No
dia 7 de julho de 1979, a capela mais pequena e mais isolada da ilha de S.
Miguel nos Açores, abria as suas portas para celebrar um casamento que, de
comum, nada tinha.
Para
o efeito, o pároco da igreja matriz de Ponta Delgada, tinha providenciado o seu
arejamento e bem assim, a limpeza, já que raramente abria as suas portas. Quem
se lembraria de encomendar um casamento naquelas bandas? Mas a senhora Ana
cumprira rigorosamente as instruções do senhor padre e até tinha ornamentado a
capela com algumas flores frescas. Enfim, por aquelas bandas havia um evento e
era preciso tirar partido da situação. Assim, à hora certa, dois carros
chegaram e estacionaram no átrio da pequena capela, de lá saindo os seus
ocupantes, ao todo oito: o padre, tio do noivo; a irmã do padre, mãe do noivo;
o filho mais velho da irmã do padre, irmão do noivo e respetiva mulher; o
noivo, a noiva e um casal amigo de ambos e padrinhos de casamento.
Os
escassos “mirones” não se fizeram esperar, pois não era possível que algo ali
pudesse passar despercebido e muito menos um casamento. E logo se ouviram vozes
que comentavam “oh, a noiva é aquela, vestida de branco”… que bem que isto
soava, naquela bela pronúncia açoriana que, conforme for, não se entende nada.
É que, quem ia vestida de branco era a mulher do irmão do noivo e não a noiva.
Essa, trajava um vestido preto que tinha o peitilho todo bordado com todas as
cores do arco-íris, embutido de pequeníssimos espelhos, que tornavam um simples
vestido preto num vestido totalmente invulgar.
Era
um vestido indiano que tinha sido comprado em Londres, numa viajem de “lua de
mel”, cerca de mais ou menos um ano antes do casamento e como ainda não tinha
sido usado, foi o escolhido para a cerimónia. Com isto, estava longe de ser
identificada como “a noiva”, o que a deixava bem mais confortável. E para isso,
lá estava a cunhada, vestidinha de branco, simulando a noiva. Mas os nossos
olhares não puderam deixar de se cruzar, dando aso a risinhos escondidos por
causa do caricato da situação. E segredava a suposta noiva, com a mão a tapar a
boca “olha, a noiva sou eu!”… com um ar incrédulo, de quem não percebe o
porquê, que mais claro não poderia ser. Mas deixemos isso.
A
capela tinha apenas três bancos corridos e lá nos acomodámos conforme as
indicações do tio Padre, que não parava de blasfemar entre dentes, dado que
para ele, tudo aquilo não passava de um grande sacrilégio do qual ele fazia
parte, esperando com todas as suas forças que Deus nosso senhor o perdoasse.
Aquilo
era uma família muito religiosa. Só padres e freiras. Apenas a senhora minha
sogra se salvara daquela sina, rompendo as regras para se casar. E desse
casamento vieram dois filhos, sendo que o mais novo se
tornou oficialmente meu marido, com todos os papéis assinados e
finalmente a indispensável bênção do Senhor. Tudo conforme o figurino.
Em
casa do senhor Padre Domingos, com quem a minha sogra vivia desde que o marido
se fora, deixando-a com dois filhos pequenos, um de quatro anos e outro de
dois, eu era muito bem recebida, muito acarinhada. Contudo, aos domingos,
quando a família se reunia para celebrar a sagrada refeição do dia do Senhor,
não havia lei que permitisse a minha presença. Podia até ir jantar, mas
almoçar, nem pensar. E isso, porque não éramos casados. Para eles, vivíamos em
pecado e o almoço de domingo não podia ser manchado. Podia ir lá todos os dias,
a todas as horas. Aos almoços de domingo, não. Mas parece que o “pecado” era só
para mim, para o filho não. Enfim…
Em
virtude disso e para não me aborrecer, combinámos que ele alternaria, sendo que,
num domingo almoçaria comigo para eu não ficar sozinha e no outro, com a
família, para a mãezinha não ficar triste. O facto é que com o tempo percebemos
que isso não funcionava porque se ele ia, ficava chateado porque eu ficava
sozinha e se ficava comigo, ficava chateado porque não ia à mãe.
Então,
um dia, decidi pôr fim àquela treta e decidi que nos casaríamos pelo registo,
para se acabar com aquela cena. Tratámos dos papéis, chamámos um casal nosso
amigo para serem as testemunhas e resolveu-se o problema. Ou pensávamos que
tínhamos resolvido o problema. Porém, tudo continuava na mesma. É que o
casamento no registo não tinha valor, porque não tinha a bênção de Deus… Oh
céus! Tanto trabalho para ficar tudo na mesma. E o problema continuava com o
dilema a minar a nossa vida. Que inferno!
