Joaquim é um vizinho meu, uma
pessoa não muito fácil de lidar. Frequentemente há problemas com ele, na
vizinhança, porque ele é um bocado complicado. Também já tive alguns incómodos
com a pessoa dele, mas consegui dar a volta ao texto.
Nesta vida, não podemos agradar a
todos, é certo. Com efeito, ele é uma pessoa com quem é preciso aprender a
lidar, mas nem toda a gente pensa assim. Se estiverem à espera que seja ele a
entender os outros, podem esquecer. Ele gosta de falar, fazer ver os seus
pontos de vista, mas não dá a mesma oportunidade, sobretudo se não estiverem de
acordo com ele. Não é fácil, mas temos que aprender que faz parte do nosso
crescimento espiritual, ser mais paciente com aqueles que precisam e
facilitarmos as vias de comunicação, quaisquer que elas sejam, em vez de as
complicarmos e as tornarmos até impossíveis.
Nesse contexto, há uns anos
atrás, na ordem das coisas, ele seria um dos administradores do condomínio, no
período de dois anos, conforme está estabelecido. Ele e outro. Houve muitos
problemas, porque ninguém queria ser administrador com o Joaquim. E não era
preciso perguntar porquê. Toda a gente sabia a razão disso. O Joaquim arranjava
muitos problemas, complicava muito as coisas e tudo tinha que ser como ele
dizia. Ter uma opinião diferente da dele era complicação na certa.
Foi então que decidi actuar, tomando
a difícil decisão que ninguém queria para si, ficar na administração com o
Joaquim. Aquilo seria um enorme desafio, mas eu queria, mais do que tudo,
mostrar a todos que também parte de nós, de cada um de nós, ir ao encontro dos
outros e fazer um esforço de aproximação. Era uma experiência realmente
desafiadora, mas para mim, muito importante. Enquanto os outros apenas queriam
mostrar a sua incompatibilidade com aquela pessoa, eu gostaria de provar que
podiam estar enganados e que, sim, era possível fazer equipa com ele. E assim
fiz. Problema resolvido para o condomínio.
Não posso dizer que foi fácil,
porque não foi. Estaria a mentir se dissesse o contrário e eu já estava à
espera disso. Mas ninguém me obrigou, fui eu que tomei a iniciativa, fui eu que
aceitei por minha expressa e consciente vontade. Foram dois anos muito
complicados, em que algumas vezes até passei mal. E não foi só por ele. Foi
também por outras pessoas. Quando se toma uma decisão em reunião, sobre um
determinado assunto que foi a votação, tem que ser cumprido, caso contrário
estamos todos a brincar e isso não faz sentido. Se a maioria vota uma coisa,
essa coisa tem que ser aceite por quem votou contra. Vivemos em democracia e
para tudo é assim a vida. Mas há pessoas que não aceitam e querem que seja como
elas dizem, recusando-se a aceitar a voz da maioria. Fica complicado.
Prevendo que coisas desta
natureza iriam acontecer, logo no início do nosso mandato, fiz um pacto com o
Joaquim, que seria, independentemente do que acontecesse, jamais nos incompatibilizaríamos
um com o outro, no que o Joaquim concordou plenamente. E chamei-o bem a atenção
para isso, lembrando-o de que teríamos de enfrentar situações embaraçosas, mas
que o importante era ficarmos sempre unidos. Ele concordou sem problema nenhum,
o que já foi muito bom, pois dar-lhe-ia mais consciência de tudo, etc.
E assim enfrentámos tudo o que
veio e não foi pouca coisa. Trocávamos opiniões um com o outro, como tinha que
ser e conseguimos levar as coisas adiante e chegar ao fim. Foi até interessante
porque, apesar de todos os “apesares”, ficámos amigos, numa amizade mais
sólida, mais firme, mais harmoniosa. O Joaquim viu em mim alguém em quem podia
confiar, alguém com quem ele podia desabafar sem se chatear, com a paciência
que os outros não sabem ter, porque às vezes ele até chega a ter piada.
Um dia, na entrada do prédio, um
saindo e o outro entrando, cumprimentámo-nos como de costume e entre nós passou
rapidamente um casal que tem dois filhos. Cumprimentámo-nos todos, sendo que
eles são pessoas muito educadas e simpáticas. Ele mais sério, ela sempre toda
sorridente. E depois de seguirem o seu caminho, o Joaquim começa a falar
comigo, de uma forma meio codificada, com uns gestos e umas caras, enquanto eu
aguardava uma maior precisão da parte dele. E começou a explicar-se. O que ele
queria dizer, é que ela, a vizinha que tinha acabado de passar, nem sempre
tinha o mesmo comportamento. Quando ele disse isto, fiquei à espera de mais,
para não ter que lhe fazer perguntas.
Ela é simpática, dizia-me ele.
Respondi-lhe que sim, muito simpática, sempre muito bem-disposta. Pois é, dizia
ele, mas… e ficou em silêncio. Repeti, mas… e ele continuou. Mas tem dias. Tem
dias, como assim, perguntei. Às vezes não é, sabe… dizia. Às vezes passa por
mim e parece que nem me conhece, dizia ele muito injuriado, estranhando muito o
facto de ela alternar o comportamento. Mas é só às vezes. E comecei a rir, a
rir com gosto, vendo o olhar dele intrigadíssimo pela minha reacção, que ele
não entendia nem esperava.
Uma vez, eu entrei no “take away”, do outro lado da rua, fora da nossa Praceta e no meio das pessoas que
lá estavam, estavam eles, o casal com os dois filhos. Só que o marido não era o
dela e os filhos também não. Eram outros. E quando ela de repente se virou e
confirmei que era ela, sorrindo para a cumprimentar, ela nem reparou, ou
ignorou, ou não viu, parecendo que não me conhecia. Coloquei-me em posição de a
ver melhor e era ela, mas não. Só podia ser uma irmã gémea. Isso explicava que
eu também já a tivesse visto entrar ou sair do prédio, sozinha, sem que ela me
falasse.
Quando o Joaquim veio com essa
conversa de nem sempre ela falar, percebi imediatamente que ele também não
sabia da existência da irmã gémea, como eu não sabia, se não tivesse
presenciado essa cena.
Como o Joaquim gosta de ter
sempre razão, ao explicar-lhe que ela tinha a tal irmã gémea, simplesmente
ficou desconcertado, sem jeito, pensativo, balbuciando “irmã gémea”… e talvez
pensando que eu o estava a enganar. Nunca se sabe.
O facto é que ele ficou sem
palavras, porque não estava à espera daquele desfecho. Era difícil para ele
admitir que todo o tempo tinha estado enganado, tirando conclusões precipitadas
que facilmente levam ao engano.
Mas por esta vez, talvez só por
esta vez ou talvez por outras vezes, o Joaquim não tinha o que argumentar,
restando-lhe apenas e somente o facto de que estava redondamente enganado. Ponto
final.