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sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Um dia com a Clara - 23


Era o mês de Agosto e a Clara já andava há algum tempo a dizer que queria ir passar uma semaninha com a mãe a Setúbal. Assim, pegaria na Sara e no Afonso, para também estarem com a avó, e comigo seríamos cinco. A mãe iria apreciar. Depois, estar com a Clara é sempre uma aventura, mas acima de tudo uma grande incógnita. Depende dos “ventos”…

O Verão decorria, os dias passavam e a Clara continuava a falar naquilo que seria uma semana, mas que sempre que falava ia encolhendo. Já não era uma semana mas cinco dias, que depois passaram para três e finalmente encolheu ao ponto de irmos num dia e voltarmos no outro. Uma semana compacta, digamos, porque os acontecimentos, esses seriam extensos, extensos, sem nunca mais acabar.

E o famigerado dia chegou, sendo que até esse foi avançando, avançando… já não podendo ser de manhã, nem depois do almoço e nem à tarde, por isso, à noitinha lá fomos nós finalmente, alegres e contentes buscar a mãe, que não parava de reclamar por causa da semana que tanto tinha encolhido.

Já a caminho de Setúbal, a Clara várias vezes fez notar que no dia seguinte logo de manhã, iríamos para Tróia, portanto, que ninguém se atrasasse. Era quase uma ordem. Contudo, sendo que a Sara não pôde ir connosco por causa de um festival de música qualquer e só no dia seguinte se juntaria a nós em Setúbal, eu já não estava muito bem a perceber como é que ela queria ir logo de manhã bem cedo, a ponto de ter que fazer um aviso prévio. Ainda por cima não sabia a que horas ela chegava. A coisa começava a ficar enrolada, bem ao jeito dela. Mas eu nem me dava ao trabalho de fazer perguntas. Só a mãe estava constantemente a perguntar “e a Sara, quando é que chega?” e a Sara quando é que chega. Mas não havia mesmo resposta para lhe dar, o que muito a enervava.

No outro dia logo de manhã, com efeito, comecei a ouvir a mesma cantilena de que tínhamos que nos despachar. Ainda eu estava na cama já ouvia a Clara com o mesmo disco. Mas a Sara ainda não estava e nem se sabia a que horas chegaria?! Se calhar nem praia ia haver. Mas isso para mim também não importava nada. O certo é que a mãe tinha-se levantado bem cedo para fazer face aos planos furados da Clara. E agora perguntava “então e a Sara quando é que chega”? E a resposta era sempre “não sei”. Posto isto, olhava para mim e entre dentes murmurava “mas esta rapariga é maluca ou quê?”

Por ali ficámos toda a manhã, até que a Clara informou que afinal a Sara só chegava à hora do almoço, pelo que logo a seguir iríamos para Tróia. Mais um aviso à tripulação. E para isso tratou de marcar almoço na churrascaria ao lado de casa, para termos mesa a horas e nos despacharmos para ir, mesmo sem saber ainda bem a que horas chegaria a Sara, porque vinha de boleia com uma amiga. Está bem, pensei comigo mesma. Por mim estava sempre tudo bem. O Afonso também tanto lhe fazia. Só a mãe estava numa inquietação cada vez maior. Ela só via o tempo a passar e nada a andar.

O almoço foi devidamente encomendado para não haver atrasos e ao meio-dia a pontualidade imprevisível da Clara insistiu para que tomássemos os nossos lugares na churrascaria e até fôssemos pedino o que já estava encomendado, para não perdermos tempo. Sendo que não poderíamos ir sem a Sara, como é que se justificava tanta pressa? Era daquelas coisas assaz estranhas. Parecia uma gozação com o povo. Mas como era a “semana” da Clara, tínhamos que nos ajustar. Sem comentários.

