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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O sofá - 11


Era uma vez um sofá, comprado no Ikea…

 

Um dia a minha tia pediu-me para ir com ela ao Ikea comprar um sofá individual para o meu tio se sentar confortavelmente a ver televisão, posto que o seu estado de saúde não era dos melhores. Acontece que o Ikea é a minha loja para todas as ocasiões, para tudo o que se possa imaginar, para mim, para a família e amigos, sempre, Ikea. Todos à minha volta sabem disso.

 

Então, numa tarde de sábado, lá fomos ao Ikea, no carro dos meus tios, por ser bem maior do que o meu. Até aqui, tudo certo. Chegados lá, começamos a ronda pela exposição dos móveis, para o meu tio experimentar por si mesmo e escolher, uma vez que o sofá se destinava exclusivamente a ele e depois de muita escolha, experimenta e não experimenta, lá se chegou a um consenso e o sofá foi eleito. Dirigimo-nos ao andar de baixo, à loja propriamente dita, a fim de carregarmos a embalagem no carrinho de transporte até à caixa.

 

Já aí começou a agitação, porque a minha tia achava que eu sozinha não ia conseguir tirar a embalagem da prateleira para o carro e ela e o meu tio não iam podiam ajudar, claro. Com toda a paciência, disse-lhes que não se preocupassem com isso, que era problema meu e lá pus o sofá embalado no carrinho, com grande espanto e admiração deles, que não deixavam de estar preocupados com o modo como o faríamos chegar ao seu destino, porque a cada passo, aumentava a preocupação deles. Por mais que lhes dissesse que estivessem calmos e me deixassem fazer as coisas do meu jeito, estavam sempre a dar palpites e a meter o bedelho e pior, a fingir que ajudavam em alguma coisa, quando na verdade só atrapalhavam as minhas manobras. Mas é assim mesmo.

 

Fomos para a caixa, o sofá foi pago e lá fui eu empurrando o carrinho até ao elevador, com eles atrás de mim, com aquelas caras de aflição, como se de uma missão impossível se tratasse. A cada passo, lá vinha uma questão que, para eles, parecia intransponível. Cansavam-me com tantas perguntas de como é que vamos fazer, como é que vamos acontecer… bla, bla, bla… e eu já não os podia ouvir.

 

Chegámos ao carro e a aflição deles só aumentava a cada minuto, a cada segundo. Eu bem os afastava e lhes pedia por favor para me deixarem fazer as coisas sozinha, mas eles queriam meter o nariz em cima de todos os movimentos que eu fazia. Era uma verdadeira canseira. Abrimos o porta-bagagens do Mazda e percebi que tinha que me livrar da embalagem, levando só o sofá, a fim de caber na mala do carro. E lá foi, com dificuldade, é claro, mas lá enfiei o sofá de modo a conseguir fechar a mala.

 

Todo o caminho tive que ouvi-los “e tu conseguiste, eh pá, como é que tu conseguiste fazer aquilo sozinha?” Enfim, aquela conversa não interessava para nada, mas era um mistério para eles. Chamaram-me precisamente para aquele fim e depois tanto espanto porque eu conseguia o que eles queriam. Sinceramente, não os entendia.

 

Finalmente chegámos a casa. Saímos do carro e lá ficaram eles novamente a torrar a minha paciência para tirar o sofá do carro. Tive que lhes dizer outra vez para se afastarem, para eu me poder mover, mas a cena foi idêntica à anterior. Eu a precisar de me movimentar e eles em cima de mim a meterem o nariz e a dar sugestões, que não faziam sentido nenhum. Mas o sofá saiu e carreguei com ele até à entrada do prédio e depois tive que subir os degraus desde a entrada do prédio até à porta do elevador, que não são poucos. Mas lá foi e tudo isto sob a vigilância atenta dos olhos da minha tia, especialmente, que não perdia nada, completamente espantada com a minha força, com a minha destreza, etc. Agora restava pôr o sofá no elevador e a minha missão estaria cumprida, sem grandes complicações, só que aqui, precisamente, começou a complicação e não foi pouca.

