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sábado, 28 de novembro de 2015

Sofia - 24


Sofia era uma jovem mimada e às vezes, chata até dizer "chega". Passava a vida a ligar-me para saber se estava em casa, vir a correr ter comigo e ficar, ficar até já não a poder ver nem ouvir. E se não estivesse em casa, havia de arranjar maneira de se encontrar comigo onde quer que fosse. Precisava sempre muito de falar comigo. Era sempre tudo muito importante e só podia ser comigo. Era eu que sabia sempre o que ela havia de fazer e falava comigo sobre todas as coisas da vida dela. Concordava sempre comigo, mas depois... depois, acabava sempre por fazer completamente o contrário e tudo dava sempre errado. Era fatal como o destino.

 

Imensamente desordenada, sem método algum. Era difícil compreender como conseguia segurar o emprego, uma multinacional onde trabalhava há vários anos como gerente e onde era super eficiente. Isso é que me intrigava, porque fora desse contexto, Sofia, com trinta e três anos, que podia ser minha filha, era uma completa desnorteada. 


Mas era linda! Linda de morrer, a danada. Tinha sempre um ar de modelo, capa de revista. Era demais. Adorava ser fotografada porque era muito fotogénica e algumas vezes fomos para sítios especialmente bonitos para a fotografar, o que na verdade era fácil. Era fácil captar o que de melhor tinha: o sorriso, a simpatia, a sedução, a figura bonita e o ar transcendental e ao mesmo tempo enigmático com que posava, tudo junto, traduzia-se num excelente resultado em termos fotográficos.  

 

Era muito simpática, um doce!… Mas uma chata, também. Às vezes muito lamechas, parecia uma gata a pedir carinho, mimo e eu não tinha muita paciência para essa parte. O problema é que ela tinha uma relação péssima com a mãe e para lá de boa com o pai o que, em minha opinião, segundo o que ela me contava, enciumava um pouco a mãe. E a minha missão foi precisamente essa. Restabelecer a ligação dela com a mãe, que tinha ficado perdida algures no tempo. 

 

Quando ela corria para mim, para me colocar alguma questão, pedindo-me ajuda para qualquer situação, porque estava sempre em apuros, se eu não lhe dava razão, depois de me ouvir, respondia rindo “pareces mesmo a minha mãe”, mas quando eu achava que ela estava certa e ficava do lado dela, dizia “tu entendes-me… porque é que a minha mãe não consegue ver as coisas como tu?”

 

Mas eu gostava muito dela, embora, na maior parte do tempo, a achasse uma chata muito grande, porque me cansava demais, não me dando descanso e estava sempre a esquecer-se de que eu não tinha a idade dela.  O namorado, com quem viveu sete anos, um dia cansou-se e deixou-a. Ficou mal, não aceitou a situação e decididamente fui eu que levei com a crise em cima. Não dava um passo que não fosse comigo, fosse para onde fosse. Não me dava trégua. Quando eu pensava que ia ter um tempinho para mim, lá vinha ela com qualquer invenção, invadindo a minha vida e a minha privacidade como um verdadeiro furacão. Tudo fazia para passar o menor tempo possível em casa, sozinha, porque dizia que sentia um enorme vazio pela falta dele. 

 

Então, um dia, sugeri-lhe que fizesse algumas mudanças em casa. Mudando o cenário, talvez fosse mais fácil desligar-se da presença dele. Compreendeu o meu ponto de vista e aceitou, mas com a condição de ser eu a fazer isso, porque ela não sabia que volta dar à questão. Pronto, como é que eu não tinha pensado nesse pormenor?! Mas também, se andávamos sempre juntas para todo o lado: praias, cinemas, restaurantes e outras coisas mais, é claro que tinha que sobrar para mim. 

 

Era verão, um calor desgraçado! Entrámos pela garagem para estacionar o carro e subimos no elevador até ao quarto andar. Na entrada da porta, do lado de fora, estava uma coisa parecida com um sol, em metal. Perguntei-lhe para que era aquilo, respondeu que para dar sorte. Para dar sorte? Só me faltava esta! Mas já me esquecia dessa faceta da Sofia. Ela era ou tinha a mania que era esotérica, toda metida a espiritualista, frequentava e fazia cursos e workshops de tudo o que se possa imaginar, onde gastava uma porrada de massa, mas não faltava a nada dessas coisas. Astrologia, reickys, massagens, palestras, enfim, era um rol das mais variadas fantasias, que nunca mais acabava. Ah, vegetariana, que ela fazia questão de dizer a toda a gente, com um ar de quem era única, uma “ávis” rara. Dizia “eu sou vegetariana” com um certo ar de superioridade, como se realmente fosse única no planeta. Só não dizia que comia salmão, marisco e o que lhe apetecia, porque gostava. Assim como, também, as coisas naturais eram todas muito boas, mas fumava e disso não abdicava, o que não dava com nada. E sobre todos os cursos que fazia, nada do que aprendia era para pôr em prática. Mas tinha feito o curso. Aliás, mais um para a colecção ou para o curriculum da Sofia.

