha a capacidade de aceitar a morte, não sem um certo receio e muita saudade. Mas era nesse ponto que eu estava junto com ele. Eram esses receios, essas angústias, que eu tentava desvanecer, para lhe poupar um sofrimento maior, porque era a única coisa que podia fazer. E conversávamos longas horas, sobre os mistérios da vida e da morte e porque ele tinha necessidade de repassar os momentos bons que lhe tinham preenchido a vida no seu melhor. Eu limitava-me a ficar sentada a ouvi-lo, muitas vezes vendo-o com os olhos humedecidos, lacrimejados pela emoção do que se permitia reviver. Mas eu percebia que ele era feliz enquanto fazia aquele trabalho de recordação. A sua alma tinha essa necessidade. Ele precisava lembrar de viva voz, vivenciar, partilhar com a sua filha mais velha, os momentos felizes que a vida lhe tinha proporcionado. E essa era a minha missão: ouvi-lo, dar-lhe toda a atenção, dispor do tempo que me era possível, para me focar apenas nele. Depois, tentar responder às suas dúvidas, aos porquês que nem sempre conseguia decifrar sozinho, não lhe tirando nunca a liberdade de discernir por si mesmo. Ele precisava da minha humilde ajuda para esse efeito, caso contrário, o seu fim teria sido um vazio completamente sem sentido.

 

Eu sabia o quanto ele precisava da minha presença, das minhas palavras, da minha compreensão, da minha paciência, etc, etc, etc… e tudo isso para mim não foi nada difícil, pelo contrário, foi um enorme aprendizado, uma das mais belas lições da minha vida. A tranquilidade que lhe passava através das palavras que ia buscar não sei bem onde, mas que vinham, milagrosamente, como uma chuva abençoada, amenizavam a sua e minha dor. Tudo se tornava mais fácil, mais leve, quase aceitável. A morte como uma passagem natural para outra dimensão, ainda que desconhecida e que é a única certeza que temos, mas que todos nos recusamos a aceitar. E assim foi. Na sua infinita misericórdia, Deus ouvira as minhas preces e concedera-lhe a enorme bênção de partir em silêncio, na maior paz.

 

Agora, eu podia também estar em paz, porque não havia mais sofrimento. Por isso, durante as cerimónias religiosas que se seguiram, não chorei ou se chorei, foram lágrimas de felicidade, de agradecimento, porque estava verdadeiramente agradecida e isso era uma coisa que ninguém podia compreender. Mas a minha alma sentia-se livre e leve, porque ele tinha partido sem sofrimento. Foi um dos maiores presentes que a vida alguma vez me deu. 

 

As minhas irmãs, coitadas, desfaziam-se em lágrimas. Eu, sem culpa, não tinha motivos para chorar. Tinha, sim, motivos para agradecer infinitamente aos céus, aquela morte santa, que tinha poupado um maior sofrimento a uma criatura que eu tanto amava. E por isso, só por isso, eu estava feliz. Eu tinha razões para isso. Sabia que não podia pedir a ninguém que compreendesse essa minha atitude, que podia parecer completamente inadequada e despropositada, mas eu estava feliz, sim. Eu tinha tido um presente absolutamente inestimável. Eu tinha estado ao seu lado durante muitos meses e tinha sido testemunha, a única e real testemunha dos segredos da sua alma. Eu tinha estado a seu lado em todas as ocasiões necessárias. Eu tinha percorrido a seu lado, o caminho da angústia, da aproximação do fantasma da morte. De mãos dadas, tínhamos ultrapassado os piores momentos, com um sorriso nos nossos corações e uma serenidade sem igual. Eu tinha sido a companheira de todas as suas aflições. E a morte viera docemente, como uma carícia, como um afago, como um derradeiro suspiro de alívio. Que mais poderia eu querer? 