 

Primeiro, o sofá, por um triz, não cabia no elevador ou eu não conseguia fazer com que coubesse porque as portas, por pouco, mas muito pouco mesmo, não fechavam. Por essa eu não esperava e depois de várias tentativas, achei que a solução era carregar com ele até ao terceiro andar. Então, respirei fundo, mentalizando-me de que essa era a solução, enquanto ganhava tempo para me preparar fisicamente, a fim de subir as escadas com ele. Claro que nesta altura os meus tios já estavam alucinados e os meus nervos completamente em franja. Dizia-lhes que fossem para casa que eu resolvia o problema da maneira que tivesse que resolver, mas eles não arredavam o pé dali por nada deste mundo. Bom, fiz a tentativa de carregar o sofá, mas assim que subi os primeiros degraus, logo percebi que não ia ser possível. Era muito complicado e eu não era de ferro. Os meus cinquenta quilos não chegavam para aquilo, portanto, essa não ia ser a solução. 


Deste modo, a possibilidade era tentar voltar a pôr o sofá dentro do elevador, dando o jeito de conseguir fechar a porta e assim o fiz. Lá foi o sofá novamente para o elevador, embora a porta continuasse a não fechar. Empurra daqui, empurra dali, passa para lá, passa para cá e os “mirones” sempre atentos, falando o que lhes vinha à cabeça, que eu nem prestava atenção. A minha concentração era tal, que eu não ouvia nem via nada à minha volta. 


Felizmente, que tudo isto se passou num sábado e o prédio estava silencioso. Ao fim de uma longa hora, consegui finalmente fechar as portas do elevador. Tinha sujado um pouquinho o sofá, mas não era nada de mais, sairia facilmente. Enfim, estava cansada, não o podia negar, mas já podia respirar de alívio, porque estava na ponta final daquela ingrata missão, pensava eu. Entrei no elevador e carreguei para o terceiro andar. O elevador subiu e com grande alívio estávamos chegados ao destino. Eu nem queria acreditar.

 

Saio cá para fora, começo a puxar pelo sofá para o tirar e lá vem a minha tia a “tentar” ajudar e eu a empurrá-la para ela se meter em casa e me deixar manobrar à vontade. Mas então, tu não podes sozinha, dizia ela, como se já não tivesse podido antes. Bem, começa outra vez a minha luta, porque o sofá agora não queria sair de jeito nenhum. Eu puxava, empurrava, saltava por cima, para dentro, para fora, mas o sofá, teimoso, não cedia de maneira nenhuma. Eu estava doida e só me apetecia pegar num martelo e parti-lo todo, de farta que estava daquilo. Mas isso não podia ser, pelo menos até eu fazer todas as tentativas possíveis e impossíveis.

 

Não adianta explicar aqui as cenas que se passaram. O sofá não saía. Voltei a descer para tentar tirá-lo no rés-do-chão, onde ele tinha entrado, podia ser que a medida não fosse bem a mesma, mas o resultado era igual, não saía e pronto. Passou uma hora e eu estava de rastos. Eu e o sofá numa luta desgraçada. Passou mais uma hora e tudo continuava na mesma, só eu mais e mais cansada. Mais que isso, derrotada, transpirando por todos os poros. O cabelo estava uma verdadeira sopa. Parecia que tinha saído do esgoto. Transpirava dos pés à cabeça, com a roupa colada ao corpo. O meu rosto estava com um aspecto deplorável, com umas olheiras fundas e escuras como eu nunca tinha visto e o pior de tudo é que não via uma saída. 


Parei para pensar e porque já não aguentava mais. Tínhamos ido para o Ikea logo a seguir ao almoço e já era. A noite estava instalada e o diabo do sofá a atazanar a minha paciência. Que fazer? Sentia-me completamente encurralada. Eles tinham-me pedido ajuda porque não tinham alternativa. Só eu estava disponível para os ajudar e olha o que tinha acontecido. Deus do céu!

