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quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O Carlos - 60

 

O Carlos tinha dezanove anos, era quase uma criança, mas um grandalhão que parecia ter uns quarenta. Alto, excepcionalmente bem constituído, um vozeirão que chegava a impressionar, uma figura que era mais um figurão. 

Tinham-me dito que viria uma pessoa para me ajudar. Não dei importância ao assunto. Contra tudo e todos eu sempre conseguia dar conta do recado e ter tudo sob controlo. Podia ir para casa de rastos, cansada, exausta, deitar-me a pensar no planeamento de trabalho para o dia seguinte, mas o facto é que não sabia ser de outra maneira. Eles sabiam e tinham bastante consciência disso, por isso mesmo providenciaram a contratação de uma pessoa temporária, até ver. E um dia alguém entrou na sala acompanhado do Carlos, que eu não conhecia, nem fazia ideia de onde tinha saído aquela ávis rara. 

Entraram os dois e parei o meu trabalho. Fiquei a olhar para ambos e foram feitas as devidas apresentações. O Carlos ia ficar sentado à minha frente, no outro lado da sala, junto à janela. E seríamos só os dois. Isto era nas antigas instalações nos Estúdios do Lumiar. Uma sala pequena, interior, feita de divisórias de vidro, contígua à dos legendadores. Umas instalações improvisadas, como improvisado era quase tudo ali. 

O Carlos era tudo aquilo que já descrevi e muito mais. Tinha um porte invejável e um ar sério. Mas o ar sério era só fachada, porque em boa verdade era o maior gozão que se possa imaginar. Era moreno, de cabelo escuro e olhos azuis. Já o tinham industriado e dado umas noções básicas do trabalho que ia fazer, mas teria que se apoiar em mim, pelo que pouco a pouco fazia perguntas, contudo, era esperto e inteligente dado que, em pouco tempo estava perfeitamente à vontade no que fazia. 

A vida dele não tinha sido muito fácil, por isso estava ali, tão novo e com os estudos incompletos. A mãe tinha morrido muito nova e ele já tinha tido várias madrastas, bastante mais novas do que o pai, com as quais sempre se dava mal. O pai tinha a vida dele e volta e meia discutiam e desentendiam-se e o Carlos queria a sua independência o mais depressa possível. O que lhe pagavam ali não era mau, mas ele queria muito mais. Era ambicioso e caminhava rápido, porque queria tudo de uma só vez. 

Quando chegou era modesto, certinho, calmo, educado e polido, mas rapidamente se começou a transformar. O trabalho não oferecia resistência e ele tinha capacidades de sobra. Era de fácil relacionamento, pelo que não lhe foi nada difícil enturmar-se com o pessoal com quem tinha que se relacionar. E aos poucos fomos ficando amigos, assim como aos poucos me ia relatando toda a vida dele, passada e presente. 

Conforme já disse, era muito alto, cerca de 1,90 e tinha uma figura que oferecia respeito, no entanto, não passava de um garoto, o que era natural, devido à sua idade de apenas dezanove anos. 

Duas pessoas a trabalhar no mesmo espaço, cerca de sete horas por dia, infalivelmente acabam por saber da vida uma da outra com todos os pormenores porque, inclusive, os telefonemas são ouvidos na íntegra. Era impossível não escutar as conversas dele, como ele as minhas. E o Carlos tinha a particularidade de estar em dois mundos ao mesmo tempo. O sério e o brincalhão. O que tinha que ser sério era a sério, mas o que podia ser e servir para brincar era mesmo para brincar até não poder mais. 

Como o seu objectivo era dinheiro, o que ganhava ali não o satisfazia nem um pouco. Assim, arranjou trabalho na noite, onde era garçon numa discoteca, o que o fazia entrar pela noite dentro, mas que segundo ele, compensava. O problema era o desgaste físico, porque as suas horas de sono eram drasticamente reduzidas e o fazia andar sempre cansado e a precisar de dormir. 