 

E vieram os militares, a guarda de honra, os morteiros e todos choravam e se condoíam com a partida daquele que tinha sido um amigo e tanto, um irmão, um camarada, mas acima de tudo um grande ser humano, porque simples e justo, igual podia haver; melhor, jamais. Meu pai querido, pode não ter sido o melhor pai do mundo. Mas foi um ser humano verdadeiramente excepcional.

 

E eu sabia que todos estavam à espera que eu me desfizesse em lágrimas, em histeria, num desconsolo inevitável, mas não foi isso que aconteceu. Eu os confundi a todos. Eu sei. Mas não tinha porque mentir. Eu tinha feito todo um trabalho que me estava destinado e tinha-o feito o melhor possível, assim também, como ninguém o tinha que saber. Sabiam apenas uma décima parte e modéstia à parte, muitas vezes, quando me deitava para dormir, cansada, exausta, ficava admiravelmente surpreendida comigo mesma, como se eu me tivesse tornado num anjo que Deus enviara para conduzir aquela alma. 


Eu sabia que aquela missão era minha e de mais ninguém. Eu tinha sido a substituta da minha falecida mãe. Eu tinha sido a filha amada, a amiga, a companheira, tudo o que humanamente era possível ser. Tirei-lhe pesos de cima, que carregava havia muito, muito tempo, como o facto de achar que, por causa da vida de militar e outras razões, como o ter-se casado novamente, anos depois de enviuvar, não tinha estado presente nas nossas vidas como desejaria ter estado. Desdramatizei todo o seu sentimento de culpa e não eram poucas, fazendo-o perceber que estávamos todos trilhando o caminho que nos era devido, só isso e por tudo isso, tínhamos chegado onde chegámos. Estava tudo no sítio certo. Ele ouvia-me espantado com tanta benevolência da minha parte, com tanta compreensão e sem julgamentos e eu sentia o alívio que lhe proporcionava. Eu estava simplesmente a ser sincera, franca, honesta comigo e sobretudo com ele, tal como ele o merecia, mais do que qualquer outra pessoa.

 

E tudo isto, porque eu não queria que se repetisse o drama da morte da minha mãe. Eu queria ser poupada de mais um martírio, porque se assim não fosse, a morte dele teria sido uma enorme tortura. Havia que compensar esse desgaste psicológico e emocional de há cinquenta anos atrás, que o tempo não conseguira apagar de maneira nenhuma e que causara um dano irreversível nas nossas vidas. Portanto, eu devia isso a mim e a ele.

 

E assim, aprendi que a morte não tem que ser um drama. Não tem que ser um castigo, uma punição. Uma coisa feia. Não. Não tem que ser odiada. E mais uma vez, o amor está na base de tudo, unindo as pontas do princípio ao fim e do fim ao princípio, para que nada se perca.

 

E enquanto as cerimónias decorriam, as minhas irmãs mergulhavam num sofrimento incontrolável. Foi nessa altura que me dei conta da pena que senti delas, porque era impossível elas partilharem o bem estar que eu sentia. Estávamos em estados de espírito totalmente opostos e não havia nada a fazer. Elas não tinham estado lá, enfrentando a morte, desmistificando o medo, ultrapassando a escuridão. Por isso elas não podiam colher os frutos do crescimento espiritual desse aprendizado, enquanto eu sentia que o meu espírito estava com ele num plano muito maior, onde a dor e o medo já não têm forma nem definição, porque foram transmutados pelo fogo sagrado, que nos conduz ao amor eterno e incondicional. 


E é a isso que se resume a vida: o amor ou a falta dele.

 

 

E o amor, que pode vir por interesses os mais variados: dinheiro, ambição, desejo, vaidade, luxúria, necessidade, mentira, brincadeira, enfim... também pode vir livre de todas essas facetas ou seja, pode vir limpo, puro, apenas com a cara do amor e nada mais, porque ele é assim e basta-se. O amor pode ser genuíno, verdadeiro, autêntico e não tem que vir mascarado nem ser passageiro, também pode ser para sempre. 


A terra precisa dele, o homem precisa muito mais. 

