Com a morte da minha mãe aprendi a viver. Com a morte do meu pai
aprendi a morrer.
Com a morte da minha mãe aprendi a viver porque assim fui
obrigada. Ou morria também ou aprendia a querer viver. A escolha era minha. E
foi preciso “correr” muito e muito “trabalhar” para de novo renascer. A morte
foi lenta, dura, dolorosa, penosa e angustiante, tanto para ela, como para quem
ao seu redor estava. A revolta completa. A imoralidade sem dó nem piedade. Um
estrago completo nas nossas vidas.
As células cancerígenas são imortais. Elas resistem,
persistem e ficam vencendo e matando, ficando, ficando, até não terem mais com
que se debater, até não terem mais o que matar. Vitoriosas na destruição,
propagam-se na escuridão, queimando o corpo, definhando o cérebro,
inviabilizando o direito à vida e à passagem da luz, que se vai apagando lenta,
lentamente, sem alternativa possível. Nada sobrevive nessa chacina, a não ser o
medo. O medo de ter, o medo de ser. Por isso, nessa morte trágica, tive que aprender
a viver.
Com o meu pai, a morte veio suavemente, sem dor, durante o sono
que o transportou para as margens tranquilas da eternidade. Nos últimos anos da
sua existência, era eu que cuidava de tudo o que dizia respeito à sua saúde.
Era eu que lhe marcava as consultas e supervisionava a rotina médica. Era
impossível contar com a minha madrasta para esse efeito e as minhas irmãs
também não podiam encarregar-se dessa tarefa.
A minha maior preocupação era fazê-lo perceber que não estava
sozinho. Portanto, sempre que se fazia necessário, eu corria para onde ele
estivesse, largando tudo: trabalho, casa, restante família e tudo o que fosse
preciso, para ir ao seu encontro. Eu não queria que ele sofresse, para além do
sofrimento físico que ninguém podia evitar.
Quando a minha mãe morreu, eu era uma criança. Com dez anos de
idade, que sabia eu da vida? Nem da vida nem da morte. Portanto, o que poderia
eu fazer por ela? Com o meu pai a história era outra. Ele tinha vivido uma vida
longa, apesar de ser cardíaco. E tinha a capacidade de aceitar a morte, não sem
um certo receio e muita saudade. Mas era nesse ponto que eu estava junto com
ele. Eram esses receios, essas angústias, que eu tentava desvanecer, para lhe
poupar um sofrimento maior, porque era a única coisa que podia fazer. E conversávamos
longas horas, sobre os mistérios da vida e da morte e porque ele tinha
necessidade de repassar os momentos bons que lhe tinham preenchido a vida no
seu melhor. Eu limitava-me a ficar sentada a ouvi-lo, muitas vezes vendo-o com
os olhos humedecidos, lacrimejados pela emoção do que se permitia reviver. Mas
eu percebia que ele era feliz enquanto fazia aquele trabalho de recordação. A
sua alma tinha essa necessidade. Ele precisava lembrar de viva voz, vivenciar,
partilhar com a sua filha mais velha, os momentos felizes que a vida lhe tinha
proporcionado. E essa era a minha missão: ouvi-lo, dar-lhe toda a atenção,
dispor do tempo que me era possível, para me focar apenas nele. Depois, tentar
responder às suas dúvidas, aos porquês que nem sempre conseguia decifrar
sozinho, não lhe tirando nunca a liberdade de discernir por si mesmo. Ele
precisava da minha humilde ajuda para esse efeito, caso contrário, o seu fim
teria sido um vazio completamente sem sentido.
Eu sabia o quanto ele precisava da minha presença, das minhas
palavras, da minha compreensão, da minha paciência, etc, etc, etc… e tudo isso
para mim não foi nada difícil, pelo contrário, foi um enorme aprendizado, uma
das mais belas lições da minha vida. A tranquilidade que lhe passava através
das palavras que ia buscar não sei bem onde, mas que vinham, milagrosamente,
como uma chuva abençoada, amenizavam a sua e minha dor. Tudo se tornava mais
fácil, mais leve, quase aceitável. A morte como uma passagem natural para outra
dimensão, ainda que desconhecida e que é a única certeza que temos, mas que
todos nos recusamos a aceitar. E assim foi. Na sua infinita misericórdia, Deus
ouvira as minhas preces e concedera-lhe a enorme bênção de partir em silêncio,
na maior paz.
Agora, eu podia também estar em paz, porque não havia mais
sofrimento. Por isso, durante as cerimónias religiosas que se seguiram, não
chorei ou se chorei, foram lágrimas de felicidade, de agradecimento, porque
estava verdadeiramente agradecida e isso era uma coisa que ninguém podia compreender.
Mas a minha alma sentia-se livre e leve, porque ele tinha partido sem
sofrimento. Foi um dos maiores presentes que a vida alguma vez me deu.
