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quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Uma pequena distracção - 55


João Bosco Soares da Mota Amaral, Presidente do Governo Regional dos Açores. Tudo estava no começo. Era a RTP nos Açores e Mota Amaral no Governo. E até eu, que me tinha transferido de armas e bagagens para a Delegação da RTP em S. Miguel, Ponta Delgada.

 

Mais ou menos seis meses depois de ter chegado aos Açores conheci aquele que viria a ser o meu marido e pai do meu filho, o António. A empresa abriu concurso para admissão de técnicos nos seus quadros e ele que tinha recém chegado à sua terra natal e andava à procura de emprego, depois de ter passado uns anos em Angola no cumprimento do serviço militar obrigatório, vinha agora concorrer, tendo sido admitido como operador de câmara, o que o fazia andar por todo o lado, na cobertura de tudo o que era notícia, acompanhando os jornalistas em todos os trabalhos televisivos. 

 

Mota Amaral, como Presidente do Governo Regional, andava sempre em viagem e a televisão atrás dele, claro está. Era um indivíduo discreto, reservado, com muita ética profissional e muito seguro de si, o que lhe conferia um certo à vontade e que lhe ficava muito bem, porque sabia estar, como se comportar e penso que agradava a toda a gente, pelo menos como pessoa. Com os jornalistas e operadores da RTP tinha até uma certa familiaridade, pelo muito que conviviam. Era uma constante, como facilmente de compreende. E sempre que havia que ir ao encontro dele e de quem o acompanhava para o efeito, o pessoal identificáva-o por "Joãozinho", sem que nisto houvesse o menor desrespeito pela sua pessoa. Conforme já disse, toda a gente gostava dele.

 

Nesta altura eu e o António já namorávamos e ele ficava uns dias em casa da mãe e outros em minha casa. Andava de cá para lá e de lá para cá, porque era quase ao virar da esquina e assim não se desligava por completo da casa materna, sendo que era bom ficarmos os dois sempre que nos apetecia. Com isto, começou a haver muita coisa espalhada lá por casa, isto é, pela minha casa. Ele foi sempre muito desarrumado, muito desligado de tudo. As coisas ficavam onde calhava e mais nada. Talvez porque tinha a mãe que cuidava de tudo e fazia tudo por ele e pelo irmão e, portanto, nunca foi educado para ser organizado. Veio para minha casa e foi a bagunça completa. Sendo que sou o oposto, as coisas nunca foram fáceis. Aproveitando isso, uma vez mais se desligava da tarefa de arrumar, achando que era a mim que competia fazer o que a mãe fazia. E ainda assim, as coisas continuavam desarrumadas, porque não é possível andar atrás de ninguém a guardar e a arrumar isto e aquilo, uma coisa a seguir à outra, não é de todo possível, nem física nem psicologicamente, é uma canseira terrível e uma enorme frustração.

 

E uma vez mais era dia de ir esperar Mota Amaral que vinha de Lisboa. O dia decorreu normalmente e ao final da tarde, como acontecia muitas vezes naquela altura, o pessoal reunia-se num café para conversar, descontrair, contar umas piadas e dar umas boas risadas. Encontravam-se uns amigos, comiam-se umas cracas, etc... e a piada daquele dia era a respeito da reportagem de Mota Amaral.

 

Da mesma maneira que na RTP tratávamos João Bosco da Mota Amaral, carinhosamente, por "Joãozinho", também ele quando queria brincar, usava os diminuitivos com o pessoal. E naquele dia, uma vez mais, lá foi um jornalista com um operador de câmara. Mota Amaral tinha acabado de chegar ao aeroporto, vindo de Lisboa com o seu pessoal e caminhava por ali fora em direcção à saída, onde o aguardava o motorista. Seguindo-o, o jornalista ia-lhe fazendo perguntas, ao mesmo tempo que o fazia parar aqui, parar mais ali, enquanto o câmara o seguia filmando-o e toda a sua atenção se concentrava na filmagem. As máquinas ainda não eram como agora. Eram mais pesadas, mais antigas, mais difíceis de manejar.

 

Mota Amaral vinha sempre de frente para ele e ele andando da frente para trás para o apanhar sempre de frente. Sempre recuando, recuando, Mota Amaral ia falando com o jornalista. Contudo, não lhe passou despercebido o insólito, isto é, o "pormenor" que não era pequeno e quase inconscientemente não parava de olhar para os pés do operador. António também começou a achar estranho o olhar insistente do Presidente do Governo Regional para o que parecia serem os seus pés, mas longe de imaginar o motivo. Quando a reportagem terminou e os microfones se desligaram e a câmara parou de funcionar, bem mais descontraído, "Joãozinho" Mota Amaral não se conteve e em pleno aeroporto de Ponta Delgada, no meio de todo o pessoal que o acompanhava e de mais uns quantos mirones que sempre gostam de seguir o Presidente e estar de volta a dar fé de tudo, debaixo das luzes da ribalta, "Joãozinho" olha uma vez mais para os pés do operador de câmara que estava na sua frente e rindo diz "eh, Antoninho, que aconteceu?" e dizia isto rindo, rindo, ainda que discretamente, mas rindo com gosto.

 

"Antoninho" olha finalmente e curioso para os seus próprios pés e percebe a piada. Despistado como era, tinha os sapatos desirmanados, ou seja, um par de cada nação, o  que muito divertiu "Joãozinho", pelas boas risadas que deu com gosto.



segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A Carla - 54



Há dias encontrei um colega de trabalho e os dois começámos a tagarelar disto e daquilo, mais precisamente sobre a empresa, os colegas, alguns que já partiram, outros que também se reformaram e por aí adiante. Muitas novidades, outras nem tanto. Foi o caso.

 

De repente ele perguntou-me se me lembrava da Carla, uma colega do Serviço de Manutenção. Claro sim, respondi, a Carla da Drecção Técnica. “Ah, o filho dela é “gay”! E dizia isto com um ar de quem estava convencido de que eu iria ficar chocada ou pelo menos, muito admirada.

 

Convém esclarecer que em relação a este assunto não tenho nada contra, mas também não tenho nada a favor. Cada um é como cada qual. No caso em questão, quando ele me disse isto, não fiquei nada surpreendida. Ao contrário do que ele poderia pensar, para mim aquilo fazia todo o sentido. E porquê?