As sardinhas vieram para a mesa, a salada, o pão, as azeitonas e a Clara, que ainda não tinha tomado o assento dela, porque andava dentro e fora, fora e dentro, sem conseguirmos perceber qual era a tarefa, lá veio finalmente e quando pensávamos que se ia sentar, anunciou que enquanto esperávamos pela Sara, que estava quase a chegar(?), ela, Clara, ia dar um pulinho ao horto(?) e já, já, estaria de volta para o almoço que nós estávamos precisamente a começar(!)…

E a mãe e eu olhámos uma para a outra, não querendo acreditar no que acabávamos de ouvir. Eu, por mim, com as sardinhas à minha frente, queria lá saber do resto? Mas a mãe estava que não se continha. Incrédula no que acabava de ouvir, porque o horto não era propriamente ali ao lado. Ficava a uns bons quilómetros, não sendo precisamente a altura certa para isso, o que a deixou completamente passada e quase fora de si, tentando controlar-se conforme podia. Deve ter pensado o mesmo que eu, lá se vai a ida a Troia!... O Afonso sempre de telemóvel na mão, passava-lhe tudo ao lado. Era como se ali não estivesse. Agora até eu já tinha dificuldade em admitir se iríamos à praia ou não.

E lá partiu em direcção ao horto, enquanto nós resolvemos esquecer tudo para nos concentrarmos nas sardinhas que tínhamos à nossa frente a rir-se para nós. O resto era o resto. Uma coisa de cada vez. Comendo a saboreando, descontraindo com uma piada aqui, outra ali, já estávamos na sobremesa quando a Clara chegou. O horto estava fechado!? Oh!... A Clara sentou-se e logo de seguida chegou um carro com duas garotas lá dentro. A Sara acabava de chegar. As coisas estavam a compôr-se.

Eram precisamente cinco horas da tarde quando chegámos à outra margem. Já tínhamos feito a travessia no barco e caminhávamos agora pelo passadiço que nos levava à costa, o que não era muito fácil, dadas as dificuldades de locomoção da mãe. Mas devagar, devagarinho, para ela aguentar a caminhada, dizendo umas parvoíces para rir e descontrair, lá íamos nós. A Clara ordenou ao Afonso que abrisse o chapéu de sol e fosse ao lado da avó para que ela não apanhasse muito sol. O chapéu era vermelho e a mãe com as suas vestes de praia, enfiada numa longa túnica de cores vivas, mais parecia um andor numa procissão e nós atrás, em passos de tartaruga. O Afonso, discreto e descontraido como sempre, embora com o chapéu aberto, tapava tudo menos a avó e nós ríamos. Ríamos de tudo.

Chegados ao outro lado, finalmente abancámos e cada um se aninhou na areia ao seu jeito. A páginas tantas, decidi que me apetecia fazer uma caminhada e logo a Clara se levantou para me acompanhar. Vendo-nos levantar, a mãe quis saber se também podia ir. Respondemos que sim, mas fomos andando sem lhe prestarmos muita atenção e só já muito adiante é que demos pela ausência dela, deduzindo que teria desistido. Quando chegámos levámos uma enorme rebocada porque ela não conseguiu ir no nosso ritmo, e nós nem ao menos tínhamos esperado por ela. A Clara e eu estávamos cansadas e suadas e fomos para a água, pelo que todos nos seguiram. E assim se passaram umas horinhas bem passadas, entre o sol, a água e o descanso. A tarde já ia avançada, pelo que decidimos levantar o acampamento. Os barcos eram de hora a hora, sendo que de um lado saíam à hora e do outro à meia hora.

Pegámos na tralha e preparávamo-nos para começar a caminhada de regresso, quando a Clara disse “esperem… esperem um bocadinho”. Cansados, virámo-nos para ela para perceber o que seria. E largando a tralha na areia começou a despir-se novamente, dizendo que lhe apetecia um último banho. Um último banho, como se não tivesse já tido banhos suficientes?! Era tudo menos compreensível. E com toda a calma e descontracção, despiu novamente a roupa que tinha acabado de vistir, dirigindo-se para a água, onde entrou parecendo uma diva, calma e tranquilamente, com ar de quem saboreava o seu primeiríssimo banho, deixando-nos estupefactos e completamente sem reacção. Parecíamos estátuas, ali especados à espera dela. A mãe estava possessa da vida. As atitudes da Clara sempre a surpreendiam, como se não conhecesse a própria filha, o que me dava um imenso gozo.