 

E lá estava o sol para dar sorte. Tudo bem, se ela acreditava naquilo, fazer o quê? Cada um acredita no que quer. Abriu a porta, entrei e logo tropecei num tapete que, por pouco, não me fez cair. Mas isso não interessava, o que interessava era o tapete que eu tinha maltratado e que era muito especial. Cuidado com o tapete(!), dizia ela. Perguntei porquê, porque tinha um desenho duma treta qualquer que era sagrado. Fiquei feita parva a olhar para ela, enquanto ria, meia tola, com ar feliz das suas coisas especiais. Olhei uma vez mais para o tapete tão especial, que para mim era um trapilho, nada mais, que nem o desenho se percebia e que atrapalhava grandemente a entrada em casa. OK, era a casa dela. Por mim, saía já dali. 


A seguir, entrámos na cozinha. Uma bela janela carregada de vasos e vasinhos de plantas aromáticas, todas a morrer, porque ela não cuidava delas. E, à parte isso, era uma cozinha normal, desarrumada e muito mal organizada, do meu ponto de vista. Mas era a cozinha dela.

 

Entrámos na sala e era tanta coisa a chamar a minha atenção que eu não sabia para onde olhar primeiro. Um festival de budas e deusas, espanta-espíritos, luas e sóis, velas e cacarecos que nunca mais acabava. Aquilo parecia uma loja esotérica. Incenso por todo o lado e um monte de coisas que não serviam para nada. Mas era a sala dela!

 

No meio da sala tinha um sofá com chaise longue, virado para a parede, como se na frente tivesse uma tv. Acontece que a tv não estava lá. Estava num canto, que mal se dava por ela. No centro da parede, bem em frente ao sofá, tinha uma tela enorme, um borrão em azul e branco. Perguntei-lhe o que era aquilo, respondeu que um quadro que lhe dava muita tranquilidade. Mas aquilo é horrível(!), disse-lhe eu. Olhou para lá e riu, aquele riso simpático, mas de tonta, que nem tem argumentação possível. “Oh, mas gosto dele”, respondeu com um ar lânguido, como se fosse uma deusa ou uma ninfa. “Dá-me paz e tranquilidade…”. “Pois... por isso é que não queres estar em casa, por conta dessa paz e dessa tranquilidade”, respondi-lhe. Continuou a rir e agarrou-se ao meu pescoço, beijando-me no rosto, como tinha o hábito de fazer, o que muito me irritava. É que, em casa, enfim, mas na rua, num centro comercial, num lugar público, aquilo parecia uma exibição de lésbicas e eu afastava-a logo, o que muito a chateava. Mas eu queria lá saber! O que eu não queria era parecer o que não era e perder alguma oportunidade... enfim.

 

Bom, dei uma olhadela em volta e percebi imediatamente o que podia mudar para alterar o panorama. As coisas não eram feias, eram giras, o problema é que era muita tralha. Um exagero! Mas com a Sofia era assim mesmo. Passei a mão na mesa e tinha uma camada de pó que parecia inacreditável. Depois olhei para uma estante e também estava carregada de pó, que devia pesar mais do que os livros que lá estavam. Perguntei-lhe há quanto tempo não limpava a casa e sempre rindo, desculpou-se, dizendo que não tinha tempo para isso. Eu nem queria acreditar no que ouvia. Chateei-a, dizendo-lhe que aquilo era inadmissível e que em nada correspondia à imagem que ela queria passar aos outros de “pura”, “intocável”, que era tudo falso. “Oh, não sejas assim”, respondeu, rindo. Olhei para o tecto e vejo uma enorme teia de aranha num canto, tão grande que me deu medo. Pedi-lhe uma vassoura e foi buscá-la. Quando percebeu que era para matar a aranha, empurrou-me e tirou-me a vassoura da mão para não matar a “pobre da aranha”. Coitada da aranha! Sofia, a vegetariana, não podia matar os animais, nem danificar a natureza, mas deixou o gato fechado em casa, naquele calor sufocante de um verão tórrido, que quase matou o pobre animal, que teve de ser reanimado porque não podia respirar e as plantas, as suas belas plantas nem água viam, estavam todas a morrer de sede. “Ah, não tenho estado em casa”… boa. Muito boa.

 

 

No corredor, a cena era a mesma. Pó, só pó e sujidade por todo o lado. Aí, chateei-me a sério e disse-lhe que ela não precisava de casa para viver. Para viver assim, podia ir para a rua, não precisava de casa nenhuma. Mas ela só ria e quanto mais eu ralhava mais ela ria. Mas o melhor estava para chegar. Tinha uma bela varandinha que ligava dois quartos e fui ver. Olhei para o chão e vi um carreiro de formigas como nunca tinha visto. Aquilo não era um carreiro, era um verdadeiro exército e tranquilamente, lá iam elas. Vi o percurso e percebi que era por conta de um pequeno pires, que estava num extremo da varanda. Então, ingenuamente, retirei o pires, a fim de libertar a varanda daquela praga. Lá vem a Sofia a correr “deixa estar, deixa estar…” não entendi logo, mas entendi depois, quando ela se apressou a trazer um frasco de mel, que verteu sobre o pires, onde acrescentou um pouco ao que já havia. Era para alimentar as formiguinhas e não morrerem de fome!...