Mohamed
era paquistanês com nacionalidade inglesa. E como um bom muçulmano, fazia
questão de ser tratado por “Mohamed”, esquecendo por completo o seu nome. É que
assim ninguém teria dúvidas quanto às suas origens. E fazia parte de uma equipa
de técnicos ingleses contratados pela RTP, para a instalação do novo Estúdio com
equipamento todo moderno àquela data.
Eu acabava
de chegar do Hare Krisnha, onde tinha
ido almoçar, e onde de vez em quando ia, para variar a comida. Por acaso havia
arroz indiano que eu adoro e decidi levar um prato para me deliciar ao lanche.
Ao entrar na RTP dirigi-me imediatamente ao novo estúdio onde encontraria
Mohamed, a fim de partilhar com ele o meu precioso arroz, pois calculei que ele
o apreciaria tanto quanto eu.
Mahomed
não saía daquele estúdio nem por nada. Os outros cumpriam um horário, saíam
para ir almoçar, para ir jantar, etc…, Mohamed não arredava pé enquanto não
terminasse a tarefa a que se tinha proposto e assim passava os dias ali
enfiado, quase sem comer nem dormir. Sem comer, porque não comia da nossa
comida. Sem dormir, por conta das largas horas em que se embrenhava. Tinha o
computador pessoal sempre ligado apenas para falar com a mulher e os filhos
pequenos e matar saudades.
Agora
trabalhava sozinho. A equipa tinha-se ido embora, só ele ficara. Todo o
trabalho estava por sua conta. A única pessoa com quem falava era comigo.
Negava-se a falar com quer que fosse.
O dia
anterior tinha sido um pesadelo. O Director reuniu com os subdiretores e segundo
eles, Mohamed tinha criado um problema. Um problema não, um problemão. E como
intermediária fui imediatamente chamada. Eu não conseguia compreender porque
não falavam directamente com ele ou porque não mandavam um técnico? Melhor ou
pior, toda a gente falava inglês. Seria preconceito por ele ser muçulmano? O
facto é que foi em mim que delegaram as conversações. É certo que eu era
secretária de Direcção, mas ainda assim não seria só por isso. Provavelmente achavam-se todos bons demais para falar com um reles técnico de manutenção de
televisão de origens pouco desejáveis, de acordo o o padrão deles. Mas o rapaz
até tinha nacionalidade inglesa!?...
Enfim,
o certo é que o material tinha chegado num camião TIR que, conforme ordens
expressas de Mohamed, estava estacionado mesmo à porta principal do edifício da
RTP. E isso implicava muita coisa indesejável. Interrupção de trânsito em plena
Avenida 5 de Outubro e àquela hora! A qualquer que fosse a hora já era mau, mas
às seis horas da tarde era péssimo. Seria mesmo necessário ordem policial para
desviar o trânsito, o que causaria aos condutores um enorme transtorno.
E lá
tinha que ir eu levar o recado. É claro que eu chegava ao pé dele e não dizia
que sua excelência o meu director não queria o camião TIR à porta. Eu chegava e
dizia-lhe muito simplesmente “aqueles idiotas” não querem o camião TIR aqui.
Mas isso eles não sabiam nem tinham que saber. E Mohamed estava-se nas tintas.
Ele queria e quem mandava era ele. Estava-se nas tintas para quem quer que
fosse. E a bem da verdade, também se recusava a falar fosse com quem fosse, a
não ser comigo. Dizia que não queria conversas com ninguém, apenas tinha que
fazer o trabalho dele e ninguém lhe dava ordens. Realmente eu seria a última
pessoa a dar-lhe ordens. Era apenas portadora delas, que eram mais mensagens
que outra coisa. Mas agora a questão ia um pouco mais além. Era preciso
dissuadi-lo a encontrar uma solução para meter os equipamentos no interior do
edifício sem que o camião tivesse que estacionar à porta. Para isso teriam que
vir em carrinhas pequenas, transferidos do camião parqueado num sítio que não
perturbasse a ordem pública, para então se dirigirem à RTP e descarregarem os
equipamentos.
E
quem disse que Mohamed queria isso? Ele dizia que os equipamentos eram muito
sensíveis e não podiam andar a passar de um lado para o outro. Portanto, essa
hipótese estava completamente fora de questão.