Não raras vezes eu dava por ele a dormitar apoiado numa mão com o cotovelo em cima de secretária. E se de repente vinha alguém eu tinha que chamá-lo para não ser apanhado a dormir, o que não abonava nada a seu favor. Isto quando dava por isso, porque nem sempre me apercebia. Se tivesse muito trabalho ou coisas complicadas para resolver passava-me ao lado. 

A nossa relação era muito boa e quando digo que era muito boa significa que tanto nos amávamos como nos odiávamos. Às vezes ele fazia coisas ou dizia coisas com o intuito de  me provocar porque era um provocador nato, e eu ficava sem paciência para o aturar. Era uma criança grande. Quantas vezes entrámos em luta e atirávamos coisas um ao outro. Claro que não tínhamos observadores, por isso é que as coisas descambavam desta maneira. 

Um dia daqueles em que ele estava particularmente cansado, resmungando por tudo e por nada e de muito mau humor, e eu estava com muito trabalho para fazer, a páginas tantas desliguei-me completamente da presença dele para melhor me concentrar naquilo que era responsabilidade minha e poder dar conta do recado. E assim fiquei muito tempo embrenhada nos meus papéis, nos meus assuntos, esquecendo tudo à minha volta, inclusive a existência do Carlos. Ali acorriam muitos colegas a levantar documentos de despesa e a pedir adiantamentos para material técnico e outras coisas. E estávamos constantemente a ser interrompidos para fazer face ao que nos vinham solicitar. 

Concentradíssima nas minhas coisas e desligada do meu querido colega que naquele dia estava particularmente chato, chegou alguém que por acaso não era para mim. Era para ele. Interrompi o que estava a fazer para dar as boas tardes e cumprimentar o colega e reparei na ausência do Carlos. O colega que chegou queria exactamente uma coisa que não era comigo mas com ele. Perguntou por ele e respondi que devia ter ido tomar um café ou fumar um cigarro lá fora, mas que não devia demorar. O colega ficou ali um bocado, mas percebendo que eu não lhe podia dar atenção enquanto o outro não chegava, foi-se embora dizendo que voltaria depois. OK. E continuei o meu trabalho. 

Pouco depois, apareceu outro, que também queria qualquer coisa com o Carlos. Mais uma vez interrompi e disse que ele já estava ausente há algum tempo, portanto não deveria demorar. Mas também ele não podia esperar e foi-se embora. Continuei o meu trabalho e às tantas comecei a achar que a ausência do Carlos estava a ser muito prolongada. Que estranho? Por onde andaria? Não era normal aquilo acontecer. Até o telefone tocou várias vezes, umas para mim, outras para ele e lá tive que dizer que de momento não estava. Mas de facto estava a achar que alguma coisa não estava bem. 

E o tempo foi passando e o Carlos nada de aparecer. Era realmente muito estranho. E fiquei tentando adivinhar onde andaria ele. Não se tinha ido embora, isso era certo. E a bem da verdade eu nem tinha ideia de ele ter saído. Mas então? 

E novamente enfiada no meu trabalho, começo a ouvir uma espécie de respiração pesada que não entendi o que era. E mais um pouco e começo a ouvir aquilo que achei que era um ressonar. Mas não, não podia ser. Não estava ali mais ninguém a não ser eu, donde vinha aquele som? Mas aquilo não parou, pelo contrário, continuava. Parei tudo. O som vinha do lado do Carlos. Mas ele nem lá estava? Levantei-me e fui até à secretária dele. Uhau! Que susto! 

O maluco do Carlos não tinha saído. Em vez disso, como o sono era muito, tinha-se enfiado debaixo da secretária, todo encolhidinho para conseguir caber e perante a minha máxima consternação e o meu maior espanto, alheio a tudo, de cócoras, mas como se estivesse no sétimo céu, dormia profundamente!...