 

 

sábado, 8 de agosto de 2015

Rosas brancas - 20


Rosas brancas, frágeis… uma aragem mais forte e desfolham-se com toda a facilidade. Frágeis na cor, frágeis na estrutura, depressa começam a perder as pétalas e uma por uma, segue o seu próprio caminho.

De novo? Um, dois, três, quatro… cinco… no regresso, seria a sexta vez que passava por ali, completando três dias de idas ao clube de Vela e lá estava ele. Que drama!... Como era possível? Há pessoas que nos surpreendem pela positiva, outras pela negativa: era o caso. Até tive dificuldade em reconhecê-lo. “Parece”… pensei eu. Não parece, é. Sem dúvida nenhuma. Que coisa diabólica!

Parei um pouco, por entre a roseira branca, observando a figura. Parecia um tonto, coitado. Era uma pessoa de estatura baixa, mas normal. Agora, parecia que estava por metade da altura. Umas calças larguíssimas, que não pareciam dele e um casaco com uns ombros muito largos que lhe chegava até aos joelhos, quando não devia ultrapassar a zona da coxa. Inacreditável!

O cabelo grisalho, quase todo branco e bastante grande, mas acima de tudo, com um ar descuidado. Uma mala a tiracolo, enorme e muito cheia, que carregava com imensa dificuldade e vários sacos de plástico em que, constantemente, mexia e remexia. Assim se arrastava. Dava dois passos, parava. Trocava de mão os sacos e voltava a andar mais dois passinhos para voltar a parar. Olhava para todos os lados e trocava novamente os sacos, olhando para dentro deles, como se tivesse esquecido alguma coisa. Dir-se-ia que tinha acabado de ter sido expulso de casa e amedrontado, não sabia o que fazer nem para onde ir. Que tristeza!

Não me apetecia ver mais. Talvez devesse falar-lhe, mas não tinha a coragem de o fazer. Devia ir ter com ele e trocar algumas palavras, tentar entender o que se estava a passar… em vez disso, mais uma vez, fingi que nada via, continuando o meu caminho. Era dramático.

A aragem dissipava o calor, amenizando a temperatura, ao mesmo tempo que dispersava as pétalas das rosas, tão suaves, tão macias, embora feínhas, excepto uma ou outra, cuja beleza também pouco duraria. Cheirei-as e fiquei deliciada. Que perfume, que aroma levemente adocicado, que elixir delicioso! Inspirei, expirei e voltei a inspirar profundamente, mas com toda a lentidão, para tirar o máximo partido daquele prazer delicioso e esquecer aquele drama.

Um pequeno triângulo no meio da rua, que podia ser uma rotunda, mas tinha a forma de triângulo. Um botequim lá plantado e mesas com bancos de madeira. Em volta, uma cercadura de arbustos verdes quebrada aqui, quebrada ali, com algumas flores pelo meio. Uma música suave, não muito alta… bastante agradável. Alguns velhotes sentados, conversando uns com os outros ou somente vendo quem passava. Carros estacionados por ali e em volta os prédios antigos e velhos do Poço do Bispo.

E eu ali parada, agora no segundo pé de roseira branca, um pouco mais adiante, presa naquele drama que tanto me entristecia. O estranho… bem, o estranho era tudo… mas o mais estranho é que, de todas as vezes que ali tinha passado, lá estava ele, naquele sítio! Era uma coincidência muito desagradável, porque não me parecia normal. Ou ia para algum lado ou vinha de algum sítio, mas encontrá-lo ali, sempre que eu por lá passava… era caótico, a menos que estivesse lá sempre e não fosse a lado nenhum. Seria possível? Parecia um pedinte! E tinha um ar de desgraçadinho!... Como é que pode? … E segui para o clube, com todas estas coisas na cabeça.