 

A Carla era uma mulher num sector que até então só tinha homens. Foi portanto, a primeira mulher a trabalhar em electrónica na empresa. Logo de seguida apareceu outra, mas essa outra era completamente diferente. Ambas eram casadas e com filhos. A Carla só tinha um, que por sinal era um rapaz. Lembro-me bem do garoto por lá, desde pequeno. Todos os funcionários, uma vez por outra, tinham necessidade de levar os filhos por não terem com quem ficar. E por tanto, assisti ao crescimento dele, como de muitas outras crianças. Aparentemente era um miúdo perfeitamente normal. Um menino, apenas isso.

 

Mas a Carla não era uma mulher na verdadeira acepção da palavra, isto é, não era uma mulher comum. Ela era diferente. E não era pelo facto de estar num sector de homens. A outra também estava nas mesmas condições e apesar de não me lembrar de alguma vez a ter visto maquilhada ou vestida de maneira mais sexy, nem por isso deixava de ser mulher, de ser feminina. Apenas era uma mulher bastante simples. A Carla não. A Carla era diferente. Não tenho como explicar de maneira lógica porque não era pelo facto, por exemplo, de usar o cabelo curto. Durante muitos anos usei o cabelo bem curto e as minhas amigas ficavam surpreendidas dizendo que quanto mais curto eu usava o cabelo mais feminina ficava. Portanto, não era por aí. Também não era o facto de nunca a ter visto de vestidos ou de saias. Usava sempre calças, mas quantas mulheres bem femininas só usam calças por se acharem mais sexys? A Carla, evidentemente, não se pintava, não se enfeitava, era estrictamente básica. Mas a outra colega também. No entanto, olhava-se para ambas e via-se a diferença. Uma era mulher sem margem para dúvidas, já a Carla não. Ela parecia sempre mais homem que mulher. Aliás, ela nunca parecia mulher. Até a voz dela, apesar de ser bastante suave e até meiga, não estava colocada na posição certa.

 

Portanto, não era possível dizer que era por isto ou por aquilo, mas qualquer pessoa olhava e no todo, via uma mulher diferente, apesar das formas avantajadas, apesar de tudo. Isto é tanto verdade que na distribuição dos trabalhos havia sempre o cuidado de, olhando a escala de quem estava de serviço, dependendo do trabalho em questão ser ou não adequado a uma mulher e se fosse o caso, e estivesse na vez da colega, a Leonor, o trabalho era imediatamente encaminhado para outro colega, um homem. Na vez da Carla, ninguém pensaria em dar o trabalho a outra pessoa. Ela bastava-se, não precisava de ser poupada à tarefa, qualquer que fosse. Era casada com um indivíduo bastante mais velho, bem parecido e tinha um colega também bastante mais velho que andava sempre a tentar seduzi-la. E em relação a isso ficou sempre a minha dúvida, ou ela não percebia ou fazia que não entendia.  Ela era uma mulher mas, insisto, não era uma mulher comum. O lado masculino nela era muito forte, muito acentuado.

 

E assim, quando o colega com quem eu conversava me contou que o filho dela era “gay”, usava até as unhas pintadas, etc… e havia gozação porque o preconceito sempre há-de existir, não fiquei nem um pouco surpreendida. Fazia todo o sentido. Aquilo era uma coisa genética e simplesmente tinha passado para o garoto. Nada a fazer. Compreendi perfeitamente que não se pode ir contra a própria natureza. As coisas são como são.


Um casal perfeito - 53



O senhor Carlos e a D. Leonor moram numa torre na Praceta contígua à minha. A D. Leonor foi-me apresentada por uma grande amiga, sua vizinha, de quem era também muito amiga e que, infelizmente, já não está entre nós. Sempre os conheci já com bastante idade, mas agora estão mesmo velhotes. Têm uma loja de roupas de homem e senhora muito próxima de casa e a vida deles é da loja para a casa e da casa para a loja. Às vezes, ao domingo, ele pegava no carro e lá iam dar uma voltinha e era tudo.

 

Nunca tive contacto com ele mas com ela sim. De vez em quando cruzávamo-nos na rua e cumprimentávamo-nos, sendo que me falava com muito agrado, muita simpatia, muita educação, mas sobretudo com muito carinho. E algumas vezes desabafava comigo situações da sua vida familiar. Foi ela que cuidou dos pais e dos sogros até ao fim das suas vidas e falava-me disso com algum sofrimento, mas sempre com um imenso respeito por todos eles, nunca demonstrando aborrecimento pelo cansaço ou sobrecarga que isso lhe tenha causado, o que seria normal. Era uma senhora impecável, sem nada a apontar. E comigo, era de um carinho tão grande, que dava gosto cumprimentá-la. Sempre tinha um sorriso bonito - porque ela era bonita -, nada forçado, com que terminava a conversa e falava-me mesmo com muita meiguice. Falava do marido com uma imensa ternura e dos vizinhos com toda a amabilidade. Era uma pessoa que demonstrava um grande equilíbrio emocional e sempre me pareceu bem adaptada à vida com uma resistência incrível. O marido muito cedo montou o negócio da loja, que por sinal até tem o nome dela e disso viveram sempre.

 

Nunca tiveram filhos. Viviam um para o outro. Como já disse, ela cuidou dos pais e dos sogros até ao fim, até que ficaram sozinhos, agora mais tranquilos, mais sossegados e a vida deles era muito pacata, muito tranquila. Muitas vezes, da minha varanda eu a via à janela, espreitando. Acenava-lhe e ela fazia-me adeus, muito contente. Era uma senhora muito agradável e até doce.

 

Mas tudo isto parece que faz parte de outra vida. É que as coisas mudaram. E mudaram drasticamente. O senhor Carlos continua a ser o mesmo. Alto, magro, velhote como sempre, mas direito que nem um fuso, sempre com seu charuto na mão e a fumaça no ar, nele nada mudou. Pelo menos aparentemente. Já ela… não é mais a mesma, com grande pena minha.

 

De longe em longe ainda a vejo à janela, por entre os vidros e as cortinas corridas de lado a lado para que ninguém possa ver o que está para lá. Mas há pessoas que são assim. As janelas não se podem abrir para os outros não “espreitarem”(!). Quanto à D. Leonor, a questão é que comecei a perceber que já não me falava como dantes. Ela até ficava contente quando me via e a partir de certa altura começou a ignorar-me, a esconder-se ainda mais. Lá teria os seus motivos, mas não dei especial importância. Talvez problemas de visão, talvez.

