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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A Fátima - 4


"Eu sou uma pessoa muito evoluída!..." - dizia a Fátima no seu melhor, isto é, com toda a sua ignóbil desenvoltura, certa da sua pessoa e das suas convicções, perante todo o nosso espanto.

 

 O Zé contava uma anedota e à volta dele estava eu, sentada à secretária, posto que ele estava sentado numa cadeira junto à minha secretária, a que vieram juntar-se o meu chefe, RM e o chefe dela, FP. A Fátima tinha ficado sentada no lugar dela, do outro lado da sala, e como tinha trauma de anedotas, fez cara feia e dali não saiu, mostrando-se aparentemente desinteressada.

 

Nunca percebemos porque razão ela reagia mal às anedotas. Tinha um amigo que todas as tardes passava por lá para a ver e tinha por hábito contar uma anedota, o que muito me encantava, por ser uma forma de quebrar o stress de tantas horas seguidas de trabalho e animar um pouco o espírito. Mas para ele contar, a Fátima exigia sempre que não fosse uma anedota "ordinária", porque ela não gostava. Então, o amigo tinha sempre que ter muito cuidado com o que ia contar, para não ofender os ouvidos da pequena.

 

Naquela tarde era o Zé, que também costumava passar por lá, embora com menos assiduidade. Era só de vez em quando, mas a presença dele era sempre marcada por alguma graça e alguma piada que, verdade seja dita, ele tinha de sobra. Uma boa disposição fora do comum. Grande Zé!

 

“Era uma vez um alentejano”... assim tinha começado a anedota, como começam tantas outras e que a Fátima possivelmente não apanhou desde o início, com a mania de não querer anedotas "ordinárias". E de cada vez que ele se referia ao alentejano, o pressuposto protagonista da anedota, dizia: "então, o homem"... "o homem"... "e o homem"... e à medida que a anedota ia avançando e tomando forma, nós já íamos aumentando o riso, antecipando um final super hilariante, porque tínhamos a certeza de que era esse o seu fim.

 

A Fátima não apanhou o início, mas de repente resolveu que não queria ficar de fora porque, se os outros já se estavam a rir, porque não haveria de rir também? Contrafeita ou não, lá se levantou para se juntar ao grupo. O facto é que, de cada vez que o Zé falava "o homem...", a Fátima interrompia, perguntando com um certo receio e uma ingenuamente completamente desastrosa, naquela voz grossa e meio embargada, que lhe era tão característica: "quem era o homem?", a que o Zé, da primeira vez nem ligou, fazendo apenas uma ligeira pausa para dar continuidade; da segunda vez que ele menciona, no decorrer da anedota "o homem...", lá vem a Fátima novamente a insistir: " mas quem era o homem"(?), porque era tudo o que ela queria saber da anedota.

 

O Zé prolongou a pausa, mas continuou, ignorando a inusitada pergunta, porque não fazia sentido nenhum e nós, quase que já nem precisávamos de ouvir o resto porque, só de ouvi-la interromper para querer saber quem era o homem, já estávamos perdidos de riso, a tentar disfarçar para não nos escangalharmos a rir antes do tempo.

 

E já mesmo na reta final da anedota quando, mais uma vez, o Zé diz: "e o homem"..., a Fátima avança na sua total imbecilidade, com um sorriso mais amarelo do que nunca: "mas quem era o homem?..." E estando mesmo no fim, o Zé pára, olha para ela com os olhos muito arregalados e numa fúria, dá-lhe um grito: "oh porra, sei lá quem era o homem!!!..."

 

Nós, perdidos de rir a bom rir, tanto, que o estômago até me doía. O meu chefe RM perdido de gozo, olhava para mim e falava com os olhos, como só eu entendia. Foi dois em um. A anedota acabou e nós ríamos que nem uns perdidos, sem conseguirmos entender aquelas malogradas intervenções da Fátima que, em vez de ouvir a anedota, só queria saber quem era o homem(?).

 

E como não tivesse achado muita piada - nem podia, porque não esteve com atenção - e percebendo que não conseguia acompanhar os outros, começou a resmungar connosco, dizendo que tínhamos a mania que éramos espertos e que ela era parva, etc. Não raras vezes ela se manifestava desta maneira. Mas ela realmente não era parva. Ela era inteligente, só que vivia num mundo à parte, num mundo só dela e depois tinha dias em que estava mais ausente do que outros. Mas a maior parte do tempo não estava presente.

 

Naquele dia a coisa foi mais longe porque ficou muito irritada. E então disse uma coisa que eu não sei como classificar. Disse que nós achávamos que ela era estúpida e atrasada mental o que, segundo ela, não era nada disso, porque se considerava muito esperta e muito evoluída. Muito evoluída! Até aqui... tudo bem. O meu - nosso - grande espanto foi quando ela proferiu esta frase que, para mim, ficou célebre e não foi por ter vindo dela. Viesse de onde viesse, mas foi dela que veio e é estranho:

 

"Eu sou muito evoluída... eu até já tive uma relação extraconjugal!..."

 

E assim, ficámos todos a saber, o que é realmente ser evoluído!...