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domingo, 28 de julho de 2019

Uma mãe chata - 50


Eu era uma mãe chata. Pelo menos era assim que era vista, como uma mãe muito chata, porque cuidava do meu filho. E estavam sempre todos a pôr-me mil defeitos, porque não o deixava assim, porque não o deixava assado, porque isto e porque aquilo, mas todos queriam desmandar ou mandar na minha maneira de ser “mãe”. Mas nunca me deixei levar pelos comentários nem pelas vozes dos outros. O meu filho era responsabilidade minha e só minha. Portanto, família, amigos, ninguém tinha que se meter na maneira como eu educava o meu filho.

Uma vez, estando de férias nos Açores, era uma noite de verão e fomos visitar uns amigos, amigos do peito, que viviam perto de Ponta Delgada. Eles tinham um filho com quinze anos e uma menina com três anos. Era muito grande a diferença de idades entre ambos, por isso aquela menina era tratada como uma princesa. E a São, a minha amiga, não fugia à regra de achar que eu era muito chata como mãe.

Estava uma noite de Agosto muito quente e fomos desinquietá-los para virem connsco até à marginal, apanhar um pouco de ar fresco, mas eles não estavam para aí virados. O meu filho tinha nessa altura cinco anos e ele e a menina, a Catarina, logo começaram a brincar um com o outro, como é normal. E como não se largavam um do outro, convencemos os pais preguiçosos a deixarem vir a menina connosco para fazer companhia ao Henrique e brincarem mais um pouco. A São chamou-me à parte e quase em segredo disse que não deixava a Catarina aos cuidados de ninguém, porque aquela menina era um presente da vida. Apareceu quando eles já não pensavam mais em ter filhos. E de repente vem a Catarina e foi um alegria e tanto. E então, continuando a conversa quase secreta, confessou-me que excepcionalmente a deixaria ir porque era comigo e sabia que comigo estava bem entregue.

Entendi o recado. E percebi o contrassenso da questão. Então, para cuidar do meu próprio filho eu era sempre tida como muito chata, mas para cuidar da filha dela já não era. Só ia comigo porque sabia como eu era cuidadosa, era essa a palavra. E que comigo ela sabia que estava bem entregue. Esta vida tem coisas curiosas. E lá fomos passear na avenida marginal, cheia de gente, onde as crianças brincaram, correram, riram e gritaram até à hora de ir levar a Catarina a casa.

Um dia a minha prima-irmã, bem mais irmã do que prima porque fomos criadas juntas e que era uma das primeiras a criticar-me e sempre a repreender-me porque eu era muito chata para o meu filho, teve que se ausentar para África, onde ela fazia trabalhos de campo, na qualidade de antropóloga. Ela é bastante mais nova do que eu e nessa altura tinha o primeiro filho, o Afonso, com precisamente nove meses. Desde que ele nascera ainda nunca se tinha separado dele. Mas aí estava um trabalho do qual não gostaria de abdicar. E como resolver o problema? Ela tinha uma empregada o dia inteiro em casa com quem o Afonso ficava até ela ou o pai chegarem, mas para o deixar sem ela, só com o pai, era complicado. Deixá-lo com os avós era uma hipótese, mas apenas se não houvesse outra melhor. A quem é que ela recorreu? Pois é, telefonou-me porque precisava de falar comigo, contou-me que tinha que ir para a Guiné, mas só podia ir com o filhote bem entregue para poder ficar completamente descansada. E na verdade eu era a única pessoa em quem ela podia confiar plenamente. Eram nove dias fora de casa. E tinha que ser eu, só eu e mais ninguém. Pois é, mas não podia ser. Eu trabalhava e não podia ficar em casa a cuidar do filho dela. Nunca pude com o meu ia ser com o dela? Ficou com os avós e ficou muito bem.

As pessoas são estranhas. Para cuidar do meu filho era muito isto, muito aquilo, mas para os delas era a única em quem confiar. Fantástico! Afinal era uma mãe chata ou era apenas uma mãe cuidadosa?!


sábado, 27 de julho de 2019

O gesto é tudo - 49


Eram quatro horas da tarde e levantei-me para ir à casa de banho. Quando cheguei ao corredor de acesso comecei a ouvir vozes que logo identifiquei: a Cristina e a Maria João. E apesar de não estar consciente do teor da conversa, mesmo sem querer, apanhei a questão.