Finalmente e uma vez mais iniciávamos a caminhada de volta para o barco. O sol já se tinha posto e a noite aproximava-se vagarosamente. Estávamos todos esfomeados, mas até chegar a casa ainda tínhamos bastante que nos aguentar. Entretanto havia a feira do artesanato e a Clara queria ir, apesar de mais ninguém estar interessado. Mas também havia um outlete ocasional no interior do edifício novo, a que a Sara manifestou vontade de ir. Era certo que a noite ia ser longa. A mãe só queria saber a que horas chegaria a casa porque dava sinais de fadiga. Então a Clara decidiu que iríamos ao outlet e depois jantar, dado o adiantado da hora. E mais uma vez a mãe boquiaberta e os olhos espantadíssimos, olhava para mim como que a pedir socorro. Fazer o quê?

Entrámos no edifício para ir às lojas, mas aí deparámo-nos com um senão. A entrada era paga e ninguém estava para esses ajustes. Mas a Sara e o Afonso queriam entrar. As pessoas chegavam, dirigiam-se à bilheteira e entravam. Enquanto isso, ficámos ali, pensando se valeria a pena ou não, pagar para entrar. Decidir e não decidir, decidi mesmo sentar-me num dos bancos que estavam cá fora. Estava morta de fome como todos os outros. A mãe, aproveitando a minha deixa, sentou-se ao pé mim, sussurrando as coisas do costume “com esta rapariga é sempre assim… é tudo uma confusão, não tem horas para nada”… o costume. E enquanto aguardávamos a decisão da Clara, chegou um grupo grande que tirou os bilhetes e preparando-se para entrar, a Clara com os dois, um de cada lado, como quem não quer nada, enfiou-se no meio do grupo e mesmo sem bilhetes, enfiaram-se todos lá para dentro.

Ups! Eu e a mãe enfiámos a nossa cara no chão, virámo-nos para o outro lado fingindo não ver, nem saber de nada e a vergonha consomíamo-nos. Era demais. E o pior é que agora tínhamos mesmo que esperar, esperar, até que os três se cansasssem de lá estar ou aguardar até ao fecho das vendas que era às vinte e uma horas. Era realmente preciso ter muita paciência e a mãe aproveitou para uma vez mais descascar das atitudes da filha, deitando cá para fora tudo o que lhe vinha à cabeça.

Olhando para o relógio, já lá ía meia hora. Tanta coisa para ver, perguntava a mãe. E apareceu outro grupo de se dirigiu à bilheteira para comprar os bilhetes. A mãe levantou-se dizendo que estava farta. Vagarosamente, aproximou-se da entrada fingindo que estava a espreitar, e quando o último grupo entrou, misturou-se no meio deles e fez exactamente o que a Clara tinha feito. Depois de ter falado o diabo da filha, fez precisamente o mesmo. Eu estava passada de todo. Aquilo era uma família de desnaturados. Não se podia confiar mesmo em ninguém. Os empregados da bilheita olhavam para nós vendo o número reduzir, reduzir, e pensando sabe-se lá o quê. Pareciam ciganos! Claro que deram pela entrada sem bilhete da Clara e dos filhos. Claro que deram pela entrada sem bilhete da mãe. Só restava eu. Eu olhava para o outro lado fazendo-me de desentendida e distante dali, para não pensarem que era da mesma laia. E na verdade não sabia mais se ria ou chorava.

Faltavam quinze minutos para fechar as portas quando o empregado da bilheteira, dirigindo-se a mim, teve a gentileza de me convidar a entrar, pelo facto de estar quase a fechar. Apanhada de surpresa e ainda envergonhada, como quem não quer nada e fazendo-me pouco interessada, respondi com uma certa desplicência que sim e agradeci. Finalmente, agora até eu estava lá dentro. Ao fim e ao cabo tínhamos entrado todos e sem pagar! Espantoso.