Tinha sido meu colega durante trinta e muitos anos, quase quarenta. Trabalhava na Contabilidade e era um bom profissional. Tinha-se reformado bastante mais cedo do que eu, pois era um pouco mais velho. Uma pessoa normal, com uma vida normal, comum. Mas aquele não era o mesmo, era uma sombra dele. Uma boa pessoa, incapaz de fazer mal a uma mosca. Humilde, bem formado, com um ar servil, sim… mas agora? Quem era aquela estranha criatura? E sempre naquele sítio! Não era uma simples coincidência. Ele estava ali sempre. Ainda não tinha falhado uma só vez e isso é que me deixava intrigada, porque encontrá-lo uma vez… duas vezes… tudo bem, acontece. Mas sempre e do mesmo jeito, com a mesma sacola e os sacos de plástico, igualzinho?!... Era assaz incomodativo.


A aula terminara e ficámos conversando, numa troca de impressões uns com os outros. O clube era um edifício muito antigo, espaçoso, com uma sumptuosa escadaria que, em tempos idos, devia ter sido um luxo. Agora, estava tudo muito velho. E enquanto descia as escadas com o corrimão de madeira e rebordo dourado, atapetadas com uma larga passadeira de alcatifa vermelha, pensava comigo mesma que agora ia ter a coragem de ir ao seu encontro e tentar perceber alguma coisa. Era o mínimo que podia fazer. O exercício físico tinha-me feito bem e o espírito estava mais leve e disposto a encarar aquela cena.

Saí a porta das instalações do clube e atravessei a rua para o jardim, em direcção ao carro. Parei no jardim, junto ao primeiro pé de rosas, olhando em volta. Havia a música, os velhotes sentados, o autocarro na paragem, os táxis estacionados à espera de clientes, os carros para lá e para cá, as oficinas abertas e os mecânicos a trabalhar. A vida acontecia. Olhei para o relógio e era meio-dia, mas ele não estava em parte nenhuma e era a primeira vez que tal acontecia.

Cheirei as rosas: uma, duas, três vezes. Cheirei uma e outra e outra, enquanto prendia uma pétala entre os dedos. Como era bom aquele perfume, meu Deus! Fiquei a olhar as roseiras, meio abandonadas, meio esquecidas. Aquelas rosas brancas, frágeis e deliciosamente cheirosas, que perfumavam o ar, exalavam um aroma inebriante, que chegava a embriagar. Talvez por isso, por serem tão cheirosas, os velhotes se acomodassem por ali… não, seguramente, não era. Era por causa do botequim. Ninguém via as rosas, ninguém cuidava delas, nem sequer olhavam para elas. Era como se nem existissem.

E ele não estava. Pela primeira vez não estava ali. A minha missão não fora cumprida, mas a minha tarefa estava simplificada. Ali, onde a vida acontecia da forma como tinha que acontecer, segui o meu caminho em direcção ao carro. Uns estavam, outros iam. Uns vivendo tranquilamente, na paz do seu canto; outros, num mundo submerso, de escuridão e sombras, passando ao lado de tudo, num vazio permanente. O drama da vida.


Soltei a pétala que estava presa nos meus dedos e deixei-a ir também ela com seu lema. Ficaria horas sem fim, mergulhada no perfume que o vento suavemente dispersava e ao mesmo tempo dissipava pelo ar… seguindo o seu percurso intemporal e eterno, sem pedir licença para passar… 

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A falsa Ordem de Serviço - 19


Rosas brancas, frágeis… uma aragem mais forte e desfolham-se com toda a facilidade. Frágeis na cor, frágeis na estrutura, depressa começam a perder as pétalas e uma por uma segue o seu próprio caminho.

 

De novo? Um, dois, três, quatro… cinco… no regresso, seria a sexta vez que passava por ali, completando três dias de idas ao clube de Vela e lá estava ele. Que drama!... Como era possível? Há pessoas que nos surpreendem pela positiva, outras pela negativa. Era o caso. Até tive dificuldade em reconhecê-lo. “Parece”… pensei eu. Não parece, é. Sem dúvida nenhuma. Que coisa diabólica!

