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sábado, 16 de abril de 2022

Gabriel - 71

 

Era o mês de maio e Conchinha, tia da minha nora, estava prestes a fazer mais um aniversário, que sempre festejava em grande estilo, com toda a família e alguns amigos mais próximos. Por isso, uma vez mais, estavam todos reunidos para festejar num restaurante previamente contratado e fechado para o efeito. Concha, como uma boa Angolana, gostava de festa. Tudo para eles era motivo para festejar, o que muito me agradava. A minha vida era um pouco monótona, porque só trabalho e casa e nada mais, e aquela família vinha a calhar, com todos os seus costumes e tradições.

As pessoas começaram a chegar e a tomar os seus lugares e aos poucos o espaço ia ficando composto. De vazio começou a encher. Estava na hora e todos tinham fome, mas faltavam duas pessoas: a prima Xaxão e o filho Lito. Toda a gente queria começar, mas Concha insistia que sem os primos chegarem não daria início ao almoço. Enquanto isso, íamos conversando uns com os outros, até que perguntei à minha nora quem eram os que faltavam, mas ela disse que achava que eu não os conhecia, apressando-se a mencionar que eram muito boas pessoas e que ela gostava particularmente do primo, porque era uma pessoa especial, muito educado e tudo de bom. Fiquei bem impressionada, mas realmente nunca tinha ouvido falar deles.

E nesta espera toda, de repente, duas pessoas aproximam-se do lado de fora da porta do restaurante. Viriam ao engano, uma vez que estava aberto só para nós?! Ao mesmo tempo ouço vozes: “ah, os primos chegaram”. Então não era engano, eram mesmo eles, o que era óbvio, por serem Angolanos… e finalmente iríamos começar a almoçar. Contudo, aquela chegada tinha-me deixado sem palavras e um pouco baralhada, porque longe de imaginar…

Em trinta e oito anos que trabalhei na RTP conheci muita gente e podia ter conhecido ainda muito mais. Se tomasse o cafezinho da ordem, se fumasse, etc…, mas como nunca fiz nada disso, não tinha essas oportunidades para conhecer mais gente. Por isso que digo que conheci muita gente, naturalmente, por ser uma empresa muito grande, mas é claro que podia ter conhecido muito mais.

Quando a RTP e a RDP se juntaram numa empresa só e os trabalhadores ficaram juntos, acabei por conhecer ainda mais pessoas e no meio desta confusão toda, onde aconteceram muitas histórias, um dia cruzo-me com um indivíduo de bom aspeto, bonitão, Angolano de pele muito clara. Um homem interessante, que antes eu nunca tinha visto, mas os nossos olhares não foram indiferentes. Ambos sentimos uma certa atração ou um certo magnetismo, talvez pelo facto de ser Angolano e ter uns olhos azuis incríveis… e não pelo facto de serem azuis, que não são os da minha preferência. Gosto de uns olhos escuros, bem escuros e profundos, mas no caso dele, sendo Angolano, achei muito curioso. Em todo o caso, não tinha porque dar importância ao assunto. Mas era funcionário, com toda a certeza, porque não tinha nenhuma identificação especial.

E este encontro repetiu-se algum tempo depois, sendo que se deu a mesma surpresa, o mesmo choque de magnetismo, o que mais uma vez não escapou a nenhum de nós. E também, mais uma vez, a coisa passou, porque não havia motivo para ser diferente. Não estava interessada em descobrir ou perceber fosse o que fosse.

Mais tarde, um outro dia qualquer, uma terceira vez este cruzamento aconteceu, só que desta vez, ele chegou bem perto de mim e sem mais nem menos, abraçou-me e beijou-me nos lábios, deixando-me completamente atónita e desconfortável, pelo que o fiz parar imediatamente com aquela maluquice que não tinha cabimento.

Ele era um indivíduo bonito, com um ar educado, mas com uma pitada de malandrice. E naquela empresa realmente havia de tudo. Gente capaz de todas as atitudes possíveis e imaginárias. Mas nunca pensei que tivesse a ousadia de fazer uma coisa daquelas, independentemente de onde estava, de quem estava, que quem viu ou não. E muito menos comigo, com quem não tinha a menor intimidade. Para mim era uma loucura completa. E o que fiz foi pirar-me o mais depressa possível, tentando digerir o que tinha acabado de acontecer. Isto passou, até que acabou por cair no esquecimento.

Por esta altura eu era secretária da Direção Técnica, pelo que estava rodeada de engenheiros e técnicos de vária natureza. E por ser secretária da Direção, tinha uma posição estratégica naquele espaço, para estar o mais acessível tanto aos de dentro da Direção, como aos de outros serviços.

Um dia entra um indivíduo pelo open space adentro, que por força das circunstâncias veio parar à minha frente. Quando olho para ele, era o tal, o “atrevido”. Lá vinha ele com o seu ar de menino bem comportado e pelo menos ali não se atreveria a repetir a mesma brincadeira ou outra qualquer. Ao ver-me claro que ficou surpreendido. Agora já tinha a minha referência, porque até então, não sabíamos nada um do outro.