 

Entretanto, precisei de um tecido fino para acrescentar um forro de um vestido e para não ter que ir mais longe, fui até à loja do senhor Carlos. Normalmente era ela que estava ao balcão e ele ficava cá fora a apanhar ar e a dar as suas fumaças de cachimbo, com ar de patrão. Mas como já disse, tudo mudou. E como!

 

Entrei e ao balcão estava agora ele, o “patrão”. Estranhei, mas ainda assim, não dei especial importância. Mas, de repente, vejo a D. Leonor sentada num banco, num canto da loja junto à parede, olhando através da grande montra cheia de roupas completamente ultrapassadas. A posição dela e o ar distante e frio foram iguais desde que entrei até que saí. Cheguei, cumprimentei-os, disse o que queria, que por acaso não consegui e tive que ir a outro lado, mas o que importa é que foi ele que me atendeu, sempre senhor do seu nariz, com a sua postura de costume, como se nada estivesse a acontecer. A D. Leonor nada disse, não se moveu, não saiu da apatia em em que estava, não se desligou da ausência completa que a absorvia e na qual estava mergulhada, sem a menor vontade de regressar à realidade, ao aqui e agora. Estava longe, longe, completamente perdida no infinito. E foi assim que os deixei.

 

Esta cena incomodou-me demais. Saí de lá arrasada com o que tinha acabado de testemunhar. A D. Leonor estava numa completa solidão, ignorada por si mesma, mas também pelo marido que não foi capaz de pronunciar uma só palavra sobre o estado da mulher, sabendo que nós nos falávamos tão bem. O que se passaria com a senhora? Aquilo não era uma briga de casal. Fui-me embora a pensar naquilo e a ficha caiu. Aquilo tinha um nome: Alzheimer! Só podia.

 

Passaram-se uns dias e novamente precisei de linha preta que tinha acabado. Como não me apetecia ir mais longe, decidi uma vez mais ir à loja do senhor Carlos. E assim também podia ser que conseguisse saber mais alguma coisa da coitada da D. Leonor, que me estava a incomodar muito.

 

Aproximei-me da loja e desta vez ela estava à porta. E uma vez mais ele ao balcão. A situação costumava ser inversa. Não que eu fosse lá muitas vezes, mas quando passava ali via sempre ela lá dentro e ele à porta a fumar. Para eu poder entrar ela teve que se desviar um pouco, o que o fez sem nada pronunciar. Todavia, o olhar que me lançou foi um olhar feroz, como se a culpa de ela estar assim fosse minha. Claro que percebi que o problema não era esse. O problema era exclusivamente dela. Entrei e ela foi direita para o seu lugar, o canto da sala, e mais uma vez ficou a olhar para o exterior, aparentemente indiferente a tudo e todos.

 

O senhor Carlos atendeu-me e eu queria ter a coragem ou o atrevimento de perguntar por ela, mas foi como se ele me tivesse lido o pensamento e sem mais nem menos começou a falar. E dizia que a mulher não estava bem. Que toda a vida tinha sido uma companheira dedicada. Tratava da casa, cozinhava, tratava da roupa, enfim, fazia tudo em casa e ainda estava o dia todo na loja e agora não fazia nada, o que muito atrapalhava a vida dele. Já tinha pensado em ir para um lar com ela, mas achava que isso era “morrer”. Gostava de estar cá fora e fazer o que queria e a ideia de um lar não lhe agradava em nada. E continuava a queixar-se de ela agora não querer fazer nada. Estava a ser medicada para a “doença” que ele recusava admitir, mas a medicação não adiantava muito. Claro que a doença era Alzheimer e não era preciso dizer nada. Mas o facto de ele não o admitir era bastante sintomático e relevante.

 

E enquanto ele falava eu olhava discretamente para ela, lendo-lhe os pensamentos. O problema da D. Leonor era apenas o problema de um casamento “perfeito” de toda uma vida. Tinha uma óptima casa. Tinha tido uma vida de certa forma tranquila. Mas estava na ponta final e a tomada de consciência fazia-se presente, dizendo-lhe que tinha feito uma travessia inútil ou quase inútil. Que não tinha vivido a vida que queria ter vivido. Que tinha feito tudo em função dos outros e não tinha tirado partido de nada para si mesma. Uma boa casa, para quê, se nem filhos tinha? A loja onde toda a vida tinha sido empregada do marido, o “patrão”. Uma vida de trabalho, dedicada aos outros, onde ela própria se tinha anulado por completo. E só agora ela via isso e como se arrependia! Tarde de mais. Estava velha e cansada. As rugas tinham tomado conta de todo o seu rosto e de todo o seu corpo. No olhar, era visível a revolta da sua alma, a raiva contida e o desprezo por tudo o que a rodeava. Nada mais lhe interessava. Era apenas uma pesada carga ao cima da terra. Como tinha sido tão estúpida consigo mesma? Como se tinha deixado levar até àquele ponto? Tudo tinha passado e não restava nada. Agora não havia mais volta a dar e toda a sua vida tinha sido um vazio e uma inutilidade tremenda, pois tudo ficara por viver.

 

Era isso tudo que passava na cabeça dela. É claro que isso mexia com ela de forma doentia e o “Alzheimer” tinha tomado conta dela. E agora, mais do nunca, chegara a sua vez de ser cuidada, mimada, de ter um pouco de atenção e compreensão da parte de quem mais o devia, o marido, o “patrão”.

 

E enquanto eu tirava o dinheiro da carteira para lhe pagar, ele continuava com as suas queixas do que ela já não fazia, etc, etc, etc… coitado dele que agora tinha que fazer tudo sozinho, etc… etc… etc…, mas o que mais me impressionou e me deixou completamente perplexa e sem palavras foi quando ele disse que é claro que ele sabia muito bem como aquilo tudo lhe passava em dois tempos – e fiquei curiosa -, com dois fortes estalos na cara e ela ficava boa de vez(!?)…



Cenas da vida conjugal - 52



Meu marido nunca gostou de se levantar cedo. Por sorte tinha um trabalho que lhe permitia escolher o horário que lhe conviesse e por isso estava quase sempre à noite, o que fazia com que pudesse dormir até bem tarde. Um horário assim significava entrar às quatro horas da tarde e terminar mais ou menos à meia-noite, dependendo do alinhamento da emissão. Além disso, independentemente da hora a que chegava a casa, ia direito para o computador, sendo que a hora a que se deitava entrava pela noite dentro. Já eu não podia fazer o mesmo porque, como a maioria dos trabalhadores, o meu horário era de dia e sempre o mesmo, manhã e tarde.

