Em
frente ao meu chefe que estava sentado à secretária, concentrado em qualquer
coisa que estava a fazer, aguardava que ele me desse atenção para lhe
dizer o que tinha acabado de acontecer. Mas ele fazia tudo menos dar-me a
atenção que eu precisava naquele momento. Estava difícil.
A seu
pedido, evidentemente, porque tinha sido chamado para uma reunião inesperada e
que não era possível prever a que horas acabaria, tinha ido à rua buscar o jipe
dele que estava estacionado no parquímetro e dado que já havia lugar na garagem
da rtp, na 5 de Outubro, não valia a pena pôr mais moedas. Apressado, ele
atirara-me a chave, pedindo-me para ir buscar o jeepe e estacioná-lo na
garagem.
Nessa
altura, ainda não tinha carro da empresa nem direito a estacionamento e, se bem
que não fosse das minhas competências fazer aquilo, a nossa camaradagem
profissional ultrapassava em grande escala esses limites. Assim, depois dele
ter ido para a reunião, lá fui buscar o carro.
Na
verdade, era a primeira vez que tal acontecia. Já tinha ido pôr moedas no
parquímetro, algumas vezes, mas nunca tinha conduzido o jipe, no entanto, não
achei que tivesse algum problema, por isso, peguei nas chaves e fui. Pus o jipe
a trabalhar e fui conduzindo até à entrada da garagem. Aguardei pelo sinal
verde e entrei.
Comecei
a descer a rampa da garagem até ao piso menos um e ao fazer a esquina, calculei
mal a curva e pumba… bati. Ouvi a traseira lateral direita embater com
força na parede. Que estupidez(!), pensei. Como é que eu, uma condutora
experiente, tinha feito uma coisa daquelas? Ainda por cima com um carro que não
era meu? Ele confiava em mim e eu tinha feito um estrago daqueles!? É que, pelo
estrondo, não tinha sido pouca coisa. Estava irritadíssima comigo mesma.
Continuei
a conduzir até ao piso menos dois onde encontrei lugar e estacionei. Estava
ansiosa para ver o estrago que tinha feito. Apressadamente, saí do carro e fui
inspeccionar. Nem queria acreditar. Que loucura! Aquilo não podia ter
acontecido de jeito nenhum. E agora? De quantos vencimentos eu ia precisar para
pagar o estrago feito?
E aí
estava eu, à espera que ele me desse atenção para lhe contar o sucedido. Quem
iria ficar mais furioso, ele ou eu? Sim, muitas vezes nos desentendíamos, mas a
nossa cumplicidade estava acima dessas coisas. Fazíamos uma dupla imbatível.
Podíamos ter um desentendimento forte, mas no instante seguinte estávamos a
entender-nos a cem por cento. Tínhamos liberdade para sermos francos um com o
outro, até onde isso é humanamente possível, o que era muito mais do que
profissional.
Não
que isso alguma vez me tenha dado privilégios no campo profissional nem tão
pouco monetariamente. Para ele eu sempre fui a melhor secretária do mundo, mas
traduzi-lo em promoção e em remuneração, jamais. Quando eu o confrontava com
essa situação e quando chegava a altura do ano, dos enquadramentos
profissionais, muitas vezes o encostei à parede fazendo-lhe perguntas directas
acerca do meu desempenho profissional, a que ele nunca teve dúvidas em
reconhecer o mérito que me era devido. E eu sabia que ele o reconhecia com
verdade. Mas daí não passava.
Todavia,
era o meu melhor amigo. Resolvíamos sempre as nossas coisas, os nossos assuntos
pessoais e profissionais em equipa, no mais perfeito equilíbrio, protegendo-nos
um ao outro, facilitando a vida pessoal e profissional um do outro, quebrando o
“galho” um do outro, organizando-nos para facilitar também a vida no âmbito
familiar porque, para além do trabalho, há a família, que é preciso respeitar e
que precisa da nossa atenção.
Sempre
que eu tinha descompensações de ordem emocional e ficava esgotada era ele que
sabia o que fazer comigo. Era ele que me dava a “mão”, era com ele que
desabafava e o contrário também era válido.
A
agora aí estava eu, esperando que ele parasse o que estava a fazer e olhasse
para mim, para me ouvir dizer que tinha batido com o Honda na esquina da
garagem. Como é que iria reagir? É verdade que ele não tinha o direito,
legalmente falando, de me culpabilizar. Mas isso, entre nós, não contava. Eu
era culpada, sim.
Finalmente,
ele olhou para mim e como se ainda não tivesse reparado que eu já ali estava há
algum tempo, disse: “ah, estás aí”. Não sabia como dizer, mas antes que se
fosse novamente e me deixasse pendurada, disse-lhe que já tinha posto o carro
na garagem. “Ah, já havia lugar... pois àquela hora já tinham saído muitos”…,
comentou ele. E antes que continuasse, porque quando começava a falar nunca
mais se calava, interrompi, dizendo: “tenho muita pena, desculpa, mas bati com
o carro, na garagem”. Estava dito.
Surpreendentemente,
não ficou muito admirado. Não percebi bem porquê, mas talvez para me poupar.
Perguntou se tinha sido muito, respondi que sim, muito. E era. Estava batido e
muito riscado. Era feio. Ele ouvia-me, mas não parava de fazer coisas, indo da
janela para a secretária, da secretária para a estante, mexendo aqui, mexendo
ali, tirando daqui e pondo ali, mas nada de comentar acerca do
assunto. Disse-lhe, então, que visse e depois me dissesse, que eu, claro está,
contrariada, mas assumia o prejuízo.
Findo
o dia, retornamos às nossas casas. Quando me deitei, não conseguia dormir,
pensando em como ele iria ficar aborrecido quando visse o estrago. Talvez ele
não tivesse reagido mal por achar que eu estivesse a exagerar. O pior é que não
estava. Tinha sido uma pancada e tanto. Ele nem imaginava. Que chatice! Como
não era com um desconhecido, mas sim com o meu chefe, acabei por me acalmar e
consegui dormir.
No
outro dia, lá vou eu a caminho da rtp para mais um dia. Chego e começo a
trabalhar. Ele ainda não tinha chegado e com o trabalho, quase me esqueço do
assunto. Mas, de repente, eis que chega, apressado, entra no gabinete,
tira o casaco e senta-se. E não diz nada. Que estranho. Esperava que ele
entrasse por ali dentro, fazendo-me mil e uma perguntas, porque quando começava
a falar nunca mais se calava. Mas, para meu grande espanto, nada disso
aconteceu.
Vou
atrás dele, fico na sua frente e ele apenas me pergunta o que é que há, se eu
quero alguma coisa. Oh, digo eu, então e o assunto de ontem? Com uma certa ingenuidade
ele pergunta qual era o assunto. Com os nervos já em franja, reavivo a sua
memória, lembrando-lhe que ele ficara de ver a batida com o carro. Resposta
dele:
- Ah, aquilo? Aquilo já estava!