 

Parei um pouco, por entre a roseira branca, observando a figura. Parecia um tonto, coitado. Era uma pessoa de estatura baixa, mas normal. Agora, parecia que estava por metade da altura. Umas calças larguíssimas, que não pareciam dele e um casaco com uns ombros muito largos que lhe chegava até aos joelhos, quando não devia ultrapassar a zona da coxa. Inacreditável!

 

O cabelo grisalho, quase todo branco e bastante grande, mas acima de tudo, com um ar descuidado. Uma mala a tiracolo, enorme e muito cheia, que carregava com imensa dificuldade e vários sacos de plástico em que, constantemente, mexia e remexia. Assim se arrastava. Dava dois passos, parava. Trocava de mão os sacos e voltava a andar mais dois passinhos para voltar a parar. Olhava para todos os lados e trocava novamente os sacos, olhando para dentro deles, como se tivesse esquecido alguma coisa. Dir-se-ia que tinha acabado de ter sido expulso de casa e amedrontado, não sabia o que fazer nem para onde ir. Que tristeza!

 

Não me apetecia ver mais. Talvez devesse falar-lhe, mas não tinha a coragem de o fazer. Devia ir ter com ele e trocar algumas palavras, tentar entender o que se estava a passar… em vez disso, mais uma vez, fingi que nada via, continuando o meu caminho. Era dramático.

 

A aragem dissipava o calor, amenizando a temperatura, ao mesmo tempo que dispersava as pétalas das rosas, tão suaves, tão macias, embora feínhas, excepto uma ou outra, cuja beleza também pouco duraria. Cheirei-as e fiquei deliciada. Que perfume, que aroma levemente adocicado, que elixir delicioso! Inspirei, expirei e voltei a inspirar profundamente, mas com toda a lentidão, para tirar o máximo partido daquele prazer delicioso e esquecer aquele drama.

 

Um pequeno triângulo no meio da rua, que podia ser uma rotunda, mas tinha a forma de triângulo. Um botequim lá plantado e mesas com bancos de madeira. Em volta, uma cercadura de arbustos verdes quebrada aqui, quebrada ali, com algumas flores pelo meio. Uma música suave, não muito alta… bastante agradável. Alguns velhotes sentados, conversando uns com os outros ou somente vendo quem passava. Carros estacionados por ali e em volta os prédios antigos e velhos do Poço do Bispo.

 

E eu ali parada, agora no segundo pé de roseira branca, um pouco mais adiante, presa naquele drama que tanto me entristecia. O estranho… bem, o estranho era tudo… mas o mais estranho é que, de todas as vezes que ali tinha passado, lá estava ele, naquele sítio! Era uma coincidência muito desagradável, porque não me parecia normal. Ou ia para algum lado ou vinha de algum sítio, mas encontrá-lo ali, sempre que eu por lá passava… era caótico, a menos que estivesse lá sempre e não fosse a lado nenhum. Seria possível? Parecia um pedinte! E tinha um ar de desgraçadinho... Como é que pode? … E segui para o clube, com todas estas coisas na cabeça.

 

Tinha sido meu colega durante trinta e muitos anos, quase quarenta. Trabalhava na Contabilidade e era um bom profissional. Tinha-se reformado bastante mais cedo do que eu, pois era um pouco mais velho. Uma pessoa normal, com uma vida normal, comum. Mas aquele não era o mesmo, era uma sombra dele. Uma boa pessoa, incapaz de fazer mal a uma mosca. Humilde, bem formado, com um ar servil, sim… mas agora? Quem era aquela estranha criatura? E sempre naquele sítio! Não era uma simples coincidência. Ele estava ali sempre. Ainda não tinha falhado uma só vez e isso é que me deixava intrigada, porque encontrá-lo uma vez… duas vezes… tudo bem, acontece. Mas sempre e do mesmo jeito, com a mesma sacola e os sacos de plástico, igualzinho?!... Era assaz incomodativo.