 

Isto era bastante complicado de gerir, não para ele que só fazia aquilo que queria, mas para mim que tinha que levantar o meu filho à mesma hora, sair comigo, levá-lo à ama e mais tarde à escola e por aí adiante. No regresso a cena repetia-se. Eu ia buscá-lo e regressávamos os dois a casa. O pai nunca, ou raramente, estava connosco. E quando assim não era, a verdade é que era ainda pior porque, se ele podia dar-se ao luxo de entrar atrasado, já eu não podia, pelo menos em teoria. Anos a fio, dava-me uma grande sobrecarga sob todos os aspectos, porque nunca andávamos a par e passo.

 

Mas aí, chegou o dia em que começou a sentir uma necessidade de se habituar a levantar mais cedo e até fazer uma tentativa de escolher um horário de dia e aproveitar o tempo de maneira diferente. Isto era uma verdadeira fantasia, porque o que ele fazia fora da empresa, fosse a que horas fosse, era sempre o mesmo: trabalhar. Esse era o mundo dele. Não estarei errada se pensar que nunca na vida preparou uma refeição, nem que fosse só para ele, muito menos para a família. Nem me lembro de alguma vez ter ido ao supermercado para fazer compras para casa… era assim.

 

Mas realmente dizia que queria “mudar de vida”. Como então? Começar a levantar-se à mesma hora que eu e o filho. Era isso que ele queria, ou dizia que queria, mas todos os dias acontecia o mesmo. Nós levantávamo-nos, despachávamo-nos e ele lá, entre vale de lençóis, dormindo sem fazer o menor esforço para se levantar. Em todo o caso, todos os dias se lamentava, dizendo que queria tanto levantar-se cedo(!)… queria, mas não se tinha levantado. E todos os dias era a mesma cena, lamentações por causa de não se ter levantado cedo. Até que se lembrou que eu tinha que chamá-lo, isto é, acordá-lo. Era isso que era preciso. A partir daí a minha missão, além do que já tinha para fazer, era ser o despertador dele. A mim ninguém me chamava, mas tudo bem. Estava combinado, eu passaria a acordá-lo todas as manhãs. Se era essa a solução para resolver o problema de se levantar de manhã, como parecia tanto querer, porque não? Acordá-lo-ia conforme seu pedido.

 

E começou a minha tarefa de chamá-lo todos os dias. Despachava-me a mim e ao filho e já na hora de saída ou enquanto tomávamos o pequeno almoço, lá ia eu chamá-lo. E embora eu estivesse simplesmente a ir ao encontro de um pedido dele, era difícil, porque ele não reagia nada bem e era um constrangimento e tanto. Uma grande chatice. Mas nada que não fosse previsível. E todas as manhãs tínhamos esta saga. Se ao menos resultasse, enfim, mais sacrifício menos sacrifício... o pior é que não resultava. Balbuciava, virava-se para o outro lado e ficava. Levantar-se era exactamente o que não fazia. E a cena repetia-se todos os dias, o que me deixava terrivelmente frustrada, saindo de casa já aborrecida.

 

Mas as coisas conseguiram piorar. Durante o dia, quando nos encontrávamos no trabalho e ele se confrontava com o facto de continuar a não se levantar e a entrar tarde, teve outra ideia magnífica. A culpa era minha(!?) Era minha porque não fazia muito esforço para o acordar, isto é, tinha que ser mais insistente, mais firme, porque ele queria mesmo levantar-se de manhã. Sorte malvada! Só deus sabe o que me custava toda aquela situação a somar a todas as outras que não vêm ao caso e ainda assim, claro, a culpa era minha. Até porque a culpa era sempre minha, fosse do que fosse, nem podia ser de mais ninguém.

 

Mais empenho, mais vezes a chamá-lo, a dizer-lhe que era ele quem tinha pedido, se é que se tinha esquecido disso, enfim, uma verdadeira luta que se repetia diariamente, sem solução aparente. E a cada vez que o chamava ele respondia que já ia, que já tinha ouvido, mas continuava na cama. O meu dia começava sempre com uma significativa carga negativa. E as desculpas iam sempre no sentido de me fazer sentir incompetente e culpada. Pois claro. Começou a desculpar-se, dizendo que nem me tinha ouvido  chamá-lo, que se tinha respondido era inconscientemente, que eu não queria saber, não o ajudava… etc… etc.

 

Até ao dia em que me cansei e decidi pôr ponto final. E quando eu decido uma coisa não há quem me demova. Está decidido, está decidido. Não sei se é bom ou mau, mas é assim, desde que me conheço. Ele sabia perfeitamente que eu o chamava e sabia o esforço que eu fazia para ele se levantar. Se não se levantava, decididamente, era porque não queria e agora eu não estava mais disposta a continuar a deixá-lo brincar comigo daquela maneira. Ele sabia que estava a mentir e que eu sabia disso. Estava a fazer de mim parva. Então, eu só tinha que fazer o jogo dele, mais nada. E pensei, se ele não está disposto a reconhecer que o problema é dele e se joga para cima de mim, indeterminadamente, que não o chamo, que não ouve, etc…, sabendo perfeitamente que isso não é verdade, então vamos jogar os dois e vamos ver quem ganha.

 

E a partir daí deixei, simplesmente, de me dar ao trabalho de sequer o chamar ou acordar. Fim de capítulo. Se quisesse que fosse à luta. De qualquer maneira ele já fazia questão de me atirar à cara que era eu que não o acordava, pois era isso que eu iria fazer. Eu não lhe daria mais o trabalho de me mentir descaradamente. E pronto, acabou-se a saga. E agora era ele que vinha ter comigo dizendo que não o tinha chamado. De facto não o tinha chamado. Ele tinha toda a razão. Mas isso eu não lhe dizia. Tinha chegado a minha vez de “fingir”. E perante toda a indignação dele em relação ao facto de o não ter chamado, reagi como de costume, dizendo que o tinha acordado, sim, como todos os dias o fazia e mais uma vez ele tinha ignorado, o que era falso porque, na verdade, eu não o tinha chamado. Primeiro ficou na dúvida, depois talvez até tenha acreditado, tendo em conta tudo o que estava para trás.

