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domingo, 27 de março de 2022

Vai vem - 70

 

Quando eu nasci não tinha nada. Apenas e somente o grande, imenso e infinito amor dos meus pais, que até hoje está dentro de mim.

Mas esse amor depressa se apagou aqui, para continuar para lá desta vida, das portas que nos transportam à eternidade. A minha mãe partiu deste mundo quando eu tinha dez nos de idade e o meu pai, militar de carreira, partiu para a guerra em África.

Fui crescendo como pude e um dia fiz-me à vida, para recuperar a minha própria identidade. E casei. Quando casei, não tinha nada, a não ser o emprego e a casa alugada onde vivia. Mas ganhei e ganhei muito. O meu marido era de uma família sobejamente abastada. Sem serem propriamente ricos, não tinham problemas de dinheiro. A minha sogra vivia no seu belo solar, na cidade de Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, Açores. Um solar com cavalariças, que há muito não eram usadas. Não era nenhum palácio, mas era um casarão. E para mim, que não tinha nada, aquilo era um verdadeiro luxo.

Alguns colegas de trabalho, diziam-me que eu o tinha escolhido por causa do dinheiro dele. Diziam isto meio a sério meio a brincar, mas eu era tão ingénua, que nem fazia a mais pequena ideia do porquê desta observação. Na verdade, eu não sabia nada da vida deles e muito menos do que tinham ou do que não tinham. E nem isso me dizia respeito, como é evidente.

Todavia, com o tempo, fui conhecendo as fazendas da mãe e dos tipos padres e aos poucos, comecei a perceber o que queriam dizer aqueles comentários fora de propósito. Mas não foi por essa razão que me casei com ele. Não casaria com ele nem com ninguém por causa do dinheiro. Apesar de tudo, eu era independente, uma coisa que aos dezassete anos conquistei por mim mesma, e isso me bastava. Nunca exigi nada de especial da vida, a não ser paz e sossego. E a minha liberdade estava acima de qualquer coisa.

Mas, de facto, aos poucos fui percebendo que havia propriedades onde se produzia muita banana e outras coisas. De vez em quando íamos até lá para ver das bananeiras e passar tempo, o que era muito agradável. E pensava que, de repente, a vida me tinha presenteado com tanta coisa boa. Porque apesar de nada daquilo ser meu, eu usufruía, pelo facto de ser casada com ele. Usufruía, quanto mais não fosse, de poder ir até lá e passar bons momentos com o meu marido. Só isso já me bastava para achar que aquilo também era um pouco meu.

Todavia, o nosso relacionamento tornou-se complicado de mais para poder prosseguir e aos trinta e seis anos fui obrigada a divorciar-me. E, claro, tudo o que tinha daquele casamento, nada ficou, porque nada era meu. A vida dá, a vida tira. Mas ganhei um filho para a vida e isso não é pouca coisa. É o sonho de toda a mulher que quer ser mãe.

Mais tarde conheci um paquistanês com quem me relacionei durante sete anos. Durante esses anos, houve uma altura em que ele foi para a Grécia trabalhar. Como estávamos cheios de saudades um do outro, ele insistiu para que eu tirasse férias e fosse ter com ele. Pois bem, sem prejuízo da minha vida profissional, lá fui eu de férias para a Grécia, durante três semanas, porque também não queria deixar o meu filho muito tempo sem mim, embora estivesse em companhia do pai.

E a Grécia foi um presente e tanto da vida, apenas porque estava com ele. De outra forma não sei se lá teria ido. Mas mesmo que fosse, não seria nunca a mesma coisa. O Riaz arranjou uma vivenda mesmo em frente ao mar, aquele mar quente e maravilhoso, onde apetece entrar e nunca sair. Era uma vivenda espetacular, com um jardim enorme onde abundavam as flores de vária ordem, muito em especial as rosas. E como cheiravam! Todas as tardes ia lá uma pessoa para o regar, por isso estava especialmente bem cuidado. E entre a casa, ou seja, o jardim e o mar, havia apenas a distância de uma estrada que circundava a ilha. Eu saía de casa, dava meia dúzia de passos e estava à beira da água. Aquilo era o meu paraíso. Sempre sonhei com uma casa à beira mar. Pois aí estava ela. Seria apenas por três semanas, mas isso não importava. Pior seria se nunca tivesse tido. Foi por pouco tempo, mas simplesmente maravilhoso.

