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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Áustria - 68

 

Como é bom viajar! E a Áustria?! A Áustria onde eu nunca sonhei que um dia haveria de ir… não por não achar que não valesse a pena, muito pelo contrário, mas porque nunca pensei que se proporcionasse. E assim, do nada, lá fui eu no avião, rumo ao centro da Europa, cheia de fronteiras à sua volta e onde o mar não consegue chegar. Terra de grandes nomes, génios autênticos e únicos.

E como é linda a Áustria, meu deus! É flores por todo o lado. Até a sopa tem flores! E não foi por não saber falar alemão que não me fiz entender com eles. Perfeitamente. Foi realmente uma viagem surpresa. Os meus tios quiseram ir mais uma vez à Áustria, de onde tinham muito boas recordações. Como dizem os filhos, a sua única preocupação era descobrirem no globo, algum sítiozinho onde ainda não tivessem posto os pés. Ali não era o caso, mas por muito viajarem, este foi um dos destinos por eles repetido.

Levaram a vida a viajar. As férias eram única e exclusivamente largar tudo, fazer as malas com as suas melhores vestimentas e lá iam eles. O resto era o resto e o que quer que fosse podia esperar. Nada mais tinha importância na vida deles como tinham as viagens. Depois, chegavam sempre muito cansados, precisando de descansar, ou seja, de nada fazer. Mas assim que havia a mais pequena possibilidade de viajar, não havia cansaço que os impedisse. Todas as forças voltavam como que por magia. Era uma coisa impressionante.

É claro que depois de se reformarem foi ainda pior. As viagens eram minuciosamente pensadas e estudadas e por vezes era chegar a casa, desfazer a bagagem para serem novamente feitas e embarcar na próxima. Algumas vezes viajei com eles, como foi o caso da Áustria, por já estarem na casa dos oitenta, com algumas doenças e fragilidades físicas e os meus primos terem receio. Aí, eu tirava férias e ia com eles, para não os impedir de viajar e todos ficarem mais tranquilos.

A Áustria foi um desses destinos em que fui essencialmente por eles. Mas não me arrependo nem por um instante. Até porque sem eles talvez nunca tivesse ido, apenas porque me eram prioritários outros destinos. Mas fui e foi muito bom, tanto para mim como para eles. Aliás, se eu não tivesse ido, teria sido muito complicado. Nessa viagem a minha tia passou o tempo todo a comentar que sem mim, não sabia como se iam arranjar, porque o meu tio já não conseguia dar resposta a muita coisa e ela reclamava, mas estava sempre na dependência dele. Enfim, a idade tem as suas limitações. Mas para mim foram experiências muito bem aproveitadas e muito importantes, porque eu conheci o mundo, aprendi e tirei partido de tudo quanto vivi.

A aventura foi logo à chegada. Havia uma reserva de um carro de aluguer para nos podermos deslocar. O carro que nos deram tinha mudanças automáticas. Nem o meu tio nem eu tínhamos conduzido um carro sem mudanças, por isso pedimos para trocarem. Impossível, porque já não tinham carros com mudanças manuais, pelo que tivemos mesmo que aceitar o que havia. A minha tia logo entrou em pânico, porque o marido não ia conseguir conduzir. Então não tive outro remédio senão tomar as rédeas e sentar-me eu mesma ao volante. Só que, na verdade, eu também não tinha a menor ideia de como aquilo funcionava e era complicado meter-me à estrada sem a mais pequena noção do funcionamento daquela coisa. Mesmo assim, fui forçada a arrancar, mas logo a seguir tive que parar, sair do carro e muito sem jeito, ganhar forças para pedir auxílio ao primeiro condutor que apareceu.

Fui ter com ele, perguntei-lhe se sabia falar inglês, mas ele disse que não. Bom, assim mesmo, porque não havia alternativa, comecei a dizer-lhe, acompanhando a minha linguagem com gestos, que não sabia como funcionavam as mudanças. Ele entendeu perfeitamente a minha dificuldade, saiu do carro e dirigiu-se ao nosso, onde a minha tia já estava toda em alvoroço com o habitual “e agora?” e agora, etc. O homem chegou perto, entrou, sentou-se ao volante e começou a falar em alemão, ao mesmo tempo que exemplificava. E eu só via a minha (nossa) vida a andar para trás. Pensei mesmo que não íamos conseguir sair dali. Mas, se já ali estávamos e até ali tínhamos chegado, havia que tentar. E assim foi. Percebi e não percebi, o que ele explicou. O homem saiu do carro, agradeci e ele seguiu a sua vida para nós seguirmos a nossa também.