Ambos sorrimos discretamente e como era minha obrigação, perguntei-lhe o que desejava. Gabriel, que trabalhava na Informação da Rádio, vinha pedir um certo material técnico para uma reportagem que ia fazer em Angola. Fui ao gabinete do diretor e relatei o necessário, contudo, o diretor do momento, porque por ali passaram muitos diretores, cada um mais incompetente que o outro, não mostrou qualquer empenho em resolver o assunto, facto que muito estranhei. E perante o seu distanciamento e a sua falta de interesse, a minha cabeça imediatamente começou a trabalhar. Ali passava-se alguma coisa que escapava ao meu entendimento. Seria por ele ser Angolano? Não, não era possível. Ambas as empresas estavam cheias de gente das áfricas e eu nunca tinha percebido ter havido um caso de racismo. Além disso trabalhávamos com a Cooperação com os países africanos, o que era mais um motivo para resolver o problema de Gabriel, ou fosse de quem fosse. Trabalho é trabalho, mas sua excelência o diretor deixou bem claro, com todas as letras, que não tinha como o ajudar e que resolvesse o assunto como quisesse.

Que coisa tão estranha? O rapaz estava no sítio certo. Nós éramos a Direção Técnica e também não era por ele ser da Rádio, porque ele próprio, o diretor, era da Rádio! O que diabo estava a acontecer eu não sabia explicar. Mas alguma coisa estaria por detrás daquela cena, isso eu não tinha dúvidas. E para me certificar comecei a fazer perguntas, na qualidade de secretária, perguntas de carisma inocente, mas não, aqui e ali, ponta aqui, ponta ali, mas a única coisa que percebi é que ele não gostava do Gabriel e, portanto, como agora estava na qualidade de diretor, achou que tinha o direito de fazer o que entendesse.

Achei isto perfeitamente fora de contexto e não queria ouvir nada daquilo. Para mim, atitudes destas não eram toleráveis. Ninguém tinha o direito de se aproveitar do “poder” para evidenciar o seu ego e agora é tudo meu. Uma desclassificação total. Porque se alguém pensa que enriquece pessoalmente, interiormente, com atitudes destas, engana-se redondamente. Mais uma vez o profissionalismo estava em falta total. Se fosse eu que mandasse era imediatamente despedido, pura e simplesmente. Mas como eu não era ninguém, saí do gabinete, decidida a, de alguma outra forma, tentar ajudar o Gabriel. Fosse quem quer que fosse, eu sempre fazia o que podia para resolver e solucionar, porque era para isso que eu trabalhava e me pagavam. E fui ter com um engenheiro, pedindo-lhe que resolvesse o problema cuidadosamente. Nem lhe disse que já tinha falado com o diretor. Agora era por minha conta e risco e queria ver quem é que me ia impedir.

Gabriel era um indivíduo inteligente e de parvo não tinha nada. Percebeu perfeitamente que havia problema. Talvez ele tivesse outros elementos que eu não tinha. Mas ele era discreto e calmo. E para ser muito franca, ficou muito impressionado com a maneira como me empenhei para lhe resolver o problema, ultrapassando todas as barreiras. Agradeceu muito e foi-se embora. Uns dias depois iria então para Luanda fazer mais uma reportagem, pois era esse o seu trabalho. Depois disso, não voltei a vê-lo, não nos voltámos a cruzar.

 

Agora estávamos todos no Restaurante quando a porta se abriu e os últimos convidados acabavam de entrar, acompanhados por Conchinha que, uma vez mais, começou a fazer as honras da casa que lhe cabiam e que ela tanto gostava de fazer. Para mim era alargar o conhecimento de mais uns membros daquela numerosíssima família, que nunca mais acabava. Havia sempre mais alguém para conhecer. Desta vez, a prima Xaxão e o filho Lito.

Concha começou os cumprimentos e quando chegou à minha pessoa, ela indicou, a Xaxão, muito prazer, e o Lito. O Lito e eu ficámos a olhar um para o outro, sem saber o que dizer. Concha começou a dizer o meu nome e a minha função na RTP, coisa que ela sempre fazia e me deixava um pouco irritada. Mas antes de continuar, interrompi para dizer: nós já nos conhecemos.

Ah, já!? Concha pareceu um pouco surpreendida, mas logo ligou as coisas. Ah, sim… esboçando um sorriso adequado. Então já se conhecem(!?)… etc., etc., etc…

Efectivamente já tínhamos a nossa história, com uma pequena diferença. O Gabriel que estava agora na minha frente, tinha olhos castanhos, tal qual veio ao mundo, sem as habituais lentes de contato azuis, que sempre fazia questão de exibir e que tanto me intrigavam(!?)…