Na Grécia fui tratada como uma rainha. Mais uma vez a vida estava a presentear-me e como!? Recebia elogios de toda a ordem e as mulheres adoravam os meus vestidos. Na Grécia comi marisco acabado de ser apanhado, que faziam questão de me oferecer. Frutas e legumes, os mais frescos e tantas coisas mais. Na Grécia as crianças dançaram o Zorba para mim, o que foi uma coisa indescritível. Simplesmente fabuloso. Conheci Atenas e outras ilhas. Foram umas férias de sonho, absolutamente. E tudo isso a vida me deu.

Mas ao fim de sete anos o nosso relacionamento teve que terminar e mais uma vez fiquei sozinha com o meu filho e nada mais. As pessoas vêm, as pessoas vão.

Anos mais tarde, quando a televisão e a rádio se juntaram, a empresa aumentou e ficámos todos juntos, sendo que passei a ter muito mais colegas. Aos poucos fomo-nos habituando uns aos outros, com alguns namoros e até casamentos à mistura. E um dia comecei a falar com um colega da Rádio, com quem fui tendo mais intimidade e os dois começámos um relacionamento. Era sozinho e tinha uma irmã casada e com filhos, que vivia no Canadá. O seu sonho era ir visitá-los, mas não sozinho, o que sempre acontecia. E gostaria muito de ir comigo. Na verdade, eu também nunca tinha pensado em ir ao Canadá. Não era propriamente um país que estivesse nas minhas prioridades. Contudo, porque não!? Se a vida me estava a abrir o caminho, era seguir em frente. E lá fomos nós.

E foi mais uma viagem inesperada e maravilhosa. Visitámos imensa coisa, inclusive a ilhas, as Cataratas do Niagará e muito mais, que ele fez questão que eu ficasse a conhecer. Gostei muito e mais uma vez agradeci à vida o presente que me dava. Se não o tivesse conhecido, provavelmente não teria ido ao Canadá, que muito me surpreendeu pela positiva. Depois, ao fim de nove meses, porque ele tinha um problema de alcoolismo e começou a ter uns comportamentos estranhos, tivemos que pôr fim ao nosso relacionamento e mais uma vez fiquei sozinha e agora sem o meu filho, que já tinha ganho a sua independência.

Mais tarde conheci uma pessoa com quem tive uma verdadeira história de amor. Já nos conhecíamos há muitos anos, mas não tínhamos a menor intimidade nem à vontade, nem nada. Apenas o trabalho nos ligava, com todo o profissionalismo possível e todas as inerentes formalidades. Um dia ele divorciou-se, de um casamento de toda uma vida, com filhos já homens e de repente começámos a falar, à descoberta um do outro.

E como foi bom! Foi uma coisa fantástica, porque tínhamos a mesma ideia um do outro, completamente fora da realidade. Ele era uma pessoa fantástica. Tratava-me com mil cuidados, como uma verdadeira princesa. Todos os fins de semana íamos para a casa de campo, nos arredores de Alcobaça, uma casa bem grande, com uma área muito bem cuidada, com uma bela e bonita piscina de água doce e algumas árvores de fruto. Era um sítio maravilhoso, que eu adorava, e que me dava uma paz incrível.

Mais uma vez a vida me presenteava do nada, dando-me tudo aquilo, sem eu ter feito nada para o ganhar, nem nada ter pedido. Mas se era dele, era um pouco meu, pelo que eu muito beneficiava.

Uma vez por mês íamos a Trás-os-Montes, onde ele tinha nascido e onde ainda tinha a mãe e mais alguns parentes. Aquilo era bom demais. Um casarão enorme, com sete quartos, no meio de toda aquela liberdade decorada das mais belas flores, que a mãe cuidava com todo o amor. Os pastores passavam por ali, ao fim da tarde, porque tinham cerca de quinhentas cabeças de gado. Quando passeávamos de carro por aquelas terras, que ele fazia questão de me dar a conhecer, depois de andarmos quilómetros sem fim apenas vendo a paisagem, ele parava o carro, saíamos e ele brincando, tapava-me os olhos para depois os destapar e me dizer, tudo o que vês daqui, é meu. São as terras da minha mãe. Amendoeiras e oliveiras que nunca mais acabava. E eu olhava, espantada, sem conseguir realizar dentro da minha cabeça, como se podia ter tanta coisa. Apenas porque nunca tive nada.