As minhas irmãs, coitadas, desfaziam-se em lágrimas. Eu, sem
culpa, não tinha motivos para chorar. Tinha, sim, motivos para agradecer
infinitamente aos céus, aquela morte santa, que tinha poupado um maior
sofrimento a uma criatura que eu tanto amava. E por isso, só por isso, eu
estava feliz. Eu tinha razões para isso. Sabia que não podia pedir a ninguém
que compreendesse essa minha atitude, que podia parecer completamente
inadequada e despropositada, mas eu estava feliz, sim. Eu tinha tido um
presente absolutamente inestimável. Eu tinha estado ao seu lado durante muitos
meses e tinha sido testemunha, a única e real testemunha dos segredos da sua
alma. Eu tinha estado a seu lado em todas as ocasiões necessárias. Eu tinha
percorrido a seu lado, o caminho da angústia, da aproximação do fantasma da
morte. De mãos dadas, tínhamos ultrapassado os piores momentos, com um sorriso
nos nossos corações e uma serenidade sem igual. Eu tinha sido a companheira de
todas as suas aflições. E a morte viera docemente, como uma carícia, como um
afago, como um derradeiro suspiro de alívio. Que mais poderia eu querer?
E vieram os militares, a guarda de honra, os morteiros e todos
choravam e se condoíam com a partida daquele que tinha sido um amigo e tanto,
um irmão, um camarada, mas acima de tudo um grande ser humano, porque simples e
justo, igual podia haver; melhor, jamais. Meu pai querido, pode não ter sido o
melhor pai do mundo. Mas foi um ser humano verdadeiramente excepcional.
E eu sabia que todos estavam à espera que eu me desfizesse em
lágrimas, em histeria, num desconsolo inevitável, mas não foi isso que
aconteceu. Eu os confundi a todos. Eu sei. Mas não tinha porque mentir. Eu
tinha feito todo um trabalho que me estava destinado e tinha-o feito o melhor
possível, assim também, como ninguém o tinha que saber. Sabiam apenas uma
décima parte e modéstia à parte, muitas vezes, quando me deitava para dormir,
cansada, exausta, ficava admiravelmente surpreendida comigo mesma, como se eu
me tivesse tornado num anjo que Deus enviara para conduzir aquela alma.
Eu sabia que aquela missão era minha e de mais ninguém. Eu tinha sido a
substituta da minha falecida mãe. Eu tinha sido a filha amada, a amiga, a
companheira, tudo o que humanamente era possível ser. Tirei-lhe pesos de cima,
que carregava havia muito, muito tempo, como o facto de achar que, por causa da
vida de militar e outras razões, como o ter-se casado novamente, anos depois de
enviuvar, não tinha estado presente nas nossas vidas como desejaria ter estado.
Desdramatizei todo o seu sentimento de culpa e não eram poucas, fazendo-o
perceber que estávamos todos trilhando o caminho que nos era devido, só isso e
por tudo isso, tínhamos chegado onde chegámos. Estava tudo no sítio certo. Ele
ouvia-me espantado com tanta benevolência da minha parte, com tanta compreensão
e sem julgamentos e eu sentia o alívio que lhe proporcionava. Eu estava
simplesmente a ser sincera, franca, honesta comigo e sobretudo com ele, tal
como ele o merecia, mais do que qualquer outra pessoa.
E tudo isto, porque eu não queria que se repetisse o drama da
morte da minha mãe. Eu queria ser poupada de mais um martírio, porque se assim
não fosse, a morte dele teria sido uma enorme tortura. Havia que compensar esse
desgaste psicológico e emocional de há cinquenta anos atrás, que o tempo não
conseguira apagar de maneira nenhuma e que causara um dano irreversível nas
nossas vidas. Portanto, eu devia isso a mim e a ele.
E assim, aprendi que a morte não tem que ser um drama. Não tem que
ser um castigo, uma punição. Uma coisa feia. Não. Não tem que ser odiada. E
mais uma vez, o amor está na base de tudo, unindo as pontas do princípio ao fim
e do fim ao princípio, para que nada se perca.
E enquanto as cerimónias decorriam, as minhas irmãs mergulhavam
num sofrimento incontrolável. Foi nessa altura que me dei conta da pena que
senti delas, porque era impossível elas partilharem o bem estar que eu sentia.
Estávamos em estados de espírito totalmente opostos e não havia nada a fazer.
Elas não tinham estado lá, enfrentando a morte, desmistificando o medo,
ultrapassando a escuridão. Por isso elas não podiam colher os frutos do
crescimento espiritual desse aprendizado, enquanto eu sentia que o meu espírito
estava com ele num plano muito maior, onde a dor e o medo já não têm forma nem
definição, porque foram transmutados pelo fogo sagrado, que nos conduz ao amor
eterno e incondicional.
E é a isso que se resume a vida: o amor ou a falta dele.
E o amor, que pode vir por interesses os mais variados: dinheiro,
ambição, desejo, vaidade, luxúria, necessidade, mentira, brincadeira, enfim...
também pode vir livre de todas essas facetas ou seja, pode vir limpo, puro,
apenas com a cara do amor e nada mais, porque ele é assim e basta-se. O amor
pode ser genuíno, verdadeiro, autêntico e não tem que vir mascarado nem ser
passageiro, também pode ser para sempre.
A terra precisa dele, o homem precisa muito mais.