Havia roupa por todos os lados, pendurada, caída no chão, enfim, era mesmo um festival ou uma feira. Uns experimentavam, outros viam as marcas e então dou de caras com o meu pessoal “olá Lilly” disse a Clara. Já vamos embora. Pois, já não era sem tempo, pensei. E só mesmo porque está na hora de fechar. A Sara comprou um top e o Afonso uma camisola. A mãe já tinha esquecida o cansaço, lamentando não ter encontrado nada para ela. Enfim… sem comentários.

O que se seguiria agora? O Afonso viu um restaurante de Québab e fez questão de dizer que lhe apetecia jantar québab. Québab, que raio de coisa é essa, pergunta a avó. E todos começaram a rir. Québab, mãe, dizia a Clara, é bom, muito bom. Nunca tal ouvi, repondia. Vamos, dizia a Sara, estou cheia de fome, enquanto todos ríamos dos comentários da avó por causa do québab. Embora lá. Vamos todos ao québab. E os ânimos melhoraram. Entrámos, a Clara foi explicando à mãe o que era, por conta da cara feia que ela fazia e a Sara e o Afonso já se foram sentando.

Cada um com seu québab preferido, demos início ao jantar. Estávamos todos esfomeados e esfalfados. Não víamos mais nada à frente. A mãe comendo e comentando as mais diversas coisas, enfim, o costume. Alguns momentos de silêncio e de repente a Clara lembra-se de que ainda queria ir à feira do artesanato. Aí, todos os québabs tiveram uma ligeira pausa, enquanto digeríamos o que ela acabava de dizer. E todos em silêncio pensávamos o mesmo. Ir à feira do artesanato, ainda, àquela hora? Era assim tão importante? Até que a Sara quebrou aquele momento de impace, dizendo que não estava absolutamente nada interessada em ir à feira do artesanato. Logo de seguida o Afonso também barafustou. A avó aproveitou a deixa para se tentar impôr, dizendo que estávamos todos muito cansados e eu fiquei aliviadíssima por não precisar de me manifestar.

A ideia da Clara era absurda. O tempo para ela não era realmente igual ao das outras pessoas. Para começar, parecia que nunca se cansava e por aí fora. Faltavam pouquíssimos minutos para as dez e meia, hora de saída do próximo barco. E a Clara ainda queria andar cerca de uma hora na feira do artesanato para apanharmos o último barco que saía às vinte e três e trinta?! Perante esta expectativa ficámos todos com o que restava do québab entalado na boca, olhando uns para os outros, sem a menor vontade de ficar por ali mais uma hora. Não, mais uma hora não, nem mais feiras nem mais nada. A esta altura o povo só queria era chegar a casa e deitar-se. Perante este cenário pouco ou nada animador, de repente, todos se levantaram ao mesmo tempo e num rompante impressionante, cada um empurrando a sua cadeira para trás, com uma mão nos seus pertences e a outra no que restava do québab, desandámos dali a toda a velocidade, como se fôssemos uns ladrões, ou uns malfeitores, sem ter pago a conta, correndo o quanto podíamos, para conseguirmos apanhar o barco. A mãe ia quase de rastos. A Clara dizia, dá-lhe o braço daí que eu dou daqui e Afonso vai à frente para pedir ao homem para esperar um pouco porque vai aqui uma senhora que tem dificuldade em andar. Mas a mãe, pela primeira vez nem se queixava, dando às pernas o quanto podia. Pareciamos autenticamente uns doidos varridos de todo. Só vendo para crer. E no meio disto tudo ainda ríamos do caricato da situção. Fazer o quê?

Finalmente estávamos no barco. Um barco muito bom que nem se percebia que já tinha saído e que estávamos quase a chegar. Sentados, ninguém falava. Só a mãe de vez em quando perguntava “mas nunca mais saímos? Viemos a correr para quê?” Mas já ninguém respondia e já ninguém ouvia…

Um dia com a Clara e tudo isto num só dia. Uma semana como não seria?!


domingo, 11 de outubro de 2015

A Teca - 22


Os meus nervos estavam em franja! Em menos de meia hora o autoclismo já tinha tido pelo menos umas dez descargas. Que raio se passava ali que eu não estava a perceber? Mas havia tanta coisa com ela que eu não entendia mesmo!... Por exemplo, com metro e meio de altura, como tinha ela conseguido um emprego de hospedeira da Sata e ainda por cima com o grave problema da fobia das “alturas”(?)… enfim, só mesmo nos Açores.