A cerca de cem metros da casa da mãe, em Trás-os-Montes, passava um riacho de água limpa e pura como nunca vi igual, que deslizava suavemente num leito natural de pedras de todos os tamanhos. E ao passar, a água tilintava uns sons deliciosos, que traziam muita paz ao meu coração e um bem estar espiritual infinito. Tudo ali era selvagem, mas de uma grande beleza. E eu sempre pensava para comigo, que fiz eu para merecer tudo isto? Aquilo era um lugar dos “deuses”!?

O nosso relacionamento era perfeito. Melhor, era impossível e eu tinha uma vida mais que feliz. Ele era um verdadeiro gentleman, como eu nunca tinha conhecido e dizia-me que eu era mais importante do que a sorte grande, porque se lhe tivesse saído a sorte grande ele teria o dinheiro, mas não me tinha a mim. E eu era muito mais importante para ele do que todo o dinheiro do mundo. Isto era lindo de ouvir. E como eu o compreendia!

Mas como tudo era bom demais para ser verdade, ao fim de sete meses, quinze dias antes da data que ele tinha marcado para nos casarmos e seguirmos uma semana em lua de mel para Paris, onde eu nunca tinha ido, simplesmente e surpreendentemente, adoeceu e no espaço de uma semana, ao cabo de três intervenções cirúrgicas, não resistiu e partiu para sempre. Eu também não tinha pedido aquilo. Mas a vida dá, a vida tira.

As coisas vêm, as coisas vão. As pessoas vêm, as pessoas vão. Não adianta querer agarrar seja o que for, seja quem for.

O vai vem da vida…


quinta-feira, 24 de março de 2022

Os Museus - 69

 

Quando eu era criança, a minha primeira escola foi na metrópole, depois da vinda de África, onde eu era uma criança completamente feliz. Os meus pais e a minha irmã de dois anos ficaram em África, mas eu vim para Portugal, com a desculpa de que tinha que ir à escola. Desculpa, porque, só mais tarde fiquei a saber o verdadeiro motivo, que agora não vem ao caso, mas na altura foi essa a razão apontada. Já era difícil a situação de ter sido separada dos meus pais e ainda por cima ter que deixar África que eu amava, onde tinha liberdade total e fazia o que queria. Eu não gostava da metrópole e muito menos dos hábitos e da maneira como as pessoas viviam, fechadas em casa, sem o menor contacto com a natureza, com frio, chuva e dias tristes. Chuva sim, mas chuva quente. E aqui a chuva trazia o frio, o vento e tudo muito desagradável. Mas era o que era. E lá fui eu para a escola, porque no ano seguinte iria para o ensino oficial e era preciso ir já a saber ler.

A escola era a casa de uma senhora de idade que, para além de viúva, tinha perdido o seu único filho ainda muito jovem e que era padre. A senhora vivia sozinha, numa casa enfadonha e tenebrosa, um verdadeiro museu, onde ela idolatrava os seus mortos. Logo à entrada da porta, a primeira divisão que se via era um quarto transformado numa minicapela, que até um banco de igreja tinha. Um altar com um cristo na cruz no centro, flores por todo o lado, com toalhas arrendadas, tudo muito caprichado, mas muito escuro e lúgubre, apenas com a luz de uma vela.

Depois era a cozinha, onde ela nos dava as aulas, porque apesar de ser uma cozinha, estava transformada em escola. Tinha bancos corridos junto às paredes e enquanto ela cozinhava e fazia outras coisas, era aí que nos ensinava. Luz, era coisa que muito pouco havia. Bastantes crianças, todas ali enfiadas e onde se passava o dia. Levávamos o almoço de casa e só saíamos ao final da tarde, quando alguém nos ia buscar.

Até aqui, todas as crianças passaram pelo mesmo que eu. Só que à hora da saída, todas tinham quem as fosse buscar. Já eu não. Eu ficava, ficava, ficava… completamente esquecida e abandonada. Era todos os dias a mesma cena. Se aquela casa já era de uma tristeza sem fim durante todo o dia, quando todas as crianças saiam e só ficava eu, tudo piorava de uma maneira avassaladora. A solidão aumentava. O escuro ficava mais escuro. A má disposição dela ganhava proporções alarmantes, porque se sentia importunada com a minha presença, sem ninguém para me ir buscar. Era o frio, a humidade, a angústia e o desespero de me deixarem ali, sem o cuidado de me irem salvar daquele mausóleo infernal. Ela gritava comigo e com uma certa razão, que ninguém queria saber de mim. Apesar de eu não me queixar, de não dizer nem ai nem ui e de tudo ouvir sem resmungar. Mas não havia nada que eu pudesse fazer. Estava terminantemente proibida de sair sozinha, apesar de ser muito perto de casa, pelo que tinha que esperar até que os meus avós chegassem a casa para me irem buscar.