 

Estávamos os três parados, em silêncio, com umas caras de defuntos, como se estivéssemos num velório, onde não há nada a fazer a não ser estar. Sozinha comigo mesma, pensei que tinha que resolver aquele assunto, por todas as razões e mais algumas e porque eu sempre resolvo tudo e onde meto os pés meto a cabeça. Só que ali, naquele caso, tinha que o resolver recorrendo à ajuda de alguém, porque verdadeiramente e finalmente tinha que admitir que sozinha não conseguia. Tinha que recorrer a alguém e precisava de agir rapidamente, porque o dia estava a acabar e aquilo era para ser resolvido ainda naquele mesmo dia. Não ficaria para o dia seguinte, de maneira nenhuma, posto que era ponto assente e continuávamos todos em silêncio, dando pequenos passos à toa. Não tinha a quem recorrer, que eu conhecesse e pudesse ir ali, portanto, restava-me a solução mais louca, mas a mais prática e porque sou uma pessoa prática, assim pensei, assim fiz. Anunciei alto e bom som, que ia à rua arranjar um ou dois homens fortes para tirarem o sofá dali. 


Oh, foi o fim da picada. Vieram os comentários da ordem, que eu era doida, já o sabia. Onde e quem é que eu ia buscar? Aí estava uma coisa a que eu não podia responder porque, sem antes ir, não podia saber. Disse-lhes, então, que ficassem ali a tomar conta do sofá. Insistiam em querer saber onde eu iria. Gritei que não sabia, não tinha ideia, mas iria aonde fosse preciso e necessário para trazer comigo alguém, a fim de resolver o problema. Não sabia quanto tempo levaria e mais nada. Que desassossego, Deus meu! E lá saí eu porta fora, com um ar e um aspecto miserável. Enfim!…

 

Começo a descer a rua e as primeiras pessoas que vi, eram dois casais, gente nova, bem vestidinhos… esses não interessavam. Não eram apropriados para o efeito. Mais uma ou outra pessoa que nem valia a pena indagar. Virei a esquina e passava gente, pouca, mas passava. Tinha mesmo que dar uma de doida e abordar alguém. Não iria presa por isso, foi o que achei. Eu só precisava de ajuda e isso não era crime. Quando os outros precisavam de mim eu estava pronta para o que fosse, portanto, estava na minha vez de pedir ajuda e para isso tinha que pôr de lado e esquecer completamente a ética, o preconceito, o orgulho, a vergonha e mais alguma coisa de que agora não me lembro. Era uma varridela completa ao mais íntimo do meu ser, do meu âmago. Paciência. 


Sempre andando, dou uma olhadela geral e vejo um indivíduo encostado à parede, com um joelho dobrado e o pé para trás, apoiado na parede, com um cigarro, deitando fumaça para o ar. À frente dele estava uma rapariga com quem ele parecia falar. Ainda por cima aquela era uma zona bem afamada, quem me garantia que não era prostituição!? Mas o indivíduo, que de noite e ao longe, aparentava uns trinta e cinco anos, mais ou menos, tinha um porte atlético, exactamente como eu naquele momento precisava. Com toda a certeza ele fazia muito exercício físico, pois ninguém podia ter um cabedal daqueles sem ser assim. Pessoalmente, não gosto de homens demasiado musculados, mas naquele momento, era tudo o que eu precisava. Estava resolvido, ia caçá-lo, fosse como fosse. Pedi a Deus que me desse forças e comecei a encaminhar-me para lá. 


Entretanto, chegou outro indivíduo mais velho, que não tinha nada a ver, também a fumar, mas daria para ajudar, caso eu conseguisse comovê-los com a minha história. Esse é que era o problema e naquele momento eu tinha que ser tudo menos eu, ou não estaria ali a fazer aquela triste figura. Mas lá fui na direcção deles, até que cheguei ao pé dos três, que ficaram a olhar para mim com um ar surpreso e inquisidor, como era de esperar. 


O rapaz mais novo pôs o cigarro na boca e em vez de atirar o fumo para o ar, como o estava a fazer, atirou para a frente, num jeito meio provocador, que tive que me afastar ligeiramente, mas nem por isso desisti. Pedi desculpa pela intromissão e fui direita ao assunto. Disse que tinha ido ao Ikea comprar um sofá para o meu tio que estava doente e na volta, o sofá, que tinha entrado no elevador – só não disse o trabalho que deu -, não queria sair e não sabia o que fazer, por isso precisava de alguém que me desse uma ajuda, para não deixar os meus tios a braços com aquela empreitada, dada a idade avançada deles. Saiu, agora restava acreditarem em mim e permitirem-se fazer uma boa acção. 