Ganhei coragem e entrei no carro, como se tivesse entendido na maior perfeição tudo o que ele tinha acabado de explicar, num perfeito alemão, sabendo que eu não entendia patavina. Mas tudo bem. Querer é poder. E lá pus o carro a trabalhar. Com o andamento, as coisas foram indo e aos poucos comecei a “perceber” ou a convencer-me de que estava a perceber exatamente o que estava a fazer. O carro, esse, não se queixava. E como também não era nosso, paciência. O facto é que durante os dez dias em que estivemos na Áustria, aquele carro só conheceu as minhas mãos e os dois acabámos por nos entender conforme pôde ser. Ele não me deixou ficar mal e eu não o tratei assim tão mal, uma vez que ele nunca falhou. De regresso a Portugal, quando finalmente peguei no meu carro, até me esqueci de que não estava na Áustria e que era o meu carro, um carro com mudanças manuais em vez de automáticas. Lá tive que me readaptar. Naquele momento até já dava jeito um carro automático. Paciência, a vida é como é.

E como foi bom, deslizar por aquelas estradas fora, muitas delas por baixo da terra, em túneis de muitos quilómetros, que para mim era uma novidade completa. Pelo menos o trânsito fluía, sem paragens e sem stress. Também pela primeira vez na vida, por várias vezes fui obrigada a estacionar em parques de estacionamento interiores, de uma grandiosidade impressionante, que quando entrava só pensava para comigo mesma que não ia conseguir encontrar o carro no regresso. Mentira. Fácil, fácil. E as aventuras não paravam de suceder.

Uma vez. Numa bomba de gasolina em que parámos para abastecer, dei essa tarefa ao meu tio, uma vez que era ele a pagar, enquanto entrei lá dentro para comprar uma garrafa de água. Dentro do carro, a minha tia gritava para o marido, que o melhor era ele ir comigo, senão eu não conseguiria fazer-me entender, pelo facto de não falar alemão. Gritei-lhe que não era preciso, para grande espanto dela. E lá fui eu. Entrei, fiquei na fila para o pré-pagamento e quando chegou a minha vez limitei-me a dizer “wasser, bitte…”. Eu não sei alemão, mas não há ninguém que não saiba como se diz água!? Não há ninguém que não saiba como se diz “por favor”?! Era só o que eu precisava! Depois, o que ele respondeu, não sei, mas apontou para o lado esquerdo, pelo que depreendi que devia estar por ali. Paguei e fui na direção que ele indicou. Lá estava ela, a “wasser” e pronto, lá fui eu com a minha água, toda contentinha. Quando cheguei perto dos meus tios e ela me viu com a garrafa na mão, ficou de olhos arregalados, só porque achou mesmo que eu não conseguia comprar uma porcaria de uma garrafa de água!?

Eles ensaiavam o seu bom alemão. Empurravam um para o outro e evitavam falar, apesar de saberem falar muito bem. Eu, pelo menos, não sabia mesmo. E nem isso me impediu de me fazer entender. Como se diz em bom português “para bom entendedor meia palavra basta”. E pronto.

Outra vez, na bilheteira de uma estação de comboios, foi uma tourada das grandes, apenas para pedir três bilhetes. Eles complicavam muito as coisas. Penso que queriam mostrar que, apesar de serem estrangeiros, tinham o mérito de saber muito bem alemão e, portanto, começavam a fantasiar, isto é, queriam adicionar ao discurso uma série de coisas que eram absolutamente desnecessárias, tanto assim, que nem sabiam como começar. Então começava um e apenas dizia uma ou duas palavras para logo ser abruptamente interrompido pelo outro que dizia “eu falo”. E começava a falar para também ser imediatamente interrompido pelo outro que logo dizia, não, eu é que sei, e por aí adiante. O homem da bilheteira olhava estupefacto para os dois, sem perceber nada e sem entender o comportamento de ambos. A páginas tantas, quando achei que a situação já estava insustentável e tinha ultrapassado todos os limites, espontaneamente, entrei eu, interpelando-os e falando apenas isto “three tickets”, ao que o homem logo respondeu “ah, três bilhetes”, para seu grande alívio, que já estava muito chateado.

A minha tia, virando-se para mim, muito desapontada, vociferou “olha para isto… estamos nós aqui há horas tentando dar o nosso melhor e vem ela com duas palavras apenas e o problema está resolvido”?! E estas cenas repetiam-se constantemente. Há que ser práticos e mais nada.