 

 

A aula terminara e ficámos conversando, numa troca de impressões uns com os outros. O clube era um edifício muito antigo, espaçoso, com uma sumptuosa escadaria que, em tempos idos, devia ter sido um luxo. Agora, estava tudo muito velho. E enquanto descia as escadas com o corrimão de madeira e rebordo dourado, atapetadas com uma larga passadeira de alcatifa vermelha, pensava comigo mesma que agora ia ter a coragem de ir ao seu encontro e tentar perceber alguma coisa. Era o mínimo que podia fazer. O exercício físico tinha-me feito bem e o espírito estava mais leve e disposto a encarar aquela realidade, fosse o que fosse.

 

Saí a porta das instalações do clube e atravessei a rua para o jardim, em direcção ao carro. Parei no jardim junto ao primeiro pé de rosas, olhando em volta. Havia a música, os velhotes sentados, o autocarro na paragem, os táxis estacionados à espera de clientes, os carros para lá e para cá, as oficinas abertas e os mecânicos a trabalhar. A vida acontecia. Olhei para o relógio e era meio-dia, mas ele não estava em parte nenhuma e era a primeira vez que tal acontecia.

 

Cheirei as rosas: uma, duas, três vezes. Cheirei uma e outra e outra, enquanto prendia uma pétala entre os dedos. Como era bom aquele perfume, meu Deus! Fiquei a olhar as roseiras, meio abandonadas, meio esquecidas. Aquelas rosas brancas, frágeis e deliciosamente cheirosas, que perfumavam o ar, exalavam um aroma inebriante, que chegava a embriagar. Talvez por isso, por serem tão cheirosas, os velhotes se acomodassem por ali… não, seguramente, não era. Era por causa do botequim. Ninguém via as rosas, ninguém cuidava delas, nem sequer olhavam para elas. Era como se nem existissem.

 

E ele não estava. Pela primeira vez não estava ali. A minha missão não fora cumprida, mas a minha tarefa estava simplificada. Ali, onde a vida acontecia da forma como tinha que acontecer, segui o meu caminho em direcção ao carro. Uns estavam, outros iam. Uns vivendo tranquilamente, na paz do seu canto; outros, num mundo submerso, de escuridão e sombras, passando ao lado de tudo, num vazio permanente. O drama da vida.

 

Soltei a pétala que estava presa nos meus dedos e deixei-a ir, também ela com seu lema. Ficaria horas sem fim, mergulhada no perfume que o vento suavemente dispersava e ao mesmo tempo dissipava pelo ar… seguindo o seu percurso intemporal e eterno, sem pedir licença para passar… 



quinta-feira, 30 de julho de 2015

O peru de Natal - 18


Era Natal. Além da família, naquele ano havia visitas e a casa estava repleta. Para simplificar a ceia de Natal e termos tempo para acompanhar os amigos recém-chegados, que tinham vindo do Brasil para passar a época Natalícia connosco e mais uma vez terem o gosto e o prazer de passear por Lisboa, incluindo centros comerciais, encomendou-se um peru recheado no El Corte Inglês. 

Tudo correu muito bem, até que chegou a véspera de Natal, com um cem número de coisas a fazer. Andava tudo eufórico e a mãe queria mostrar o seu melhor, tanto no que dizia respeito à pessoa dela, nos seus tremendos oitenta anos cheios de presença, vaidade, disposição, como no que dizia respeito à casa, usando as suas melhores toalhas, louças, enfim, essas coisas da praxe. 

Já tinha dado todas as suas ordens para o que cada um precisava de fazer e chegava a hora de ir ao Corte Inglês buscar o peru. Pediu ao marido, que se desculpou, com qualquer coisa que tinha para fazer e muito sorrateiramente, dispensou-se a ele mesmo dessa tarefa. Pediu a um dos filhos que vive com os pais, mas também não obteve colaboração. O trabalho… enfim. A Clara, nem contactável estava, nem fazia muito sentido. Os outros ainda menos e claro está, sobrou para mim. 