Silêncio... enquanto o fumo se dispersava no ar, perdendo-se, para logo em seguida vir outra fumaça. Olharam todos uns para os outros, numa atitude de aparente indiferença, até que a rapariga intercedeu por mim e num tom de humildade, pediu ao rapaz para dar uma ajuda. O rapaz olhou para o outro indivíduo e por sua vez pediu-lhe ajuda, enquanto a rapariga continuava a fazer o papel de boa samaritana, instigando-os a irem ajudar-me. Apagaram os cigarros no chão, com o pé, e lá fomos todos, os quatro, enquanto eu começava a respirar aliviada por toda aquela forçada encenação que, com toda a verdade, não estava no programa. E enquanto nos dirigíamos para casa, na direcção contrária, aparecem os meus tios, que me vêm com aquela desconhecida turma. Em vez de estarem calados e quietos, que só facilitavam, nada disso. Começam a fazer as observações mais despropositadas e caóticas possíveis e eu a ver quando é que iam deitar tudo a perder. Santo Deus! Quem são, perguntavam eles, mas quem é essa gente e eu, chiu, chiu, falem baixo. Mas donde é que os conheces? Não os conheço. Então como é que eles vêm contigo? Calem-se, por favor, dizia-lhes eu, que só me apetecia estrangulá-los. Então e agora, o que é que vão fazer? Vão tentar ajudar, se vocês derem licença, a menos que queiram resolver o problema à vossa maneira… enfim… não estava sendo nada fácil.

 

Chegados à entrada do prédio, toda a gente entrou e os homens depararam-se com o problema que eles não faziam ideia do que ia ser. Quando olharam, de certeza acharam que eu era uma inútil, coitada. No olhar deles estava estampado que aquilo era canja. A minha expectativa era grande, pois na verdade, não fazia ideia do que ali se iria passar. Tudo era possível. Tudo.

 

Enquanto a rapariga falava com os meus tios, mais propriamente com a minha tia, os dois homens tinham dado início à tarefa e eu não desviava a minha atenção deles, por nada deste mundo. Queria ver o que aquilo ia dar e rezava para que eles conseguissem resolver o problema. E aí passaram cinco minutos, e dez, e vinte e já estávamos com meia hora bem contada e o sofá não saía e o homem mais velho volta e meia perguntava, foi a senhora que meteu o sofá no elevador? Já não o podia ouvir. E passou mais meia hora e os dois homens estavam alagados. Transpiravam por tudo quanto é lado e a minha tia com as mãos apertadas e os dedos cruzados, não parava com a mesma lamentação “ora esta”, ora esta… os meus ouvidos já estavam saturados e os homens suavam, suavam. Eu estava quase a pôr termo àquilo tudo, indo buscar o martelo para quebrar o sofá e esvaziar o elevador quando, finalmente, como que por milagre, o sofá saiu inteiro, sem precisar de ser abatido.

 

Fantástico!


sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A loucura anda à solta - 10



Eu estava de férias, em viagem aos Emirados Árabes, uma viagem que repetiria de bom grado, não fora tantos outros lugares onde ainda gostaria de ir. Mas os Emirados Árabes são feitos à minha medida, porque é uma óptima combinação entre dois mundos, onde tudo está muito bem equilibrado. Isto, do meu ponto de vista, claro está. 

 

Éramos um grupo de quinze pessoas: dois casais, três homens e o restante, mulheres, incluindo eu. Nessa viagem, que durou uma semana, pouco me dei com os demais do grupo, posto que o meu interesse era com os locais, árabes ou não, mas no último dia, mesmo no último, comecei a falar com um dos homens, um senhor um pouco mais velho do que eu, com bom aspecto... enfim, uma pessoa aparentemente normal.

