Como
é bom viajar! E a Áustria?! A Áustria onde eu nunca sonhei que um dia haveria
de ir… não por não achar que não valesse a pena, muito pelo contrário, mas
porque nunca pensei que se proporcionasse. E assim, do nada, lá fui eu no avião, rumo ao centro da Europa, cheia de fronteiras à sua volta e onde o mar não
consegue chegar. Terra de grandes nomes, génios autênticos e únicos.
E
como é linda a Áustria, meu deus! É flores por todo o lado. Até a sopa tem
flores! E não foi por não saber falar alemão que não me fiz entender com eles.
Perfeitamente. Foi realmente uma viagem surpresa. Os meus tios quiseram ir mais
uma vez à Áustria, de onde tinham muito boas recordações. Como dizem os filhos,
a sua única preocupação era descobrirem no globo, algum sítiozinho onde ainda
não tivessem posto os pés. Ali não era o caso, mas por muito viajarem, este foi
um dos destinos por eles repetido.
Levaram
a vida a viajar. As férias eram única e exclusivamente largar tudo, fazer as
malas com as suas melhores vestimentas e lá iam eles. O resto era o resto e o
que quer que fosse podia esperar. Nada mais tinha importância na vida deles
como tinham as viagens. Depois,
chegavam sempre muito cansados, precisando de descansar, ou seja, de nada fazer.
Mas assim que havia a mais pequena possibilidade de viajar, não havia cansaço
que os impedisse. Todas as forças voltavam como que por magia. Era uma coisa
impressionante.
É
claro que depois de se reformarem foi ainda pior. As viagens eram
minuciosamente pensadas e estudadas e por vezes era chegar a casa, desfazer a
bagagem para serem novamente feitas e embarcar na próxima. Algumas vezes viajei
com eles, como foi o caso da Áustria, por já estarem na casa dos oitenta, com
algumas doenças e fragilidades físicas e os meus primos terem receio. Aí, eu
tirava férias e ia com eles, para não os impedir de viajar e todos
ficarem mais tranquilos.
A
Áustria foi um desses destinos em que fui essencialmente por eles. Mas não me
arrependo nem por um instante. Até porque sem eles talvez nunca tivesse ido,
apenas porque me eram prioritários outros destinos. Mas fui e foi muito bom,
tanto para mim como para eles. Aliás, se eu não tivesse ido, teria sido muito
complicado. Nessa viagem a minha tia passou o tempo todo a comentar que sem mim, não sabia como se iam arranjar, porque o meu tio já não
conseguia dar resposta a muita coisa e ela reclamava, mas estava sempre na
dependência dele. Enfim, a idade tem as suas limitações. Mas para mim foram
experiências muito bem aproveitadas e muito importantes, porque eu conheci o
mundo, aprendi e tirei partido de tudo quanto vivi.
A
aventura foi logo à chegada. Havia uma reserva de um carro de aluguer para nos podermos deslocar. O carro que nos deram tinha mudanças
automáticas. Nem o meu tio nem eu tínhamos conduzido um carro sem mudanças, por
isso pedimos para trocarem. Impossível, porque já não tinham carros com
mudanças manuais, pelo que tivemos mesmo que aceitar o que havia. A minha tia
logo entrou em pânico, porque o marido não ia conseguir conduzir. Então não tive outro remédio senão tomar as rédeas e
sentar-me eu mesma ao volante. Só que, na verdade, eu também não tinha a menor
ideia de como aquilo funcionava e era complicado meter-me à estrada sem a mais pequena noção do funcionamento daquela coisa. Mesmo assim, fui forçada a arrancar, mas logo a
seguir tive que parar, sair do carro e muito sem jeito, ganhar forças para pedir auxílio ao primeiro condutor que apareceu.
Fui
ter com ele, perguntei-lhe se sabia falar inglês, mas ele disse que não. Bom, assim
mesmo, porque não havia alternativa, comecei a dizer-lhe, acompanhando a minha
linguagem com gestos, que não sabia como funcionavam as mudanças. Ele entendeu perfeitamente a minha dificuldade, saiu do carro e dirigiu-se ao nosso, onde a minha tia já estava
toda em alvoroço com o habitual “e agora?” e agora, etc. O homem chegou perto,
entrou, sentou-se ao volante e começou a falar em alemão, ao mesmo tempo que
exemplificava. E eu só via a minha (nossa) vida a andar para trás. Pensei mesmo
que não íamos conseguir sair dali. Mas, se já ali estávamos e até ali tínhamos
chegado, havia que tentar. E assim foi. Percebi e não percebi, o que ele
explicou. O homem saiu do carro, agradeci e ele seguiu a sua vida para nós seguirmos a nossa também.