Tudo bem, porque não? É preciso, vamos a isso. E a mãe lá se foi arranjar com toda a pompa e circunstância. Do chapéu ao perfume, das luvas ao nariz empinado, lá fomos nós ao Corte Inglês. Pelo caminho, embora muito curto, dizia que seria bom estacionar o carro lá fora, porque aquilo era coisa rápida. E não se calou um segundo, conforme era costume. Na verdade, quando passei na frente da porta principal em direcção ao parque, havia um lugar vago, que ela logo sugeriu que eu o aproveitasse. Aquilo era rápido, insistia ela. Então, antes mesmo de estacionar, pediu-me para a deixar sair. Eu nem sabia se podia estacionar ali e o facto de estarem lá os outros não me tranquilizava nem um pouco. Mas como era Natal, podia ser que a coisa fosse pacífica. Então, decidiu que podia ir sozinha e que seria melhor eu esperar ali. Se precisasse de alguma coisa chamaria por telemóvel. Tudo bem. 

Esperei, esperei e fartei-me de esperar. Achei que não devia ser tão rápido como ela dizia, claro, mas o facto é que já estava a demorar demasiado. Chamei duas vezes pelo telemóvel, mas não respondia às chamadas, que acabavam caindo na caixa postal. Que fazer? Bom, teria que esperar para não nos desencontrarmos, mas já começava a ficar inquieta. Não estaria pronto o peru? Mas nesse caso podia dizer alguma coisa!? 

Depois de muito tempo e muito farta de estar ali sem saber o que fazer, voltei a ligar. Desta vez a mãe atendeu, mas eu não ouvia a voz dela. Em vez disso, ouvia tudo o que se passava à volta dela. Ouvia um barulho de fundo de muitas vozes ao mesmo tempo e ruídos que não conseguia identificar. Finalmente, ouvi a voz dela, mas não era a falar comigo, era a falar sozinha ou para alguém com quem devia estar chateada. Dizia ela “não consigo entrar… então, quando é que eu entro?”… 

Bom, continuava sem falar com ela, mas dava para perceber que ali havia grande confusão, o que era natural, por ser véspera de Natal. Entretanto, a chamada caiu e aí fiquei novamente à espera. Por aquela porta era um tal sair e entrar, mas ela não aparecia. Passado um pouco, toca o meu telemóvel: era ela. Ansiosa, atendi imediatamente na esperança de ter notícias concretas. Dizia ela que aquilo estava muito difícil e que estava imensa gente para apanhar os elevadores. Que o peru era uma caixa enorme que ela não conseguia segurar, mas que depois um senhor lhe deu um carro e ela lá o foi empurrando até aos elevadores mas, com tanta gente, não conseguia entrar no elevador com o carro. E nesse preciso momento, ouvi a voz de um senhor dizendo “pode passar, faça o favor de passar” e só a ouvi dizer, “parece que agora vou conseguir” e a chamada mais uma vez caiu. 

O raio do peru já estava a dar mais trabalho do que eu imaginava e nesta altura decidi deixar o carro e ir ao encontro dela, por achar que era o mais sensato. E depois de uma trégua rápida dos carros sempre a passar, atravesso a estrada em direcção à porta do Corte Inglês. Entro, e olhando para aquela multidão, lá descubro a mãe empurrando o carrinho, de facto, com uma caixa que parecia ter meia dúzia de perus. Continuava a praguejar, claro: “Dois homens em casa e são as mulheres que têm que fazer tudo”, dizia ela. Não era o caso, que lá em casa era rigorosamente o contrário. Era o marido e o filho que faziam tudo. Sempre me lembro de ver a minha tia/mãe pedir, dar ordens, etc… Mas só por esta vez ela estava certa. E continuava a relatar tudo o que tinha acontecido, que estava cheio e tudo o mais. 