 

O nosso conhecimento foi feito às pressas, pensando que podíamos ter beneficiado mais da companhia um do outro. Em todo o caso, até à chegada a Lisboa, conversámos bastante e acabámos trocando números de telefone para depois nos falarmos. E foi assim, através dos longos telefonemas que todos os dias ele me fazia que, aos poucos, nos fomos conhecendo ou tentando conhecer. 

 

Era reformado da banca, onde tinha trabalhado durante quarenta anos e por esta altura, já há uns anos que se reformara, bem como regressara à sua terra natal, uma pequena aldeia perdida para os lados de Seia, onde tinha várias casas e alguns terrenos que os pais lhe tinham deixado. Para além disso, tinha ainda uma vivenda perto de Cascais, onde ficava sempre que vinha a Lisboa. 


O senhor que, pelo sotaque, se percebia que era da província, era uma pessoa que falava bem sobre qualquer assunto e que estava a par da actualidade, dos acontecimentos que iam pelo mundo, etc. Para mim, ele só tinha um senão. Estava sempre enfiado na igreja. Desde criança que era sacristão e não abdicava disso. A igreja era o mundo dele e aquilo não me agradava especialmente, mas cada um é como é. 


Havia ainda uma outra coisa que me intrigava. Nunca tinha casado e sonhava que, ainda assim, apesar dos seus sessenta e três anos, um dia, haveria de casar. Ora bem, se ele tanto o queria e reunindo condições para isso, porque então nunca tinha casado? Era um pouco estranho, mas fomo-nos conhecendo através dos telefonemas diários, que nunca demoravam menos de uma hora. Conversávamos sobre o dia-a-dia, a família, os afazeres e por aí fora. Uma conversa perfeitamente normal, que incluía alguns planeamentos de passeios que gostaríamos de fazer. Falávamos de gostos com a comida, do estilo de vida que fazíamos, no caso ele, porque, por esta altura, eu ainda trabalhava. 

 

E o tempo foi passando, até que algo inédito aconteceu e na história da minha vida o inesperado é sempre algo de relevante importância. Foi o caso. Um dia a conversa dele foi no mínimo estranha. A páginas tantas eu disse-lhe que tinha que ir ao cabeleireiro e que também precisava de arranjar as unhas, etc. Era isto um fim-de-semana e, na sequência da minha conversa, ele disse que também precisava de cortar as unhas, mas que tinha que esperar por segunda-feira. Pensei que seria por falta de tempo, mas não, segundo ele, não tinha nada a ver com isso, apenas porque só à segunda-feira podia cortar as unhas. Achei então que era por uma questão de disciplina. A limpeza na minha casa é feita todas as terças-feiras, portanto, considerei ser esse o motivo, mas imediatamente ele negou, dizendo que também não tinha nada que ver com isso. Comecei a ficar intrigada e continuei a fazer perguntas, até que ele me respondeu que, em tempos idos, quando era novo e tinha começado a trabalhar no banco, ouviu uma conversa de um colega que, conversando ao telefone com um amigo, o outro lhe dizia que, cortar as unhas às segundas-feiras fazia com que nunca se tivesse dor de dentes.

 

Desatei a rir, atribuindo aquela dedução a uma piada, que só podia ser, mas ele logo interrompeu dizendo que não era piada nenhuma e que desde que tinha ouvido aquilo, sempre cortara as unhas às segundas-feiras e nunca tinha tido dores de dentes. Ainda dentro de um clima de brincadeira a que eu estava a levar as coisas, chamei a atenção dele para o facto de, na semana anterior, ter marcado uma urgência para o dentista, visto estar com dores de dentes, mas ele reagiu fortemente dizendo que não era uma dor, somente uma moínha. Bom, a conversa estava a ficar difícil, por isso comecei a desconversar, dizendo-lhe que tinha que fazer e que continuaríamos o papo depois, no dia seguinte, ou quando desse e assim foi. 


No dia seguinte, à hora do costume, o telemóvel tocou e para variar era ele. Começou a falar das coisas do costume, da vida dele, do que tinha feito e do que não tinha, etc… até que, decidi voltar ao tema da noite anterior, os dentes ou as unhas do senhor Adelino, que continuou a insistir na sua tese de que cortar as unhas às segundas-feiras fazia com que nunca se tivesse dor de dentes. Acontece que eu já estava a ficar farta daquela parvoíce e, portanto, comecei a puxar por ele, no sentido de o fazer perceber que aquilo não tinha ponta por onde se pegasse, pois não fazia o menor sentido.  