E aí
chegou um dia em que me chateei com aquela situação toda e decidi que íamos
casar pela igreja, fazer essa fantochada toda e acabar de uma vez com esse
problema. Bom, na verdade, não estava mesmo nos nossos planos, nem nos dele nem
nos meus, andar às ordens dos outros. Mas fazer o quê?
Decidi
que não queria ter duas datas de casamento, por isso marcámos para a mesma
data, exatamente um ano depois. Quem nos iria casar? Fazia sentido que fosse o
tio, já que tanto queria que nos casássemos e lá fui eu dar a notícia e dizer à
mãezinha e ao tio que se preparassem para aquela data. E agora começa outra
fantochada, a fantochada completa. Para se resolver um problema cria-se outro e
a bola de neve não pára.
Depois
de ter falado com o tio, baixinho e gordinho, tal qual um barril, com ar sério,
informou que teríamos que frequentar o curso. Qual curso, perguntei, incrédula.
O curso, respondeu ele, o curso para todos os que se casam. Oh, essa não… eu ia
ter que me sujeitar a um curso para fazer um casamento em que já estava
casada!? E ele?… Eu sabia que ia começar a rir e nem resposta me daria. Ia
pensar que estava a brincar. O pior é que não… e quando cheguei a casa e lhe
contei como tinha sido a conversa com o tio, claro, deu umas boas risadas,
dizendo que podia esquecer o assunto. Era sabido. Então o que fazemos,
perguntei. Ele que faça o casamento sem o curso ou então não há casamento,
respondeu. Eu sabia.
E lá
fui, uns dias depois, para nova negociação. Não quer frequentar o curso? Era o
que faltava! Todos têm que fazer. Não posso abrir nenhuma excepção, muito menos
para vocês, dizia ele todo incomodado. Até parecia que não conhecia o sobrinho.
Silêncio…
e ficámos calados, sem saber o que dizer. Todo agitado, afastou-se, indo-se
enfiar no escritório. A minha sogra andava na cozinha de um lado para o outro,
ouvindo a conversa, mas sem se intrometer. Aproximei-me dela e disse-lhe que
fizesse o favor de falar com ele para ponderar o assunto, caso contrário, não
haveria casamento e depois… depois, paciência.
Fui à
minha vida. Quando o outro chegou, contei-lhe a história. Encolheu os ombros e
desligou-se do assunto. E assim ficámos. No dia seguinte, a minha sogra
mandou-me chamar e lá fui eu, depois de sair do trabalho. A negociação estava
feita. Ela tinha conseguido convencer o irmão a desistir do curso. Que alívio!
Estava feito… pensava eu. Mas aí, veio uma outra surpresa. Então, vão-se
confessar uns dias antes, para se prepararem, dizia ele. Confessar… para se
prepararem…?! Eu até posso ir, respondi. Ele… duvido. Rapidamente, deu meia
volta e com um ar da maior estupefacção e os olhos arregalados, retorquiu: O
quê? Ele nã se vai confessar? Eu acho que não, respondi, mas vou dar o recado.
Pois vai, respondeu ele, porque se ele nã se for confessar, nã posso fazer o
casamento. Nã posso fazer uma coisa dessas!... E espumava por todos os lados.
Tudo
aquilo era uma imensa perda de tempo, um desgaste de energias perfeitamente inútil
e exigia de mim uma paciência sem limites. E o pior é que ele se recusava a ir
falar com o próprio tio. Eu que fosse, que ele não queria saber disso.
Pronto,
mais uma vez, lá fui levar a decisão. Ele continuava a espumar, a pedir perdão
a Deus nosso Senhor pelo que estava a fazer e depois de alguns minutos lá
acabava por me participar a última decisão: então temos só a missa. Finalmente.
Agora eu achava que tínhamos chegado a um acordo final. A história era sempre a
mesma: ou aceitavam ou não havia casamento. Querem o casamento ou não? O
sobrinho do senhor prior não é casado por igreja… ficam mal vistos? Então há
que ceder.
Dei a
novidade ao sobrinho do senhor padre, dizendo-lhe que o tio tinha finalmente
concordado em fazer só a missa. Mas ele logo me interpelou, replicando com o
maior espanto “missa”? Para que é preciso missa? E uma cara feia que eu sei
lá!…
Hum?
Agora até eu não entendia. Missa… é preciso missa. Uma cerimónia de casamento é
feita durante o ato litúrgico. Diferente disto nunca tinha visto. Mas também
era certo que não assistia a casamentos. E continuava: não é preciso missa. Ele
que faça “só” o casamento e chega. Não é preciso mais nada. É assim tão
complicado de perceber?
De
certa forma este despique tinha-se tornado interessante. Tinha uma certa piada
perceber os interesses e como são geridos. O que é mais importante e o que
afinal pode mesmo ser descartado. Duas forças em jogo e eu no meio. Tudo isto
apenas para ter direito aos almoços de domingo. Eu só queria que nos dessem descanso.
