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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O Jeep do RM - 5


Em frente ao meu chefe que estava sentado à secretária, concentrado em qualquer coisa que estava a fazer, aguardava que ele me desse atenção para lhe dizer o que tinha acabado de acontecer. Mas ele fazia tudo menos dar-me a atenção que eu precisava naquele momento. Estava difícil.

 

A seu pedido, evidentemente, porque tinha sido chamado para uma reunião inesperada e que não era possível prever a que horas acabaria, tinha ido à rua buscar o jipe dele que estava estacionado no parquímetro e dado que já havia lugar na garagem da rtp, na 5 de Outubro, não valia a pena pôr mais moedas. Apressado, ele atirara-me a chave, pedindo-me para ir buscar o jeepe e estacioná-lo na garagem.

 

Nessa altura, ainda não tinha carro da empresa nem direito a estacionamento e, se bem que não fosse das minhas competências fazer aquilo, a nossa camaradagem profissional ultrapassava em grande escala esses limites. Assim, depois dele ter ido para a reunião, lá fui buscar o carro.

 

Na verdade, era a primeira vez que tal acontecia. Já tinha ido pôr moedas no parquímetro, algumas vezes, mas nunca tinha conduzido o jipe, no entanto, não achei que tivesse algum problema, por isso, peguei nas chaves e fui. Pus o jipe a trabalhar e fui conduzindo até à entrada da garagem. Aguardei pelo sinal verde e entrei.

 

Comecei a descer a rampa da garagem até ao piso menos um e ao fazer a esquina, calculei mal a curva e pumba… bati. Ouvi a traseira lateral direita embater com força na parede. Que estupidez(!), pensei. Como é que eu, uma condutora experiente, tinha feito uma coisa daquelas? Ainda por cima com um carro que não era meu? Ele confiava em mim e eu tinha feito um estrago daqueles!? É que, pelo estrondo, não tinha sido pouca coisa. Estava irritadíssima comigo mesma.

 

Continuei a conduzir até ao piso menos dois onde encontrei lugar e estacionei. Estava ansiosa para ver o estrago que tinha feito. Apressadamente, saí do carro e fui inspeccionar. Nem queria acreditar. Que loucura! Aquilo não podia ter acontecido de jeito nenhum. E agora? De quantos vencimentos eu ia precisar para pagar o estrago feito?

 

E aí estava eu, à espera que ele me desse atenção para lhe contar o sucedido. Quem iria ficar mais furioso, ele ou eu? Sim, muitas vezes nos desentendíamos, mas a nossa cumplicidade estava acima dessas coisas. Fazíamos uma dupla imbatível. Podíamos ter um desentendimento forte, mas no instante seguinte estávamos a entender-nos a cem por cento. Tínhamos liberdade para sermos francos um com o outro, até onde isso é humanamente possível, o que era muito mais do que profissional.

 

Não que isso alguma vez me tenha dado privilégios no campo profissional nem tão pouco monetariamente. Para ele eu sempre fui a melhor secretária do mundo, mas traduzi-lo em promoção e em remuneração, jamais. Quando eu o confrontava com essa situação e quando chegava a altura do ano, dos enquadramentos profissionais, muitas vezes o encostei à parede fazendo-lhe perguntas directas acerca do meu desempenho profissional, a que ele nunca teve dúvidas em reconhecer o mérito que me era devido. E eu sabia que ele o reconhecia com verdade. Mas daí não passava.

 

Todavia, era o meu melhor amigo. Resolvíamos sempre as nossas coisas, os nossos assuntos pessoais e profissionais em equipa, no mais perfeito equilíbrio, protegendo-nos um ao outro, facilitando a vida pessoal e profissional um do outro, quebrando o “galho” um do outro, organizando-nos para facilitar também a vida no âmbito familiar porque, para além do trabalho, há a família, que é preciso respeitar e que precisa da nossa atenção.

 

Sempre que eu tinha descompensações de ordem emocional e ficava esgotada era ele que sabia o que fazer comigo. Era ele que me dava a “mão”, era com ele que desabafava e o contrário também era válido.

 

A agora aí estava eu, esperando que ele parasse o que estava a fazer e olhasse para mim, para me ouvir dizer que tinha batido com o Honda na esquina da garagem. Como é que iria reagir? É verdade que ele não tinha o direito, legalmente falando, de me culpabilizar. Mas isso, entre nós, não contava. Eu era culpada, sim.

 

Finalmente, ele olhou para mim e como se ainda não tivesse reparado que eu já ali estava há algum tempo, disse: “ah, estás aí”. Não sabia como dizer, mas antes que se fosse novamente e me deixasse pendurada, disse-lhe que já tinha posto o carro na garagem. “Ah, já havia lugar... pois àquela hora já tinham saído muitos”…, comentou ele. E antes que continuasse, porque quando começava a falar nunca mais se calava, interrompi, dizendo: “tenho muita pena, desculpa, mas bati com o carro, na garagem”. Estava dito.

 

Surpreendentemente, não ficou muito admirado. Não percebi bem porquê, mas talvez para me poupar. Perguntou se tinha sido muito, respondi que sim, muito. E era. Estava batido e muito riscado. Era feio. Ele ouvia-me, mas não parava de fazer coisas, indo da janela para a secretária, da secretária para a estante, mexendo aqui, mexendo ali, tirando daqui e pondo ali, mas nada de comentar acerca do assunto. Disse-lhe, então, que visse e depois me dissesse, que eu, claro está, contrariada, mas assumia o prejuízo.

 

Findo o dia, retornamos às nossas casas. Quando me deitei, não conseguia dormir, pensando em como ele iria ficar aborrecido quando visse o estrago. Talvez ele não tivesse reagido mal por achar que eu estivesse a exagerar. O pior é que não estava. Tinha sido uma pancada e tanto. Ele nem imaginava. Que chatice! Como não era com um desconhecido, mas sim com o meu chefe, acabei por me acalmar e consegui dormir.

 

No outro dia, lá vou eu a caminho da rtp para mais um dia. Chego e começo a trabalhar. Ele ainda não tinha chegado e com o trabalho, quase me esqueço do assunto. Mas, de repente, eis que chega, apressado, entra no gabinete, tira o casaco e senta-se. E não diz nada. Que estranho. Esperava que ele entrasse por ali dentro, fazendo-me mil e uma perguntas, porque quando começava a falar nunca mais se calava. Mas, para meu grande espanto, nada disso aconteceu.

 

Vou atrás dele, fico na sua frente e ele apenas me pergunta o que é que há, se eu quero alguma coisa. Oh, digo eu, então e o assunto de ontem? Com uma certa ingenuidade ele pergunta qual era o assunto. Com os nervos já em franja, reavivo a sua memória, lembrando-lhe que ele ficara de ver a batida com o carro. Resposta dele:

 

- Ah, aquilo? Aquilo já estava!