 

À custa dessa cena das “alturas” passaram-se episódios com os quais até hoje me rio sozinha.

 

Uma vez chegou ao porto de Ponta Delgada um navio no qual vinham “macanudos”, isto é, radioamadores. E como os nossos homens eram radioamadores, lá fomos os quatro passar uma tarde no navio, com direito a jantar a bordo, o que foi bem divertido. 


À chegada, a maré estava baixa e a escada do cais ao navio estava praticamente na horizontal, com uma inclinação mínima. Não houve problema algum. O problema foi na volta. Passamos tantas horas lá dentro que, na saída, a maré estava cheia e o navio tinha subido. A escada estaria a cerca de quarenta e cinco graus. Para mais, era noite cerrada e a iluminação do cais muito pobre. Eles saíram à frente, depois eu e a seguir a Teca (Teresa). Isto, se ela tivesse conseguido sair. Já eles iam no final da escada quando ela chegou à porta do navio e se apercebeu da situação em que estava. Aí deu um grito enorme e começou a chamar o marido. Ao ouvi-la chamar ele parou subitamente e voltou-se para trás. Aliás, os dois viraram-se. E ela continuou a gritar “Oh José Manuel, vem me buscar”, na sua bela pronúncia açoriana da ilha Terceira. 

 

O José Manuel que, em contraste com ela, era alto e espadaúdo, mais do que habituado àquelas cenas, não deu muita corda. Disse-lhe que descesse, porque não havia problema. Mas ela insistia para ele a ir buscar e levar ao colo, porque ela não conseguia sair dali. O meu marido que era um gozão desgraçado e gostava de castigar a fraqueza alheia, respondeu-lhe que podia ficar lá a noite, caso não quisesse descer, e os dois desligaram literalmente, pondo-se na alheta. Tal e qual. Sobrou para mim, claro está. A verdade é que ela tremia que nem varas verdes e agarrava-se ao corrimão com todas as forças que tinha, o que tornava tudo mais difícil. Então foi a minha vez de gritar pelos dois, mas eles não quiseram saber. Pronto, aquela cena estava-me destinada. Missões impossíveis eram sempre comigo.

 

Comecei a fazê-la entender que eles se estavam borrifando e que ela tinha que me ajudar para a tirar dali. Mas ela não queria saber de nada, não queria sair. Olhava lá para baixo e dizia que morria e gritava, gritava e… um Deus nos acuda. Finalmente tive uma ideia. Peguei num lenço que tinha ao pescoço, fiz uma venda e coloquei nela, pedindo-lhe para fechar os olhos e se esquecer de onde estava. Curiosamente, ou porque percebeu que não tinha alternativa, lá se acalmou. Depois, disse-lhe que se segurasse a mim como quisesse, que eu iria conduzi-la. E lá vinha ela, agarrada a mim com unhas e dentes, tremendo o corpo todo, tremendo a voz, que apelava a todos os santinhos e mais alguns. Mas passo por passo, degrau por degrau, lá conseguimos chegar à base, com imensa dificuldade, porque ela levava todas as minhas forças. Quando lhe disse que podia tirar a venda e abrir os olhos, certificando-se de que estava já no cais, livre da altitude, olhou para cima, curvou-se e desatou a rir, a rir, completamente histérica. Ela ria descontroladamente e eu assoprava por todos os lados, da tensão de carregar com ela, que não tinha sido propriamente fácil. Vamos embora, dizia-lhe eu, insistindo, porque já tínhamos perdido de vista os homens e ela já não tinha a menor pressa. Apenas, à sua maneira, libertava-se também da carga emocional a que tinha sido submetida.