Muito chateado comigo disse que, se era bom para os outros, também o era para ele. Insisti, dizendo-lhe que, certamente, tinha sido uma brincadeira do colega porque, ninguém, em sã consciência, podia acreditar num disparate tão grande e ele não me parecia ser uma pessoa estúpida a esse ponto. Mas o senhor Adelino não gostou do meu ponto de vista e foi então que, já muito chateado me disse que, se eu não quisesse acreditar, não acreditasse. Ele, porém, continuaria cumprindo religiosamente aquele ritual porque, até provas em contrário e até à data, só se tinha dado bem. Disse-lhe que a conversa ia acabar por ali, porque não tinha paciência para tanta burrice e assim o telefonema acabou. 


No dia seguinte, como de costume, ele voltou a ligar. Começámos a falar do trivial e, finalmente, a conversa voltou ao mesmo assunto, como não podia deixar de ser. Com toda a calma possível, tive que repassar tudo o que já tinha sido dito, que não me dava gozo nenhum, mas porque precisava de saber com que espécie de pessoa estava a lidar e era-me muito difícil acreditar que alguém fosse tão idiota a ponto de acreditar numa coisa daquelas.

 

No fundo, acalentava uma certa esperança de que ele caísse em si e percebesse aquilo que, em quarenta anos, não tinha conseguido perceber. E a conversa lá continuou comigo a perder cada vez mais terreno, porque o senhor Adelino, na verdade, estava mesmo convencido daquela treta toda, o que muito me impressionava no pior dos sentidos e, contra todos os meus esforços teimava obstinadamente, o que me deixava de rastos e sem palavras, sem argumentos, sem paciência, sem nada.

 

E na verdade, com tudo aquilo eu não precisava de saber mais nada dele. Não precisava nem queria. Achava que tinha chegado à meta, mas não. Surpresa das surpresas, o melhor estava para vir.  


E continuava: 

 

- "Quem pode garantir que um dia não aparece nos jornais que os cientistas descobriram que, cortar as unhas às segundas-feiras, faz com que nunca se tenha dores de dentes?!”… 

 

Ponto final. Não havia nem mais uma única palavrinha para dizer e muito menos para ouvir. Nem sequer um suspiro, nada, nada. Silêncio era tudo o que eu queria dali.

 

A loucura anda à solta e tem nome.



 

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

LQ escondido - 9


Apressado, LQ tinha entrado no gabinete. Não ia jurar, mas era quase certo. Na minha estratégica posição, plantada no meio da sala, como convinha, para poder dar apoio a toda a estrutura da Direcção e, ainda que estivesse concentrada no que estava a fazer, quase podia garantir que o tinha visto passar.

 

Pouco tempo depois passa IC, também apressada, ao encontro dele, pensei. Mas, conforme entrou, saiu, percorreu todos os gabinetes e todo o open space da Direcção, parecendo uma barata tonta. O que é que esta quer, pensei para comigo mesma. Anda há procura de quem? Se não é do LQ, de quem mais pode ser?

 

Adivinhando o meu pensamento, chega junto de mim e pergunta-me pelo Luís. Respondo-lho que penso que está no gabinete, mas logo ela se apressa a negar, dizendo que não. Um não vago, contudo. O facto, é que ela tinha ido lá, portanto, tinha visto com os seus próprios olhos e um pouco esmorecida, que não era nada o seu género, deu à sola.

 

Continuei a fazer o que estava a fazer, mas mesmo sem querer, aquela cena não me saía da cabeça. Ia jurar que tinha dado pela entrada dele, mas não me lembrava de o ter visto sair, o que não queria dizer não tivesse saído sem que eu reparasse. E também não tinha acerteza absoluta dele ter entrado. Eram tantas entradas e saídas que a minha cabeça não podia ter certezas absolutas. Alguma coisa não batia certo, mas não percebia o que era. Para não me levantar, levantei o auscultador, liguei a extensão da Catarina e olhando para trás, porque ela estava na outra ponta da sala, perguntei-lhe se sabia do LQ, ao que respondeu “sim Luisinha, o senhor engenheirinho está no gabinete”. A Catarina falava tudo em “inho”. Respondi que também achava que sim, mas que a IC tinha ido lá e ele não estava.