E ela dividia-se entre a cozinha e a capela, onde tinha as fotos do filho e do marido, porque estava constantemente a ir rezar. Ajoelhava-se e ali ficava, ora em silêncio profundo, ora rezando baixinho. Tudo ali era mórbido. A luz desaparecia completamente para dar lugar à noite. E eu ali sozinha, sem ninguém, rodeada de velharias, de roupas feias e pretas, num ambiente austero e deprimente, que cheirava a mofo, sem cor, sem alma, sem vida. Um verdadeiro inferno. O primeiro de muitos que se seguiriam.

Mas a vida acontece e as coisas mudam, umas vezes para melhor, outras nem tanto. Assim, cresci, amadureci e vivi, até ao dia em que fui visitar um museu. E lembro-me de que a sensação não foi realmente das melhores. E outro, e aconteceu exatamente a mesma coisa. Eu não me sentia bem naqueles lugares. E por aí fora, todos os museus que fui visitando, todos eles me transmitiam a mesma sensação nostálgica e me deixavam mal e só me apetecia ir embora. Podia até gostar do que via, mas só o facto de estar lá dentro já me deixava triste e sem vontade de apreciar como os outros. Sempre os achei tristes, escuros, onde só havia coisas velhas, coisas antigas e por mais esforço que fizesse nada daquilo me chamava.

Mas os museus são lugares por demais visitados, aonde acorre um número incalculável de pessoas de todo o mundo, em todo o mundo. Quem não gosta de museus? Eu nunca conheci ninguém que não gostasse. Quando há uma viagem seja aonde for, as primeiras coisas em que se fala é nos museus que se quer conhecer. Há museus de toda a ordem, com conteúdos os mais variados. E as pessoas acorrem em massa para ver, visitar, conhecer, apreciar, admirar e enriquecer a sua cultura. Os museus permitem compreender muito do que ficou para trás, entender a história da humanidade, acompanhar o percurso do homem desde que dá os primeiros passos até aos nossos dias.

É, pois, muito importante, guardar e estimar essas relíquias, o que quer que sejam, para que os que vêm depois as conheçam e de alguma forma partilhem dessa vivência. Assim, podemos acompanhar a evolução e o crescimento dos povos, sob todos os ângulos e pontos de vista. Os museus encerram tesouros, independentemente do valor real que contenham no seu interior. Dir-se-ia mesmo que o maior tesouro é a história, a verdadeira história, muito mais do que todo o ouro do mundo.

Por tudo isto, é perfeitamente compreensível e admirável, que toda a gente goste de museus, que toda a gente seja apaixonada por museus. Eu tinha pena de não sentir o mesmo que os outros, mas realmente foi sempre muito difícil entrar num museu e fazer uma visita calma e serena como toda a gente parecia fazer. E sempre que podia fugia deles, porque lá vinham as memórias enfadonhas com que recusava enfrentar-me. Escutava no meu íntimo, penetrava no mais fundo do meu ser, onde as memórias começavam a acessar e a vir à tona, no álbum de recordações do meu passado, onde tudo estava devidamente marcado e assinalado, onde as más lembranças vinham novamente ao de cima, fazendo-me sentir mal, porque havia uma certa analogia. Era o “velho”, o “antigo”, o “escuro”. Tudo lá de trás. Vinha tudo do mesmo saco, pelo menos na minha maneira de ver e de sentir e era uma experiência verdadeiramente muito má.

Hoje já existem museus modernos, de arquitetura muito avançada e arrojada, que fazem toda a diferença. São leves e respira-se bem, porque têm uma energia muito própria. Aí, quando entro, a minha atitude é outra. Aí é possível caminhar, apreciar sem stress, sem nostalgia. A luz entra sem pedir licença, para se poder admirar do fundo da nossa alma e acima de tudo, sem as sombras tenebrosas do passado.