Ganhei
coragem e entrei no carro, como se tivesse entendido na maior perfeição tudo o
que ele tinha acabado de explicar, num perfeito alemão, sabendo que eu não
entendia patavina. Mas tudo bem. Querer é poder. E lá pus o carro a trabalhar.
Com o andamento, as coisas foram indo e aos poucos comecei a “perceber” ou a
convencer-me de que estava a perceber exatamente o que estava a fazer. O carro,
esse, não se queixava. E como também não era nosso, paciência. O facto é que
durante os dez dias em que estivemos na Áustria, aquele carro só conheceu as
minhas mãos e os dois acabámos por nos entender conforme pôde ser. Ele não me
deixou ficar mal e eu não o tratei assim tão mal, uma vez que ele nunca falhou.
De regresso a Portugal, quando finalmente peguei no meu carro, até me esqueci de que
não estava na Áustria e que era o meu carro, um carro com mudanças manuais em
vez de automáticas. Lá tive que me readaptar. Naquele momento até já dava jeito
um carro automático. Paciência, a vida é como é.
E como foi bom, deslizar por aquelas estradas fora, muitas delas por baixo da terra, em túneis de muitos quilómetros, que para mim era uma novidade completa. Pelo menos o trânsito fluía, sem paragens e sem stress. Também pela primeira vez na vida, por várias vezes fui obrigada a estacionar em parques de estacionamento interiores, de uma grandiosidade impressionante, que quando entrava só pensava para comigo mesma que não ia conseguir encontrar o carro no regresso. Mentira. Fácil, fácil. E as aventuras não paravam de suceder.
Uma
vez. Numa bomba de gasolina em que parámos para abastecer, dei essa tarefa ao
meu tio, uma vez que era ele a pagar, enquanto entrei lá dentro para comprar
uma garrafa de água. Dentro do carro, a minha tia gritava para o marido, que o
melhor era ele ir comigo, senão eu não conseguiria fazer-me entender, pelo
facto de não falar alemão. Gritei-lhe que não era preciso, para grande
espanto dela. E lá fui eu. Entrei, fiquei na fila para o pré-pagamento e quando
chegou a minha vez limitei-me a dizer “wasser, bitte…”. Eu não sei alemão, mas não há ninguém que não saiba como se diz água!? Não há ninguém que
não saiba como se diz “por favor”?! Era só o que eu precisava! Depois, o que
ele respondeu, não sei, mas apontou para o lado esquerdo, pelo que depreendi
que devia estar por ali. Paguei e fui na direção que ele indicou. Lá estava
ela, a “wasser” e pronto, lá fui eu com a minha água, toda contentinha. Quando
cheguei perto dos meus tios e ela me viu com a garrafa na mão, ficou de olhos
arregalados, só porque achou mesmo que
eu não conseguia comprar uma porcaria de uma garrafa de água!?
Eles
ensaiavam o seu bom alemão. Empurravam um para o outro e evitavam falar, apesar
de saberem falar muito bem. Eu, pelo menos, não sabia mesmo. E nem isso me
impediu de me fazer entender. Como se diz em bom português “para bom entendedor
meia palavra basta”. E pronto.
Outra
vez, na bilheteira de uma estação de comboios, foi uma tourada das grandes,
apenas para pedir três bilhetes. Eles complicavam muito as coisas. Penso que
queriam mostrar que, apesar de serem estrangeiros, tinham o mérito de saber muito
bem alemão e, portanto, começavam a fantasiar, isto é, queriam adicionar ao
discurso uma série de coisas que eram absolutamente desnecessárias, tanto assim,
que nem sabiam como começar. Então começava um e apenas dizia uma ou duas
palavras para logo ser abruptamente interrompido pelo outro que dizia “eu falo”.
E começava a falar para também ser imediatamente interrompido pelo outro que
logo dizia, não, eu é que sei, e por aí adiante. O homem da bilheteira olhava
estupefacto para os dois, sem perceber nada e sem entender o comportamento de
ambos. A páginas tantas, quando achei que a situação já estava
insustentável e tinha ultrapassado todos os limites, espontaneamente, entrei eu,
interpelando-os e falando apenas isto “three tickets”, ao que o homem logo
respondeu “ah, três bilhetes”, para seu grande alívio, que já estava muito chateado.
A minha
tia, virando-se para mim, muito desapontada, vociferou “olha para isto… estamos
nós aqui há horas tentando dar o nosso melhor e vem ela com duas palavras apenas
e o problema está resolvido”?! E estas cenas repetiam-se constantemente. Há que
ser práticos e mais nada.
