Era
uma vez quatro amigos, que se juntaram para fazer e comer marisco. E como um
deles tinha um restaurante nos Açores, era um excelente cozinheiro. Por
isso, depois de terem ido ao mercado, pertinho da minha casa, enfiaram-se na
minha cozinha, onde fizeram uma grande festa só para eles. Mas aí, cheguei
eu... e... a festa quase acabou.
É
claro que um deles era meu marido e os outros três açorianos, todos eles
residentes nos Açores, por isso se reuniam em nossa casa, em Lisboa, onde
faziam tudo o que lhes apetecia. Ou quase tudo. Como já disse, um, era dono de
um restaurante, os outros, incluindo o meu marido, pessoal da RTP, como eu.
Numa
bela tarde de verão, entro em casa, ouço chamar por mim e vou até à cozinha. Eh
eh eh eh... que grande farra! Comiam que nem uns alarves. Mas que tinha bom
aspecto, tinha, e que cheirava maravilhosamente bem, cheirava.
Naquela
casa, antes de nós, tinha vivido o meu cunhado brasileiro, durante muitos anos
em que fingiu que estudou medicina em Portugal e partilhava a casa com outros
brasileiros nas mesmas condições que ele. Foi por essa altura que ele e a
minha irmã se conheceram, namoraram e acabaram por ir para o Brasil onde
casaram e foram muito felizes.
A
questão é que aquela casa nessa altura estava sempre cheia de brasileiros e
onde há brasileiros há feijoada. Então, todos os fins-de-semana se fazia uma
tachada que dava para um batalhão. Aos fins-de-semana não se fazia outra coisa
que não fosse comer, salvo um deles, que estava sempre sentado na varanda com o
seu violão - tocando e cantarolando, para quem a música era mais importante que
a feijoada - , todos os outros comiam e dormiam. Esse, o da música, era o
"Djavan" que, nessa altura ainda não era famoso.
Aquelas
célebres feijoadas eram cozinhadas num tacho especial. Um tacho de alumínio enorme,
uma coisa monstra que por lá ficou, juntamente com outras coisas. Quando eles
se foram embora e fomos para lá viver, na necessidade de fazer uma escolha,
poupei aquele tacho porque me recordava aqueles tempos, embora o tacho não
desse muito jeito para guardar, pelo facto de ser muito grande. Mas foi ficando
por lá, por cima dos armários da cozinha, o único sítio onde cabia.
Mais
tarde, decidi armar em tintureira e o dito cujo foi-me de extrema utilidade,
porque era o único possível para fazer a mistura das tintas, tendo bastante
espaço para puxar a roupa de um lado para o outro, quando eu decidia que já
estava farta de uma determinada peça de roupa daquela cor e a mudava
drasticamente. Grande tacho! Sem ele, nunca conseguiria fazer aquelas
"caldeiradas" e brincadeiras com a roupa.
Ora
bem, por conta disso, o tacho tinha várias marcas, posto que jamais me dei ao
trabalho de o lavar no final de cada trabalho que fazia. Era só o que faltava!
E assim, as marcas iam ficando, em altura e cor. No interior do tacho podiam-se
ver claramente as marcas de várias cores.
Mas,
voltando à mariscada dos quatro amigos, eles precisavam de um tacho e depois de
rebuscarem tudo na minha cozinha, nem pensaram duas vezes. Era aquele mesmo que
servia para o que pretendiam. E lá vai o marisco para o tacho da tinturaria.
Claro que eles não viram nada, mesmo porque jamais passaria pela cabeça deles a
que se destinava o tacho. Portanto, usaram-no e pronto.
Quando
entrei na cozinha e os vi a comer com grande apetite, a babar com o marisco e
eles a convidarem-me para me sentar com eles e comer, primeiro fiquei aflita,
mas tinha que lhes dizer. E se apanhassem uma intoxicação? Podia acontecer?!
Ah... mas talvez eles tivessem lavado o tacho... sim, só podia ser...que
estupidez a minha. E, rapidamente, aproximei-me do tacho. Cravei o olhar no
interior e que vejo: as marcas das tintas intactas!...
Era
inacreditável. Aquelas criaturas não se deram ao trabalho de ver o estado do tacho,
que estava exactamente como eu o tinha deixado. Eu olhava para as caras deles e
via o olhar deles a começar a desconfiar de algo que não percebiam o que
poderia ser. Mas a minha expressão de espanto, de um certo nojo e de muitas
outras coisas era notória, porque simplesmente não conseguia esconder. E
perguntei porque é que tinham ido buscar aquele tacho. Claro que a
resposta era óbvia: "porque era grande, o maior"...
E
continuei perguntando, com eles a comer: "e não viram as marcas da
tinta?" Pararam. Olharam para dentro do tacho e eu apontei, dizendo:
"olhem aqui, aqui, aqui..." Foi aí que se deram conta e continuei:
"só uso este tacho para tingir roupa, por isso nunca o lavo".
Pararam. Engasgaram-se, simularam ou não um vómito, ficaram entre a espada e a
parede. E disse: "querem apanhar uma intoxicação?" Houve um vacilo de
alguns segundos e depois veio a resposta: "o que não mata engorda!".
E a
mariscada continuou entre a boa disposição que redobrou e as gargalhadas e as
piadas à boa maneira açoriana.
Já se passaram quarenta anos. Estão todos vivos. Só não sei se
se lembram(?)...