Um
jantar em casa da Clara é sempre um acontecimento e tanto. Há sempre alguma
coisa fora do normal. Por exemplo, o jantar é às 20,00 e às 20,30 ela ainda
está fora de casa e como se fosse a coisa mais normal desta vida, telefona a
pedir a algum dos convidados para ir adiantando o jantar, por exemplo. É só um
exemplo.
Mas
este não foi o caso. O jantar tinha sido feito pela empregada, um bacalhau
qualquer no forno que deveria estar uma delícia. À parte os atrasos normais, tudo
parecia correr bem, dentro da normalidade. Vieram umas entradas como de costume,
enquanto o bacalhau estava ainda no forno. Muito se conversou e se riu como o habitual.
As conversas foram postas em dia e tudo serve para descontrair enquanto o
bacalhau estava a tostar.
A
salada esgotou-se, o pão, o queijo e os fumados andavam de um lado para o
outro, mas já ninguém os queria. O bacalhau estava atrasado, tardava em aparecer ou simplesmente não queria ir para a mesa, quem sabe?!... O facto é que a fome
tinha ido passear e estávamos todos muito bem. Mas o tal do bacalhau especial
lá apareceu, finalmente, embora não estivesse exactamente no ponto. Mas isso não
interessava. Só tinha que ser comido e ponto final.
A
enorme travessa deu entrada na sala de jantar, fumegando a toda a pressão.
Mesmo já sem fome, é claro que todos gostariam de provar o bacalhau e talvez
comer um pouco mais da conta. É normal e a Clara ficaria toda contente, embora
não tivesse sido ela a cozinheira, mas isso também já é costume.
Servidos
os pratos com cada um dizendo “chega(!)”, só um pouquinho, é muito, está bem
assim, etc…, etc…, etc… o bacalhau chegava finalmente a todos os pratos e o
vapor pairava em todos eles, pelo que foi preciso esperar e começar pelas bordinhas. Alguns aguardavam que
esfriasse, enquanto outros teimavam em arrefecer à pressa. E as garfadas
começaram a entrar, com todos queixando-se de que estava realmente muito
quente, pois tinha acabado de sair do forno a uma temperatura altíssima.
Chegou a minha vez de experimentar o bacalhau e a primeira garfada entrou também ainda bastante quente. Tão quente que nem deu para saborear devidamente. E seguiu-se a segunda garfada que me deixou um pouco desconcertada pelo sabor. Seria ainda de estar quente? Esperei uns segundos e fui à terceira garfada. Não, alguma coisa não estava bem. Fui à quarta garfada e corri para a casa de banho mais próxima para deitar fora. O bacalhau estava intragável. Em meu entender estava azedo. Dei o alerta, avisando expressamente o meu filho que não comesse e disse em voz alta que o bacalhau não estava bom. Todos ficaram parados olhando para mim e uns para os outros, enquanto a Clara declarou, com o seu ar de autoridade número um, que não havia a mais pequena possibilidade de tal acontecer.
Ela podia dizer o que quisesse, o que
eu sabia é que o bacalhau estava azedo e intragável. Comer aquilo era ir parar
ao hospital, com toda a certeza. E enquanto eu continuava a alertar para terem
cuidado, a Clara continuava veemente na sua decisão de “não, não pode ser, é de
todo impossível!”. E queria à força que todos comessem o bacalhau que ela
afirmava com toda a segurança que estava perfeito, porque não podia estar
estragado.
Mas o
bacalhau estava efectivamente azedo, independentemente do esforço que ela fazia
para que acreditássemos no contrário. As pessoas começaram a comer e começaram
a constactar o facto. Alguma coisa não tinha corrido bem, sem que a Clara não o
quisesse admitir. Mas isso também era normal. Contudo, comer aquilo, era
impensável. E os pratos começaram logo a ficar parados, os talheres sem ir à
boca, enquanto a Clara continuava a debater-se fervorosamente na sua tese de
que o bacalhau não tinha como estar estragado. A questão é que contra factos não há argumentos, sejam eles quais forem e venham donde vierem e a Clara não entende isso.
A
travessa tinha saído do congelador directamente para o forno. Ah(!), então não
era do dia. Era coisa já de trás. Mas isso só por si também não justificava
nada. Tinha tido um outro jantar há alguns dias, com uns colegas de
trabalho e pediu à Fátima que fizesse duas travessas
de bacalhau. Mas só foi preciso uma e por isso a segunda tinha ido directamente
para o congelador. Não havia como não estar bom, continuava. Só que por esta
altura já todos estavam convencidos do mesmo eu. E embora ela tivesse dado
duas garfadas sem o admitir, o peso de todos estarem do mesmo lado, pesava,
porque agora ela estava sozinha, debatendo-se ainda por uma causa aparentemente
perdida. E neste momento já ninguém estava mesmo interessado no bacalhau. Além
de que também já não havia muita fome, por isso o bacalhau foi de vez retirado
da mesa de jantar, bem como os pratos.
Começaram
a chover as alternativas para o bacalhau, já que todos estavam a contar com
isso e a Clara queria até ir fazer alguma coisa para substituição. Não
querendo dar mais trabalho, todos começámos a dizer que não era preciso mais
nada e tal e coisa, coisa e tal, mas o Fernando decidiu que se pediriam pizas
para concluirmos o jantar. E com o acordo de todos, assim fez.
Entretanto,
comentário daqui, comentário dali, a Clara um pouco desapontada, connosco a tentar
desvalorizar a questão, que o que importava era estarmos todos juntos, etc…,
continuava a falar do outro jantar em que os colegas tanto apreciaram o
bacalhau, que estava óptimo e ninguém tinha ficado doente. O bacalhau, que
tinha sido feito pela Fátima, mas duas travessas era demais e por isso foi só
uma para a mesa. Entretanto chegam as pizas e toda a gente com fome ou sem fome, se atirou às pizas que estavam óptimas, apetitosas e gulosas e já ninguém se
lembrava nem queria saber do bacalhau.
Mas a
Clara, contra tudo e todos, continuava em jeito de resmunganço, sempre a dar a
entender que estava aborrecida e sempre sem entender a cena do bacalhau, que
afinal não era absolutamente fresco, uma vez que já tinha sido feito
anteriormente para outro evento. Que tinha ido para o congelador e agora tinha
sido retirado directamente para o forno.
Sim,
mas quando no outro jantar se tirou a primeira travessa do forno para ir à
mesa, a segunda deu entrada no forno. E só depois de se perceber que essa segunda
não era mesmo necessária, se decidiu retirar do forno para ir para a congelação. Ah!?... ah mesmo!!!…
Pois
é. E todos ficámos estupefactos a olhar para a Clara, com ela mais que
surpreendida. É que a travessa entrou no forno bem quente uns minutos, para de
seguida ser retirado. O suficiente para o arruinar.
Estava finalmente esclarecido o mistério do bacalhau azedo, provavelmente cheio de salmonelas mas que, segundo opinião dela, não tinha a mais pequena hipótese de estar estragado(!?)…
E fim de papo.