Outra
vez, estávamos num barco, porque apesar de ser uma nação sem litoral e,
portanto, sem mar, nem por isso perde para a beleza. A Áustria é repleta de
lagos que tornam a paisagem uma verdadeira delícia e naturalmente
riquíssima. Porque a Áustria é muito mais do que os museus e a ópera, os
grandes compositores e muitas coisas mais. A Áustria é realmente muito mais do
que isso. Os lagos, por exemplo, que tão bem compõem a paisagem e onde se faz uma
travessia naquelas embarcações simples, mas muito agradáveis, é uma coisa
maravilhosa. Para uns, é apenas uma atração turística, para outros, um
importante meio de transporte do dia a dia.
Numa
dessas vezes em que andámos de barco, sentámo-nos no bar para comer alguma
coisa e para mim pedi apenas uma água e um strudel, com que todos os dias me
deliciava. Eles foram servidos e eu fiquei pendurada. Terminaram e foram
para a borda do barco apreciar a paisagem. Passado pouco tempo veio um
empregado e fiz-lhe sinal com a mão e o dedo indicador, para perguntar pelo meu
pedido. Ele entendeu e logo respondeu qualquer coisa, acenando que sim com a
cabeça, enquanto a mão dava sinal para aguardar mais um pouco. Percebi e
continuei à espera. Logo em seguida apareceram os meus tios que, vendo-me
ainda sem nada na frente, ficaram admirados, sendo que a minha tia deu logo ordem ao
meu tio, ao seu jeito muito peculiar, para saber porque é que eu ainda não
tinha sido servida. Respondi-lhe que não era necessário, que já tinham vindo e
estava quase a sair. A minha tia calou-se, para logo se espantar uma vez mais, dizendo “mas
como é que sabes isso, se tu não sabes falar”? Expliquei-lhe que os meus gestos
e os dele eram compatíveis e nada mais. Mas ela ficava sempre alerta e sempre
espantada. A comunicação é um dom, quero dizer, pode ser um dom, sim.
Mas a
chegada não foi pacífica. Não foi mesmo. Para além do problema do carro com as
mudanças automáticas, houve ainda outro problema embaraçoso. Chegámos à
tardinha. Com a história do carro e outras coisas mais, a noite caiu. Estava na
hora de recolher, de darmos entrada na pousada, onde iriamos ficar alojados
durante o tempo em que íamos lá ficar. Eles, que tudo sabiam ou achavam que
sabiam, não conseguiam atinar com o lugar. Um dizia que era para a direita, o
outro dizia que era para a esquerda e eu no meio daquele burburinho, sem saber
o que fazer. Ao fim de umas duas horas de andarmos para lá, para cá, à procura
do local, parámos na estrada, junto a um parque de campismo para perguntar. Mas
ninguém soube dar a informação que precisávamos. Estávamos completamente no
escuro. No escuro, porque era noite cerrada e no escuro, porque não sabíamos o
que fazer. Eles continuavam a discutir quem tinha ou não razão e eu a ver a
nossa vida malparada.
A Páginas
tantas, já farta da discussão e percebendo que não nos ia levar a lado nenhum,
literalmente, decidi que a partir daquele momento descartava totalmente as
informações deles e ficávamos por minha conta. Mais uma vez a minha tia se
espantou, declarando que eu era maluca. Eles que eram eles não sabiam, como eu
haveria de saber?! E não sabia, sem dúvida nenhuma que não sabia, não tinha a
menor ideia, estava completamente sem saber o que fazer. Mas estava ainda mais
cansada dos dois a brigarem e sem conseguirem solucionar o
problema. Por isso, declarei alto e bom som, que a partir daquele momento o
problema era meu e só meu. E como vais fazer? Vais adivinhar? Nem respondi. Pensei
para comigo mesma, quando não há mais nada que se possa fazer, entrega-se para
o universo e ele resolve aquilo que está acima das nossas possibilidades. O universo
tem sempre a resposta. É preciso saber ouvi-lo. E assim fiz.
Liguei o carro e fiz-me à estrada. Ao fim de uma meia dúzia de quilómetros de condução, avisto algures na serra uma luz ou umas luzes. E pensei, é para ali que vou. Alguém há-de dar alguma indicação precisa. Mas tu não sabes o que é aquilo(?!), dizia a minha tia. Não interessa, não quero saber, é para ali que vou. Depois logo se vê. Saio da estrada, sempre naquela direção. Estrada para a direita, estrada para a esquerda, sempre na direção das luzes. Finalmente paro o carro. Tínhamos chegado ao sítio das luzes.
Chegámos! Chegámos!... Dizia a minha tia numa super excitação e o meu tio com um ar nitidamente aliviado, descontraído, mas sem dizer uma única palavra, como era seu habitual. E eu sem perceber nada. Chegámos! Olha se não fosses tu, passávamos a noite ao relento?!
Foi então que percebi que, quase por obra e graça do espírito santo, como se costuma dizer, sem fazer a mais pequena ideia, estávamos no sítio certo...
Que
canseira aqueles dois me davam!