Tirei a caixa do carro e disse-lhe para vir comigo. Agora a caixa estava nas minhas mãos e realmente era um trambolho que não dava jeito nenhum e a prova disso é que tropecei num degrau ou num desnível qualquer e fiquei sem saber se largava o peru ou… enfim, lá consegui não fazer asneira, mas foi por pouco. Lá ia o molho e tudo à vida. Levantei-me, sempre segurando a caixa, ela preocupada se eu me tinha magoado, olhámos uma para a outra e desatámos a rir. Era comum acontecerem essas cenas, de desatarmos a rir nas alturas menos apropriadas. Parecia que todo o mundo estava a olhar para nós pensando que éramos doidas. Eu, caladinha como convinha, mas a mãe, sempre falando bem alto para toda a gente ouvir e fazendo os seus comentários, por vezes nada desejáveis. Mas era assim e todos nós já estávamos mais do que habituados. 

Antes de atravessarmos a estrada e como estava em linha de vista com o carro, pedi-lhe para ir para lá e me abrir a porta do assento traseiro, enquanto eu abria com o comando, para depois poder pegar convenientemente na caixa do peru. Mas de cada vez que apontava o comando, algo se interpunha e eu não conseguia fazer contacto. E perante cada tentativa minha, falhada, ela não fazia senão rir, rir, rir, só que eu já não estava a achar muita graça e só me apetecia largar o peru em qualquer lado. Finalmente o carro abriu e lá foi ela andando para me abrir a porta lateral esquerda. Acontece que a porta estava ligeiramente empenada e o que abria era muito pouco para a caixa poder entrar. Eu bem empurrava, virando daqui, dali, mas não ia. Já cansada, fechei a porta com toda a força, pedi-lhe que abrisse a bagageira e enfiei o peru no porta bagagem. Entrámos no carro e desatámos a rir outra vez. 

Pelo caminho a mãe ia revendo todas as peripécias, acrescentando mais uns pormenores e à custa disso continuávamos a rir. Quase a chegar a casa ligou para os homens dela exigindo que viessem cá abaixo para levarem o peru para casa. 

E chegou a hora da ceia de Natal. Foi tudo para a mesa. Tudo o que havia e o peru também. Lá estava ele, todo bonitinho, tão brilhante que até parecia de plástico. E toda a gente começou a comer e de tudo um pouco se foi provando e comentando o gosto, o paladar, enfim. Mas o peru, continuava lá, bonitinho, inteirinho. No final da noite, todos olhámos para o peru e todos comentámos que não tinha sido encetado. Ninguém tinha sido tentado a experimentar o famigerado peru. Ok, levantou-se a mesa e foi tudo para dentro, para a cozinha. 

Dia de Natal, a mesa posta para o almoço. Muita coisa na mesa e lá vem outra vez o peru, inteirinho. O almoço deu início, foi-se comendo tudo o que estava na mesa, mas o peru continuava lá, sem ser tocado, até que a mãe se lembrou de que melhor seria cortá-lo. E lá veio uma boa alma com uma enorme faca que desmanchou o peru todo. Agora o peru já estava todo esquartejado, era mais fácil para se servirem. E todos continuaram desfrutando do almoço de Natal, mas o peru continuava lá, embora cortado, sem ninguém lhe tocar. Acabou o almoço, levantou-se a mesa e lá foi tudo para dentro novamente. E o peru passeando. Eu já nem podia olhar para ele. 

E veio o dia 25 à Noite e todas as iguarias vieram e o peru também, claro. E já ninguém queria ver o peru. E acabou o Natal, as visitas foram-se embora e tudo voltou ao normal, mas o peru continuava intacto. A mãe, com as mãos juntas e os dedos cruzados, olhava para nós e olhava para peru e não sabia se havia de rir, se havia de chorar. 

O facto, é que o peru, não fez falta nenhuma. Acredito que tenha feito falta em muitos lares e a muitas famílias. Ali, comeram peru sim, mas de castigo, até ao Ano-Novo.