E lá
fui eu informar da drástica decisão. Eu sabia que ia doer, que ia custar
horrores. Eles nem sabiam no que se tinham metido por causas das exigências.
O tio
ficou tão furioso, mas tão furioso! Ele concretizaria aquele casamento, sim,
mas a verdade é que tinha que abdicar da sua posição e pouco a pouco se viu
obrigado a perder terreno, todo o terreno. Ele gritou, xingou, praguejou;
chamou a irmã, como que a pedir socorro para que o tirasse daquela alhada; ele
esbracejava, falava com Deus, ora culpando-se, ora pedindo perdão, mas ele
sabia que não tinha saída. Ainda assim, não pensei que acabasse cedendo. Fui-me
embora sem decisão nenhuma, porque ele não tinha condições de decidir nada.
Parecia que o inferno tinha desabado sobre ele, de tão atormentado que estava.
Fui-me
embora. Tinha feito o que me era possível. Não havia mais nada que pudesse
fazer. Durante uns dias esquecemos aquele assunto, até que um dia, lá fui
novamente ao escritório do tio padre. Foi rápido, preciso e conciso. “Diz ao
António que faço só a cerimónia do casamento”. Eu nem queria acreditar. Aquilo
deve ter doído. Mas ele estava calmo, muito calmo para o meu gosto, dada a
situação. Na verdade, eles tiveram que aceitar a troca de um casamento em cheio
na igreja matriz, para uma simples bênção na capela mais pequena e perdida dos
confins da ilha, onde não vivia quase ninguém. É triste. Mas a história não
acaba aqui.
Estávamos
apenas à espera que o tio padre vestisse todas as suas indumentárias e enquanto
o fazia, sempre blasfemando e praguejando, Tony e Leonor, nossos padrinhos, não
faziam outra coisa senão rir baixinho, pela calada, aproveitando todas as
coisas para gozarem com a situação, o tio padre erguia as mãos aos céus,
rezando e pedindo por si mesmo, pela coisa horrenda que achava que estava
fazendo. Praguejava a todo o instante, perante a nossa máxima indiferença.
Rezava e praguejava, na sua bela pronúncia açoriana, bem cerrada. Dava dó, mas
fazer o quê?
Quando
tudo parecia ter entrado na normalidade e a cerimónia dava início, comecei a
sentir uma sensação de alívio por aquilo tudo estar a terminar e se acabar de
vez com o problema dos almoços dos domingos. Mas aquela sensação de alívio
durou muito pouco, porque chegou a altura das alianças e nós não tínhamos alianças.
Nem pensámos nisso. E quando o tio padre pediu as alianças, o meu
excelentíssimo marido ficou impávido e sereno enquanto eu pensava “agora é que
está tudo lixado”. Discretamente, dei-lhe uma cotovelada, que respondeu com um
ainda mais discreto movimento de cabeça, que significava “não quero saber”. E
enquanto pensava numa saída, lembrei-me que tinha no meu dedo anelar direito
uma aliança que usava sempre. Era a aliança da minha falecida mãe e a minha
irmã usava a do meu pai que, entretanto, voltara a casar-se. Rapidamente, tirei
a aliança, passando-a para as mãos dele. O irmão tirou a aliança dele e deu-me.
E enquanto fazíamos esta operação, o tio padre, com os óculos redondinhos na
ponta do nariz e a cabeça elevada, como se estivesse a farejar, interrompia a
cerimónia para perguntar “Vocês nã têm as alianças?” E como não houvesse
resposta ele continuava indagando, na esperança de estar enganado e ver surgir
umas alianças que não podiam aparecer, simplesmente porque não existiam. E à
medida que se apercebia da realidade, reparando na troca que fazíamos, tirando
alianças e passando de mãos, ficava inerte, sem reacção, olhando para um,
depois para outro, pensando sabe-se lá em quê, completamente perdido.
Naquele
momento achei que ele ia interromper o casamento e acabar com tudo. Mais uma
vez se virou para trás, depois de lado, praguejando, gritando, balbuciando,
dizendo coisas que não tínhamos tempo de entender, enquanto manifestava todo o
seu repúdio e um imenso arrependimento por aquilo que estava a fazer. Com a
Bíblia ou o Missal nas mãos, quase chorava de raiva, de desprezo, de sei lá o
quê… enquanto Tony, Leonor, o irmão e a cunhada do noivo, tentavam esconder os
rostos, disfarçando o quanto podiam, para não piorar a situação mais do que já
estava.
E lá
ficámos com as alianças nas mãos para a cerimónia continuar e poder chegar ao
fim, depois do tio padre se recompor e se acalmar o quanto lhe era possível.
Esta é a história de um casamento que não foi muito feliz. Por
isso, passados alguns anos, divorciaram-se e assim foram felizes para sempre.