 

Outra vez… alguns anos depois, já nós tínhamos regressado ao Continente, veio a Lisboa a uma consulta na maternidade Alfredo da Costa e depois foi ter comigo à RTP para irmos para minha casa, onde ela ficava sempre que vinha. E foi à maternidade sozinha. Tinha que apanhar o elevador para ir ao primeiro andar, mas não conseguiu porque o elevador era muito aberto e via-se tudo e lá vinha o problema das alturas. Então decidiu ir a pé. Só que, a meio, deu-lhe a “travadinha” e lá veio novamente a questão. Ficou paralisada, sem saber o que fazer e começou aos gritos. Passou um homem de bata branca e ela não fez mais nada: agarrou-se ao homem com unhas e dentes. Com a voz entramelgada e gaguejando por todos os lados, pediu-lhe muitas desculpas e só dizia “tire-me daqui, tire-me daqui”… o homem de branco que, por acaso, era médico e por acaso compreendeu a situação, pediu-lhe para se acalmar que ia tirá-la dali e lá subiu as escadas agarrada a ele, devagar… o costume. Ela contava-me aquilo rindo que nem uma doida e eu vendo a cena toda. Com um caraças!

 

Mas depois, na RTP fez-me outra cena inesquecível. Até hoje, está-me devendo essa.

 

O edifício da cinco de Outubro, que agora é o Hotel Zurik, era naquela altura a sede da RTP. Com treze andares, o edifício tem vários elevadores. Do lado onde eu trabalhava, sétimo andar, tinha dois elevadores que, por uma questão de poupança de energia, paravam alternados, de dois em dois andares. A Teca foi ter comigo até ao sétimo, sem problemas, porque os elevadores eram estanques, não se via nada para fora. Chegou ao sétimo andar e foi ter à minha sala. Então, quis ir tomar um cafezinho. Eu não tomava café, mas como ela queria, claro, lá fui com ela. E agora começa a tourada. O sétimo andar não tinha máquina de café porque também as máquinas de café eram de dois em dois pisos. Que aconteceu então? Era preciso subir ou descer um andar. Os elevadores, neste caso, não serviam, pelo que, toda a gente ia a pé. E ela não se opôs. Abri a porta de acesso à escada, entrámos no patamar e quando íamos começar a subir a escada ela joga-se ao corrimão e começa a gritar que vai cair. De repente, nem me lembrava daquele problema, mas logo me veio à ideia a cena das alturas e disse-lhe que só caía lá baixo se quisesse, porque nunca ninguém tinha caído. Além disso, as escadas tinham largura suficiente para se encostar à parede e comigo ao lado dela, do lado do corrimão, nem dava para ver a altura. Então, lá se acalmou, encostando-se à parede, conforme lhe sugeri. E começámos, aparentemente, subindo as escadas com calma e tranquilidade, mas quando eu achava que não havia problema nenhum, ela desata outra vez aos gritos, agarrada a mim, “ai que eu caio, ai que eu morro”… e dali não saíamos… e o pior é que eu não queria de maneira nenhuma que, naquele preciso momento, aparecesse quem quer que fosse e nos visse naquela cena. Aquele era o piso dos engenheiros e eu não queria aquela cena. E enquanto olhava para a porta de cima e para a de baixo, aflita, pedindo a Deus que não aparecesse ninguém, perguntei-lhe o que é que se passava agora, mas antes que ela me respondesse, rapidamente percebi. A parede tinha acabado e começava o envidraçado que acompanhava a escada desde a raiz ao topo do edifício. Ou seja, o patamar entre os dois lances das escadas era panorâmico. Inevitavelmente, ela olhava lá para baixo e ai Jesus que morro, que caio, etc. 