Outra vez, estávamos num barco, porque apesar de ser uma nação sem litoral e, portanto, sem mar, nem por isso perde para a beleza. A Áustria é repleta de lagos que tornam a paisagem uma verdadeira delícia e naturalmente riquíssima. Porque a Áustria é muito mais do que os museus e a ópera, os grandes compositores e muitas coisas mais. A Áustria é realmente muito mais do que isso. Os lagos, por exemplo, que tão bem compõem a paisagem e onde se faz uma travessia naquelas embarcações simples, mas muito agradáveis, é uma coisa maravilhosa. Para uns, é apenas uma atração turística, para outros, um importante meio de transporte do dia a dia.

Numa dessas vezes em que andámos de barco, sentámo-nos no bar para comer alguma coisa e para mim pedi apenas uma água e um strudel, com que todos os dias me deliciava. Eles foram servidos e eu fiquei pendurada. Terminaram e foram para a borda do barco apreciar a paisagem. Passado pouco tempo veio um empregado e fiz-lhe sinal com a mão e o dedo indicador, para perguntar pelo meu pedido. Ele entendeu e logo respondeu qualquer coisa, acenando que sim com a cabeça, enquanto a mão dava sinal para aguardar mais um pouco. Percebi e continuei à espera. Logo em seguida apareceram os meus tios que, vendo-me ainda sem nada na frente, ficaram admirados, sendo que a minha tia deu logo ordem ao meu tio, ao seu jeito muito peculiar, para saber porque é que eu ainda não tinha sido servida. Respondi-lhe que não era necessário, que já tinham vindo e estava quase a sair. A minha tia calou-se, para logo se espantar uma vez mais, dizendo “mas como é que sabes isso, se tu não sabes falar”? Expliquei-lhe que os meus gestos e os dele eram compatíveis e nada mais. Mas ela ficava sempre alerta e sempre espantada. A comunicação é um dom, quero dizer, pode ser um dom, sim.

Mas a chegada não foi pacífica. Não foi mesmo. Para além do problema do carro com as mudanças automáticas, houve ainda outro problema embaraçoso. Chegámos à tardinha. Com a história do carro e outras coisas mais, a noite caiu. Estava na hora de recolher, de darmos entrada na pousada, onde iriamos ficar alojados durante o tempo em que íamos lá ficar. Eles, que tudo sabiam ou achavam que sabiam, não conseguiam atinar com o lugar. Um dizia que era para a direita, o outro dizia que era para a esquerda e eu no meio daquele burburinho, sem saber o que fazer. Ao fim de umas duas horas de andarmos para lá, para cá, à procura do local, parámos na estrada, junto a um parque de campismo para perguntar. Mas ninguém soube dar a informação que precisávamos. Estávamos completamente no escuro. No escuro, porque era noite cerrada e no escuro, porque não sabíamos o que fazer. Eles continuavam a discutir quem tinha ou não razão e eu a ver a nossa vida malparada.

A Páginas tantas, já farta da discussão e percebendo que não nos ia levar a lado nenhum, literalmente, decidi que a partir daquele momento descartava totalmente as informações deles e ficávamos por minha conta. Mais uma vez a minha tia se espantou, declarando que eu era maluca. Eles que eram eles não sabiam, como eu haveria de saber?! E não sabia, sem dúvida nenhuma que não sabia, não tinha a menor ideia, estava completamente sem saber o que fazer. Mas estava ainda mais cansada dos dois a brigarem e sem conseguirem solucionar o problema. Por isso, declarei alto e bom som, que a partir daquele momento o problema era meu e só meu. E como vais fazer? Vais adivinhar? Nem respondi. Pensei para comigo mesma, quando não há mais nada que se possa fazer, entrega-se para o universo e ele resolve aquilo que está acima das nossas possibilidades. O universo tem sempre a resposta. É preciso saber ouvi-lo. E assim fiz.

Liguei o carro e fiz-me à estrada. Ao fim de uma meia dúzia de quilómetros de condução, avisto algures na serra uma luz ou umas luzes. E pensei, é para ali que vou. Alguém há-de dar alguma indicação precisa. Mas tu não sabes o que é aquilo(?!), dizia a minha tia. Não interessa, não quero saber, é para ali que vou. Depois logo se vê.  Saio da estrada, sempre naquela direção. Estrada para a direita, estrada para a esquerda, sempre na direção das luzes. Finalmente paro o carro. Tínhamos chegado ao sítio das luzes. 

Chegámos! Chegámos!... Dizia a minha tia numa super excitação e o meu tio com um ar nitidamente aliviado, descontraído, mas sem dizer uma única palavra, como era seu habitual. E eu sem perceber nada. Chegámos! Olha se não fosses tu, passávamos a noite ao relento?! 

Foi então que percebi que, quase por obra e graça do espírito santo, como se costuma dizer, sem fazer a mais pequena ideia, estávamos no sítio certo...

Que canseira aqueles dois me davam!