 

No segundo dia voltou a questionar-me e tranquilamente voltei a dizer-lhe que o tinha acordado como todos os dias e que já estava habituada à reacção dele e portanto já não tinha nada para dizer. Nesse dia a dúvida ficou. E no terceiro dia a cena repetiu-se, voltei e mentir, o que me deu um enorme gozo, e mais calma do que nunca, encolhi os ombros, respondendo simplesmente que era o costume, sem mais reacção da parte dele. 

 

A ficha tinha caído. Ele agora sabia que eu estava a mentir e era essa a minha intenção. E como não estava em posição de exigir nada porque sabia que durante todo o tempo tinha estado a "brincar" com a minha paciência, calou-se de vez e o assunto acabou, o que já não era sem tempo.

 

Amor com amor se paga e "para grandes males, grandes remédios”!...

 


segunda-feira, 5 de agosto de 2019

O carro da Lúcia - 51


A Lúcia era minha colega, minha amiga e uma parceira incrível para todo o tipo de coisas, porque sempre nos punha a rir, sobretudo quando menos inesperado, porque tinha um sentido de humor invejável que a fazia estar sempre bem, contagiando todos. Conseguia tirar partido de tudo, até quando a coisa era séria e feia. Quando parecia que o drama estava instalado, a Lúcia largava aquelas gargalhadas fortes e desconcertantes que faziam o milagre de transformar o drama da vida numa verdadeira festa ou quase.

 

Um dia a Lúcia comprou um carro novinho em folha - zero quilómetros. Estava feliz da vida. O dela já estava estava velhote, com bastantes anos, de modo que depois de muito ver e de muito pensar, aconselhada por um primo entendido na matéria, decidiu-se por um Honda Jazz, na altura bastante publicitado.

 

Dava gosto ver a felicidade dela, o prazer e a satisfação que aquele carro lhe proporcionava. Já andava há tanto tempo para concretizar aquela necessidade, filha única, a mãe decidiu dar-lhe uma ajudinha e o carro novo lá saiu. E agora queria que todas as amigas e colegas vissem e experimentassem o seu Honda, mais precisamente Honda Jazz. Já tinha levado as primas e seus respectivos filhos a passear no carro novo e passava a vida a convidar toda a gente para experimentarem o seu Honda novinho em folha, como ela fazia sempre questão de mencionar.

 

E um dia chegou a minha vez. Num fim-de-semana combinámos um passeio e lá fomos nós. Ela queria que eu conduzisse mas eu recusei-me. Gosto muito de conduzir mas é no meu carro, assim como também não me agrada que os outros conduzam o meu. Carro gosta e habitua-se a ser conduzido pelo seu dono. E assim, lá fui conduzida pela Lúcia, cuja felicidade era bem visível. Eu estava contente por ela, pois era um gozo muito bem merecido.

 

Fomos pela marginal fora, passando por todas as praias, apreciando o bom tempo, o sol, o calor, a luz do início do outono, conversando disto e daquilo, mas volta e meia a conversa era o seu rico Honda. E ela achava o carro tão bom que, estando eu na iminência de ter que trocar de carro, queria convencer-me a comprar um Honda.

 

Bom, em primeiro lugar, Honda não é propriamente a minha marca de eleição. É assim, cada um tem as suas manias e eu tenho as minhas. Mas Honda não. Além disso, durante os quilómetros que já tínhamos rodado, eu achava que o carro não era propriamente grande coisa. Primeiramente, pensei que era da condutora, mas com o andamento comecei a notar que o carro não desenvolvia, não tinha pedalada. E para ser sincera com ela, como sempre sou, disse-lhe que achava estranho o desempenho do carro. 

 

Ela não concordava nada comigo, pois claro e dali começou um desacordo entre as duas. Desfazia-se em elogios com o carro, que era muito dinâmico, que aqueles carros andavam muito e eram bastante nervosos, etc… mas eu não via nada disso. Podia ser da condução? Podia, mas não era só isso. Já tínhamos feito quilómetros suficientes e eu não percebo nada de carros nem de mecânica, contudo, o que eu via era um carro cuja performance não me convencia, mas de jeito nenhum. E continuei a dizer-lhe o que achava, que o carro não andava. Ela tentava convencer-me do contrário, em vão. Por mais que ela se esforçasse e dissesse o melhor possível do carro, aquele carro para mim não servia. Estava muito aquém do exigido para ser o meu carro. Definitivamente não gostei e na minha modesta opinião, aquele carro não andava.

 

A Lúcia não estava a gostar da minha apreciação sobre o seu querido carro, mas eu não podia mentir-lhe. Era o que era. Contudo, se para ela estava bem, que bom! O carro era dela, não era meu?! Se eu comprasse aquele carro, ele saía do stand para voltar a entrar. Para mim um carro tem que andar. E não é que eu tenha carros de corrida, nem tão pouco seja uma condutora de carregar no acelerador. Considero-me uma condutora bastante cautelosa, mas um carro tem que andar, tem que ter um mínimo de desenvolvimento e o que eu via era que aquele carro era “pobre” demais nesse aspecto. Não, eu não queria nada daquilo. Mas ela estava feliz, deixá-la lá estar como queria. Por sinal, isto foi até comentado no trabalho com os colegas e ela fez questão de frisar que eu não tinha gostado do carro, mas mantive a minha opinião. Porquê mudar?

 

O tempo passou e a Lúcia sempre muito contente com o seu carrinho. Passou sensivelmente um ano e um dia a Lúcia recebeu uma carta da Honda. Nessa carta pediam-lhe que, logo que lhe fosse possível, se dirigisse ao concessionário mais próximo para um assunto do seu interesse. Tudo bem. A Lúcia foi ao stand e o carro foi directo para a oficina. Falaram com ela, fizeram o que tinham a fazer e o Honda voltou à rua conduzida pela Lúcia.