Muito
bem. Percebi, tomei nota e voltei aos meus superiores hierárquicos para lhes
comunicar a decisão dele e o motivo da recusa em retirar o camião da porta da
RTP. Os três ficaram lixados, por assim dizer, não sabendo mesmo o que fazer. A
questão era tão delicada que começaram a implorar-me que o convencesse a
dissuadi-lo. Apelaram para o facto de ele se entender muito bem comigo e da
necessidade de não serem eles a interferir para não haver problemas e chatices
a outro nível. Acontece que eu também achava que não tinha nada que me chatear
por causa dum problema daqueles que, verdadeiramente, não me dizia respeito. Só
porque ele estava englobado na minha direcção? O director e subdiretores e
quem quer que fosse mais, que se metessem ao barulho. Mas ele a si ouve-a,
diziam eles. E uma espécie de chantagem emocional começou a eclodir…
Uns
anos atrás, uma outra situação análoga também surgiu com um rapaz dos países de
leste que esteve a fazer um estágio na RTP e como era técnico de manutenção, foi
dado à nossa direcção. E surgiram tantos problemas, que o coitado vinha ter
comigo a queixar-se, sendo que uma vez até as lágrimas lhe vieram aos olhos. Os
colegas não reagiram nada bem à sua presença. Implicavam com ele por tudo e por
nada, criando à sua volta um mau ambiente desgraçado. A verdade é que lhe
dificultavam imenso a vida só porque ele era estrangeiro. E como fazia parte do meu nipe administrativo, era
comigo que ele vinha ter e era comigo que desabafava. Era a única pessoa que
lhe dava algum apoio. Para mim é indiferente a nacionalidade, a raça, a etnia
ou até mesmo a religião de cada um. E sinto-me completamente à vontade se tenho
que conviver com quem quer que seja, desde que me respeitem, só isso. Quanto ao
resto está tudo bem. Por isso não entendo estas situações. Conviver com outros
diferentes de nós é até enriquecedor. Não temos que ser todos iguais!
E
Mohamed continuava a bater o pé que quem mandava era ele. O trânsito na Avenida
estava parado. Liguei para a Logística para chamarem a polícia de trânsito que
decidiria o que bem entendesse e lavei as mãos desse assunto entre superiores e
Mohamed. Essas não eram as minhas funções. E assim se fez, para que ambas as
partes se acalmassem. A polícia conduziu o trânsito por outra via e o camião
descarregou todo o material com a segurança necessária que Mohamed fez questão
de exigir e tudo se acalmou.
O
facto é que durante os largos meses em que esteve lá a trabalhar, o assunto
Mohamed, de ambas as partes, era recambiado para mim. Ninguém queria ter
contactos com ele. Nunca ninguém percebeu que ele era apenas eficiente e
responsável e que não estava ali para agradar a ninguém, a não ser para fazer o
trabalho para o qual tinha sido pago e incumbido sem falha e sem erro.
E
estava eu de prato na mão quando entrou um colega que, com jeito de quem fareja
alguma coisa e não encontrando o que procurava, me perguntou como se diria
ferro de soldar em inglês. De soldar eu não fazia a menor ideia, por isso
limitei-me a dizer “iron”(?) e logo Mohamed se dirigiu ao lugar certo,
empunhando um ferro de soldar, que passou para a mão do outro. Este agradeceu
ao mesmo tempo que desdenhava o facto de não se ter lembrado de dizer o mesmo
que eu, ou seja “iron”, simplesmente. E foi-se.
Foi
então que Mohamed deu conta do prato de arroz que estava na minha mão. Olhando,
logo percebeu do que se tratava e esfomeado, sem mais delongas agradeceu,
passando das minhas mãos para as dele. A minha ideia era dividir com ele, mas
ele já tinha decidido e agora eu já não tinha coragem para lhe dizer nada. E
num instante, perante o meu olhar de espanto, o arroz desapareceu. Desapareceu
da minha mão e desapareceu da minha vista porque ele o devorou com uma
sofreguidão e tanto. O meu delicioso arroz lá se foi…
Mas
tudo bem. A minha boa acção do dia estava feita.
Outros
dias viriam e mais arroz indiano eu haveria de conseguir, com ou sem Mohamed.