 

Imediatamente a puxei dali, o que foi fácil - porque não tinha onde se agarrar -, encaminhando-a para o segundo lance. E mais uma vez ela foi atraída para o corrimão, onde se agarrava com quanta força tinha, naquela histeria toda, olhando para baixo como se o mundo fosse acabar ali mesmo. Puxei-a para dentro e atirei-a contra a parede, mas a minha preocupação continuava: o medo de que alguém aparecesse. Aliás, só por sorte ainda não tinha aparecido ninguém e eu já não sabia mais o que fazer com ela. Tentei que se acalmasse, apelando ao bom senso que, claro, nestas alturas não funciona. Não tem como funcionar. O irracional está à solta, sem comando. Tremia ela e tremia eu. E o pânico era tanto, que se estendeu pelas escadas. Parecia uma cobra, agarrada aos degraus. E quanto mais eu lhe dizia para não olhar para baixo, mais ela se sentia atraída para o abismo. Comecei então a encorajá-la a rastejar, porque eram só mais uns degraus. Olhando para cima, apercebeu-se de que eu estava certa e rastejando, chegou ao patamar de cima. Recompondo-se, pôs-se de pé. Abri a porta que dava para o interior do edifício e a escada já tinha ficado para trás. Fomos à máquina do café e já com o café na mão, começámos as duas a rir, a rir que nem duas tontas. Para mim, o mais importante é que não tinha aparecido ninguém. A minha "reputação" estava salva.

 

Entretanto, já tínhamos demorado tanto com aquela cena que eu lhe disse que viesse bebendo o café pelo caminho. E ela já nem se lembrava que a tortura se ia repetir, até eu abrir novamente a porta da área de serviço. Antes que ela começasse novamente com os pânicos, falei-lhe com toda a seriedade para ter calma e não olhar para lá. E fazendo um esforço, lá foi, empurrada por mim, começando a descer a escada. Mas não durou muito o esforço. Lá se deitou novamente no chão, só que agora havia mais o café, que tremia por todos os lados. 

 

Sentei-me ao pé dela, uma vez mais, aterrada, com medo que alguém viesse e pedi-lhe que bebesse mais um gole de café, talvez ajudasse, pensei eu, que não bebo café. Mas nem ela conseguia levar à boca o copo de plástico, nem ouvia nada do que eu lhe dizia, só ai ai ai… ai ai ai… tirem-me daqui… que cena, que canseira! Eu não sabia para que lado me virar. Era o café, era ela, era eu, era tudo fora de controlo. Lá veio rastejando enquanto eu tentava tapar-lhe os olhos, evitando piorar o que já estava o pior possível. E com um esforço terrível lá conseguimos chegar. Pronto, porta fechada, escada para trás, ela ria que nem uma perdida. E eu ria também, pois.

 

E agora a cena do autoclismo que não parava. Eu estava provisoriamente numa casa de uma das minhas irmãs, porque a minha casa estava em obras. O meu marido estava nos Açores e eu estava com o meu filho na casa do Alto de S. João, uma casa que ela alugava a estudantes, num prédio muito antigo, onde tudo era antiquado. A casa de banho era espaçosa, mas tinha logo à entrada, do lado direito, o lavatório e a seguir a sanita, com um autoclismo cuja descarga era accionada por um cordão de metal que terminava numa maçaneta de madeira e que caía mesmo ao lado do lavatório.

 

A Teca estava a arranjar-se porque ia sair à noite. E pouco a pouco ia à casa de banho. Até aí tudo bem. Porque é que de cada vez que ia à casa de banho puxava o autoclismo, isso é que eu não conseguia entender! Primeiro, pensei que não estivesse bem dos intestinos, mas depois percebi que não podia ser, porque assim que entrava puxava logo a descarga. E quando eu já estava que não aguentava mais aquilo e me dispunha a averiguar, eis que a oiço falando sozinha “ah… corisco mal amanhado!” (uma expressão muito característica dela). Percebi, então, que não passava de um simples engano. Ela simplesmente confundia a maçaneta do autoclismo, que ficava pendurada ao lado do lavatório, com a luz do tecto que era logo à entrada, um interruptor normalíssimo. Aí, sozinha comigo mesma, não resisti à tentação e dei uma enorme gargalhada, porque eu própria já tinha cometido o mesmo erro, só que uma só vez, enquanto que ela repetia-o constantemente. 

 

Paciência, a Clara que se preparasse com a conta da água.