 

Quando chegou à RTP com a carta na mão, veio ter comigo, gritando e ainda mais feliz do que antes: “amiga, tinhas razão, os carros da série em que o meu estava incluído tinham um erro de fábrica que só agora foi detectado; trocaram uma peça e agora sim, agora o meu carro anda. Agora o meu carro anda!… Tinhas razão!... ... …



domingo, 28 de julho de 2019

Uma mãe chata - 50


Eu era uma mãe chata. Pelo menos era assim que era vista, como uma mãe muito chata, porque cuidava do meu filho. E estavam sempre todos a pôr-me mil defeitos, porque não o deixava assim, porque não o deixava assado, porque isto e porque aquilo, mas todos queriam desmandar ou mandar na minha maneira de ser “mãe”. Mas nunca me deixei levar pelos comentários nem pelas vozes dos outros. O meu filho era responsabilidade minha e só minha. Portanto, família, amigos, ninguém tinha que se meter na maneira como eu educava o meu filho.

Uma vez, estando de férias nos Açores, era uma noite de verão e fomos visitar uns amigos, amigos do peito, que viviam perto de Ponta Delgada. Eles tinham um filho com quinze anos e uma menina com três anos. Era muito grande a diferença de idades entre ambos, por isso aquela menina era tratada como uma princesa. E a São, a minha amiga, não fugia à regra de achar que eu era muito chata como mãe.

Estava uma noite de Agosto muito quente e fomos desinquietá-los para virem connsco até à marginal, apanhar um pouco de ar fresco, mas eles não estavam para aí virados. O meu filho tinha nessa altura cinco anos e ele e a menina, a Catarina, logo começaram a brincar um com o outro, como é normal. E como não se largavam um do outro, convencemos os pais preguiçosos a deixarem vir a menina connosco para fazer companhia ao Henrique e brincarem mais um pouco. A São chamou-me à parte e quase em segredo disse que não deixava a Catarina aos cuidados de ninguém, porque aquela menina era um presente da vida. Apareceu quando eles já não pensavam mais em ter filhos. E de repente vem a Catarina e foi um alegria e tanto. E então, continuando a conversa quase secreta, confessou-me que excepcionalmente a deixaria ir porque era comigo e sabia que comigo estava bem entregue.

Entendi o recado. E percebi o contrassenso da questão. Então, para cuidar do meu próprio filho eu era sempre tida como muito chata, mas para cuidar da filha dela já não era. Só ia comigo porque sabia como eu era cuidadosa, era essa a palavra. E que comigo ela sabia que estava bem entregue. Esta vida tem coisas curiosas. E lá fomos passear na avenida marginal, cheia de gente, onde as crianças brincaram, correram, riram e gritaram até à hora de ir levar a Catarina a casa.

Um dia a minha prima-irmã, bem mais irmã do que prima porque fomos criadas juntas e que era uma das primeiras a criticar-me e sempre a repreender-me porque eu era muito chata para o meu filho, teve que se ausentar para África, onde ela fazia trabalhos de campo, na qualidade de antropóloga. Ela é bastante mais nova do que eu e nessa altura tinha o primeiro filho, o Afonso, com precisamente nove meses. Desde que ele nascera ainda nunca se tinha separado dele. Mas aí estava um trabalho do qual não gostaria de abdicar. E como resolver o problema? Ela tinha uma empregada o dia inteiro em casa com quem o Afonso ficava até ela ou o pai chegarem, mas para o deixar sem ela, só com o pai, era complicado. Deixá-lo com os avós era uma hipótese, mas apenas se não houvesse outra melhor. A quem é que ela recorreu? Pois é, telefonou-me porque precisava de falar comigo, contou-me que tinha que ir para a Guiné, mas só podia ir com o filhote bem entregue para poder ficar completamente descansada. E na verdade eu era a única pessoa em quem ela podia confiar plenamente. Eram nove dias fora de casa. E tinha que ser eu, só eu e mais ninguém. Pois é, mas não podia ser. Eu trabalhava e não podia ficar em casa a cuidar do filho dela. Nunca pude com o meu ia ser com o dela? Ficou com os avós e ficou muito bem.

As pessoas são estranhas. Para cuidar do meu filho era muito isto, muito aquilo, mas para os delas era a única em quem confiar. Fantástico! Afinal era uma mãe chata ou era apenas uma mãe cuidadosa?!


sábado, 27 de julho de 2019

O gesto é tudo - 49


Eram quatro horas da tarde e levantei-me para ir à casa de banho. Quando cheguei ao corredor de acesso comecei a ouvir vozes que logo identifiquei: a Cristina e a Maria João. E apesar de não estar consciente do teor da conversa, mesmo sem querer, apanhei a questão.

Não raras vezes, as coisas que se passam ao nosso redor nos escapam, sobretudo se forem coisas que não nos dizem nada ou que não sejam connosco. Contudo, ao mais pequeno pormenor que capte a nossa atenção, percebemos que afinal o nosso subconsciente absorveu tudo, ainda que sem consciência disso. É uma espécie de armazém que guarda em stock e que vai buscar apenas se for necessário. E foi isso mesmo que aconteceu. Eu ouvia apenas vozes mas não me tinha apercebido de que estava a fazer parte do seu contexto.

E de repente lembrei-me de uma cena idêntica. A situação era exactamente a mesma, mas com outros actores em cena. Eu vou no corredor para ir à casa de banho e ainda cá fora começo a ouvir duas colegas. Uma falava de uma personagem feminina muito em voga na altura, uma socialite cujo nome não vem ao caso e que naquele momento também não foi pronunciado pela pessoa que dela falava, que tinha aparecido na televisão, etc, etc, etc… mas a outra a quem ela se dirigia não identificava. Não querendo dizer o nome, a Ana dizia no preciso momento em que entrei na casa de banho, “aquela parva”…  e ao dizer estas palavras, imediatamente passou na minha mente a imagem da pessoa em causa. Mas perante a descrição de “aquela parva”, a outra não identificava de maneira nenhuma e a Ana continuou “sim… a que anda com o outro”… e uma vez mais passou na minha mente a imagem do tal “outro”, com toda a nitidez. “Oh, sei lá quem é a que anda com o outro!”… resmungava a colega. Neste momento, acabada de entrar no mesmo espaço físico, esclareci imediatamente o assunto, dizendo o nome da “parva”, bem como o do “outro” em questão. A Ana que já estava impertinente, talvez pela falta de perspicácia da colega, respondeu logo “pois claro, vê lá se ela – referindo-se à minha pessoa – não percebeu logo”? Era preciso dizer os nomes?!