Não raras vezes, as coisas que se passam ao nosso redor nos escapam, sobretudo se forem coisas que não nos dizem nada ou que não sejam connosco. Contudo, ao mais pequeno pormenor que capte a nossa atenção, percebemos que afinal o nosso subconsciente absorveu tudo, ainda que sem consciência disso. É uma espécie de armazém que guarda em stock e que vai buscar apenas se for necessário. E foi isso mesmo que aconteceu. Eu ouvia apenas vozes mas não me tinha apercebido de que estava a fazer parte do seu contexto.

E de repente lembrei-me de uma cena idêntica. A situação era exactamente a mesma, mas com outros actores em cena. Eu vou no corredor para ir à casa de banho e ainda cá fora começo a ouvir duas colegas. Uma falava de uma personagem feminina muito em voga na altura, uma socialite cujo nome não vem ao caso e que naquele momento também não foi pronunciado pela pessoa que dela falava, que tinha aparecido na televisão, etc, etc, etc… mas a outra a quem ela se dirigia não identificava. Não querendo dizer o nome, a Ana dizia no preciso momento em que entrei na casa de banho, “aquela parva”…  e ao dizer estas palavras, imediatamente passou na minha mente a imagem da pessoa em causa. Mas perante a descrição de “aquela parva”, a outra não identificava de maneira nenhuma e a Ana continuou “sim… a que anda com o outro”… e uma vez mais passou na minha mente a imagem do tal “outro”, com toda a nitidez. “Oh, sei lá quem é a que anda com o outro!”… resmungava a colega. Neste momento, acabada de entrar no mesmo espaço físico, esclareci imediatamente o assunto, dizendo o nome da “parva”, bem como o do “outro” em questão. A Ana que já estava impertinente, talvez pela falta de perspicácia da colega, respondeu logo “pois claro, vê lá se ela – referindo-se à minha pessoa – não percebeu logo”? Era preciso dizer os nomes?!

Pensando bem, talvez não fosse assim tão evidente, pois há sempre personalidades em badalação a dar que falar, pelo que podiam sem outros personagens. O facto é que pelo jeito dela falar, imputando-lhe uma conotação de um certo desprezo, a imagem passou imediatamente na minha frente. Podiam ser milhentas, é verdade. Mas aquela era a pessoa de quem se falava na actualidade. Ainda assim, podia ser outra. O facto é que eu apanhei. E mesmo quando a Ana disse “que anda com o outro”, também podiam ser imensas. Mas a Ana referia-se a uma determinada pessoa e foi essa que eu visualizei. E é claro que não foi por acaso. A minha capacidade telepática estava cem por cento receptiva, coisa muito normal em mim.

Neste momento a cena era a mesma ou muito idêntica, só que o assunto era trabalho e o outro não. A Cristina precisava de resolver um problema e a Maria João dizia-lhe que tinha que ir falar com uma colega da televisão, porque elas eram da rádio, e estava a explicar-lhe quem era. Mas a Cristina não chegava lá. E por mais precisas que fossem as indicações ela não conseguia saber, respondendo sempre o mesmo, que não sabia quem era. A Maria João insistia em “uma que costuma ir almoçar com…, que faz…, que vai…, que e que… mas a Cristina não via nada. As duas já estavam cansadas, uma por explicar, a outra por não conseguir perceber. E então eu entro e sem dizer uma única palavra, faço uma exibição, imitando a outra que ela dizia que não sabia quem era. Levo as mãos um pouco à frente do peito, uma ao lado da outra, com os dedos um pouco expostos. Coloco um pé à frente do outro, a cabeça empinada e o nariz no ar, enquanto me vou virando à direita e à esquerda… e… fez-se luz. A Cristina deu um grito “Ah, já sei!”… e disse já sei, de um modo que queria dizer que estava farta de saber quem era. Claro!...

A Maria João passou-se de todo e reclamava “olha para esta… estou eu aqui há horas a dar todas as explicações detalhadas e nada. Chega esta, dá dois passos e já sabe!”... A Cristina ria, ria e dizia “pois, com os gestos que ela fez”!...

Sem dúvida, o gesto é tudo.