Pensando bem, talvez não fosse assim tão evidente, pois há sempre personalidades em badalação a dar que falar, pelo que podiam sem outros personagens. O facto é que pelo jeito dela falar, imputando-lhe uma conotação de um certo desprezo, a imagem passou imediatamente na minha frente. Podiam ser milhentas, é verdade. Mas aquela era a pessoa de quem se falava na actualidade. Ainda assim, podia ser outra. O facto é que eu apanhei. E mesmo quando a Ana disse “que anda com o outro”, também podiam ser imensas. Mas a Ana referia-se a uma determinada pessoa e foi essa que eu visualizei. E é claro que não foi por acaso. A minha capacidade telepática estava cem por cento receptiva, coisa muito normal em mim.

Neste momento a cena era a mesma ou muito idêntica, só que o assunto era trabalho e o outro não. A Cristina precisava de resolver um problema e a Maria João dizia-lhe que tinha que ir falar com uma colega da televisão, porque elas eram da rádio, e estava a explicar-lhe quem era. Mas a Cristina não chegava lá. E por mais precisas que fossem as indicações ela não conseguia saber, respondendo sempre o mesmo, que não sabia quem era. A Maria João insistia em “uma que costuma ir almoçar com…, que faz…, que vai…, que e que… mas a Cristina não via nada. As duas já estavam cansadas, uma por explicar, a outra por não conseguir perceber. E então eu entro e sem dizer uma única palavra, faço uma exibição, imitando a outra que ela dizia que não sabia quem era. Levo as mãos um pouco à frente do peito, uma ao lado da outra, com os dedos um pouco expostos. Coloco um pé à frente do outro, a cabeça empinada e o nariz no ar, enquanto me vou virando à direita e à esquerda… e… fez-se luz. A Cristina deu um grito “Ah, já sei!”… e disse já sei, de um modo que queria dizer que estava farta de saber quem era. Claro!...

A Maria João passou-se de todo e reclamava “olha para esta… estou eu aqui há horas a dar todas as explicações detalhadas e nada. Chega esta, dá dois passos e já sabe!”... A Cristina ria, ria e dizia “pois, com os gestos que ela fez”!...

Sem dúvida, o gesto é tudo.


sábado, 8 de junho de 2019

Alice - 48


Alice voltava, apressada, para meu grande descanso(!)…

 

Degrau por degrau eu ouvia os passinhos de uma pequenina com pouco mais dois anos apenas, numa noite escura e fria de inverno. Ela era uma graça. Às vezes com trancinhas enfeitadas e coloridas, outras vezes com o cabelo solto e todo espetadinho, era uma perfeita miniatura da típica mulher Africana. Filha de pais Guineenses, com uma irmã já com quinze anos de um casamento anterior da mãe, era esta irmã que tomava conta dela quase todo o tempo. Fazia de mãe, de pai e estava sempre a cuidar dela.

 

Alice subiu até ao patamar e foi direita à porta de casa. Como não chegava à campainha, com as mãozinhas pequeninas deu várias pancadas para se fazer ouvir. Eu estava na minha casa, com a porta entreaberta, porque estava à espera de uma amiga e quando ouvi o elevador parar no terceiro andar, achei que era ela, a minha amiga. Mas não era. Em todo o caso, como ela deveria estar a chegar, continuei com a porta encostada, sem voltar a fechá-la, ao mesmo tempo que espiava Alice.

 

Na verdade, Alice já se habituara à confusão daquela casa e às festas com montes de gente que não fazia nada, a não ser beber e comer. Faziam-se festas por tudo e por nada. Inventavam-se festas para convidar os amigos e pôr música em altos berros que ninguém conseguia ouvir a não ser mesmo o barulho. Só o barulho. De tal modo que, para falarem uns com os outros e se fazerem entender, tinha que ser aos gritos. E para falarem ao telemóvel saíam de casa e vinham para o patamar, uma área razoável, uma vez que são seis apartamentos por andar, e aí ficavam, um, dois, três, uns quantos, cada um falando mais alto que o outro, o que a eles parecia não incomodar, porque as festas aconteciam com bastante frequência e os amigos sempre os mesmos. Eram umas a seguir às outras. Não havia sossego para ninguém. A mãe e a irmã iam para a cozinha e o pai ficava na sala a conviver com os amigos, sempre a entrarem e a sairem e uma confusão dos diabos. Mas Guineense é mesmo assim. Até que um dia um vizinho se chateou e chamou a polícia que interveio e a partir daí as coisas acalmaram bastante.

 

Alice anda por ali, de um lado para o outro. Não importa se são horas de tomar banho, de comer ou de dormir. Se quiser beber de um copo de alguém, imediatamente lhe dão o que ela quer. Se quiser comer seja o que for, chocolates, rebuçados, doces, o que quer que seja, um dá-lhe uma coisa, outro dá-lhe outra e ninguém chega a saber o que é que ela comeu e bebeu de verdade ou não. Se tiver sono encosta-se num canto qualquer ou num buraco do sofá e dorme no meio de tudo aquilo.

 

A televisão está num qualquer canal e os miúdos todos pegam no comando e mandam e desmandam. Ninguém presta atenção em nada. Independentemente do que está a passar na tv, a música está a todo o vapor, passando por colunas potentíssimas, que quase não cabem dentro de casa. Alguns ficam de pé, a fumar, encostados às janelas. Ninguém consegue falar com ninguém. Uns recostam-se e quase dormem. Outros estão sempre de telemóvel na mão, nas suas redes sociais preferidas. E Alice também se entretém muito com os telemóveis, que usa até descarregar a bateria, o que nada a atrapalha. Trata logo de ir pôr a carregar e alguém lhe passa outro para a mão.

 

A mãe trabalha durante o dia e quando volta para casa está cansada. Muitas vezes deita-se para descansar e adormece. Alice janta ou não, conforme. Se disser que tem fome, talvez lhe dêem um yogurt, um sumo de pacote ou cocacola, que é rápido e fácil. Guineense passa muito tempo a descansar na cama. Ou é porque está frio ou porque está calor.

 

Alice vai para a creche, onde passa o dia e onde gosta muito de estar porque tem muitos amiguinhos e brinca muito. É uma criança muito sociável e gosta de se fazer comunicar. Também canta e dança lindamente. É mesmo uma graça a dançar. Não que lhe tenham ensinado, mas porque vê muitos vídeos no telemóvel e imita com uma perfeição impressionante. Parece que já nasceu ensinada. Porque não é só a dança em si, é toda a incorporação dos gestos, de todo o seu corpo que fala e as expressões encantadoras que o seu rosto assume enquanto dança, é realmente enternecedor. O pai e a mãe babam a ver a sua menina bebé dançar, o que não é sem razão.

 

Alice aguardava que lhe abrissem a porta e eu continuava à espera da minha amiga. Se não estivesse à espera dela não tinha assistido à chegada do elevador, o que só mesmo por mero acaso. E o acaso fez com que visse saírem três adultos e uma criança: a mãe de Alice, a irmã e o primo, que está a viver temporariamente lá em casa, enquanto não arranja trabalho e um lugar para ele. Os quatro saíram do elevador e um de cada vez foram em direcção à porta de casa, que fica do lado oposto, em frente à minha. Um por um, entraram em casa, brincando, gracejando. Um por um dos três adultos, apenas, porque Alice não entrou. No meio dos três, Alice saiu do elevador e sozinha começou a descer as escadas. Fiquei atenta, à espera que alguém a seguisse, mas ninguém a seguiu(!).

 

No segundo andar, mesmo por baixo deles, mora outra família guineense que tem duas garotas da idade da irmã e com quem ela às vezes fica. Talvez ela quisesse ir ter com elas ou talvez não. O facto é que quando ouviu a porta fechar-se e sem que ninguém a tivesse seguido, insegura, voltou atrás, pelo menos por esta vez...

 

Às pancadas na porta alguém acorre abrindo e num misto de verdadeiro espanto e contentamento, exclama,  “Alice!?... … …”



domingo, 14 de abril de 2019

As Formigas - 47


Quando eu era criança tinha a mania de tapar os buracos dos carreiros de formigas. Sempre que ia brincar para os jardins, aí andava eu à caça delas e dos buracos. Até que um dia, estando com o meu pai, que presenciou uma cena destas, logo se insurgiu, perguntando-me porque razão estava a fazer aquilo, que não deveria fazer em hipótese alguma.

 

Fiquei muito consternada e na minha inocente ingenuidade, respondi-lhe que corria a tapar os buracos porque eram muito grandes e elas podiam cair lá dentro e morrer sufocadas. Com tal resposta, o meu pai logo percebeu que eu fazia aquilo sempre que encontrava formigas e voltou a ralhar, dizendo-me que não o podia fazer, explicando que os buracos eram as casas das formigas, por isso elas caminhavam para lá, sim.

 

Com esta explicação fiquei sem palavras e sem acção. O que ele acabava de me dizer era algo pertinente e agora eu estava em aflição comigo mesma. Acabava de perceber que era uma potencial assassina de formigas e que ao invés de as salvar, as matava, sendo que não era essa a minha intenção, de jeito nenhum.

 

Era bem criança, mas lembro-me perfeitamente de ter pensado em quantas asneiras fazemos por ignorância e se o meu pai não estivesse presente e não me tivesse feito aquela chamada de atenção para me corrigir, certamente eu continuaria a fazer o mesmo, matando todas as formigas que encontrava, convencida de que estava a salvá-las. Por momentos senti-me muito mal comigo mesma e completamente frustrada, como se tivesse acabado de receber um atestado de estupidez ao mais alto nível. Matar as formiguinhas, um bichinho tão pequenino, tão indefeso! Eu era muito má. Como era possível?

 

Pela vida fora nunca me esqueci daquele episódio porque ele foi um grande alerta para mim, apesar de ser muito pequena. O que me ficou, foi as coisas erradas que fazemos apenas por ignorância! E não devem ser poucas. Ao longo de toda uma vida esse somatório deve atingir um número alarmante. O que fazer? Não nascemos ensinados!?

 

Até hoje, toda a minha aprendizagem tem sido no sentido de esvaziar a ignorância e a importância que dou a tudo, desde as mais pequenas coisas, tem que ver com evitar danos por conta da desinformação. Já basta o que fazemos errado voluntariamente, porque somos como somos.

 

Quando dizemos que errar é humano, não estamos a dizer que errar é desumano e essa é a verdade verdadeira. Errar é desumano. E se muitas vezes não sabemos que não estamos no caminho certo, porque acontece, também muitas e muitas vezes sabemos bem que estamos no lado errado e nem por isso nos importamos. Parece que é importante fazermos o “mal”. Isso, porque o nosso ego nos está a dar força para continuar, por alguma razão específica.

 

No momento, Brasil e Estados Unidos da América, através dos seus líderes, fazem uma escolha, uma escolha que não é pacífica, nem um pouco, mas fazem-na, querendo mostrar ao mundo que a sua escolha é certa: armas para todos. Eles sabem ou não sabem que é a escolha errada? Eles sabem. Aqui não há ignorância possível. Até uma criança compreende isso. A quem querem eles convencer de que as armas vão “salvar” seja o que for? Armas não são para salvar. Armas são para matar. E um povo que apoia uma decisão destas está a sujeitar-se a uma sentença de morte, seja de que maneira for, porque tudo está sujeito a uma lei universal que ninguém tem o poder de alterar, simplesmente porque é inalterável: a lei de causa e efeito.

 

Tanto quanto sei, só há um caminho: baixar armas. Acabar com todo o material de guerra. É difícil, é complicado? Porquê? Acaba-se o negócio das armas? Quem está interessado nisso?!

 

Se não houvesse armas, haveriam outras guerras, mas essas guerras seriam de outra natureza. Guerras de consciência, que apenas teriam egos para trabalhar, mas isso seria pouca coisa, naturalmente, porque não adianta saber mundos e fundos, ser isto e aquilo, se não soubermos o básico. Isto significa que temos um mundo com líderes que sabem muito, ou muito pouco, eu diria, pois até hoje não aprenderam a fazer o trabalho de esvaziar a ignorância. E esses sim, matam formigas, não por falta de informação, mas porque lhes dá prazer. Um prazer mórbido, delinquente. E o mundo inteiro atento ou desatento… aplaude(!)…