 

Como ela era directamente secretária dele, podia ser que ele tivesse saído sem eu ter reparado e que lhe tivesse dito alguma coisa. Agora ela vinha confirmar que ele estava lá. Mistério… Perguntei-lhe se ela tinha a certeza e ela respondeu “sim, Luisinha”, sorrindo, com o seu sorriso de orelha a orelha, que fazia parte dela. Perguntei-lhe então se não tinha visto a IC. Respondeu que “sim, sim”, como um robot. Continuei, dizendo-lhe que ela não o tinha visto no gabinete. Encolheu os ombros docemente, riu e voou. Quando as coisas a ultrapassavam ela simplesmente desligava-se, não as confrontando. Cada um é como é. Mas a Catarina era gira. 


Claro que o homem não estava. A IC não era tonta. Era, mas de outra natureza, por exemplo, gostava de dar nas vistas e dava, mas não vem ao caso. E não sei porquê, mas levantei-me para ver com os meus próprios olhos que ele realmente não estava, caso contrário não ia conseguir concentrar-me no que estava a fazer. A minha cabeça continuaria a pensar naquele enigma. Era muito mais fácil ser como a Cathy, mas eu não era assim. Por isso, levantei-me e fui ao gabinete dele.  


E lá estava ele. O estranho é que não fiquei tão espantada como deveria ter ficado e não tanto porque a Catarina dizia que ele estava lá. É que, apesar de tudo, eu confiava bem mais em mim e a minha intuição dizia-me que ele estava. Eu sentia a presença dele lá, muito embora a IC não o tivesse visto. A Catarina tinha razão, mas isso era secundário, porque o mistério permanecia. Como é que a outra não o tinha visto?! O homem estava ali, sentado à secretária, a trabalhar ou a fingir que trabalhava; também não vem ao caso, mas que mágica tinha ele feito para não ter sido visto num espaço tão reduzido?!...  

 

Ingenuamente, perguntei-lhe se não estava ali quando a IC o tinha ido procurar. Respondeu que sim. A minha cabeça estava a dar um nó. Parecia que estava tudo doido. Mas ela esteve aqui e disse que o engenheiro não estava, disse eu, intrigadíssima. Respondeu, então, que ela não o tinha visto. Eu estava absolutamente incrédula. Credo, engenheiro, disse-lhe eu, se estava aqui, como é que a doutora Isabel não o viu?  


Aquilo, realmente, era de doidos. Eu abri a porta do armário e escondi-me atrás, continuou ele. Jesus! Naquela casa aconteciam as coisas mais loucas que se podiam imaginar, mas um Assessor do CA escondido atrás de uma porta de armário, como um qualquer garoto, era demais!

 

Em frente à secretária dele havia um armário/estante encostado à parede e o espaço entre armário e a secretária era minúsculo, dando apenas para uma cadeira, quando iam falar com ele. Olho para baixo e vejo o chão cheio de papéis, papéis, papéis. Agora olhava para o espaço da porta, que ainda estava aberta, e a parede e imaginava o LQ ali entalado para se esconder da IC. Logo eles, que passavam a vida enfiados naquele pequeníssimo gabinete, rindo escandalosamente, completamente histéricos e a pobre da Cathy ainda tinha que ir ao bar comprar chocolates para eles, tal qual crianças mimadas. 


Perguntei-lhe porque é que os papéis estavam todos no chão, ao que respondeu que era para fingir que os estava a apanhar, caso ela o visse. Eu estava incrédula de verdade. Cada resposta era pior do que a outra. Aquilo não podia estar a acontecer. Fez-se silêncio e não resisti a perguntar-lhe porque razão tinha feito aquilo, porque se tinha escondido dela. Respondeu “porque ela é uma chata e não me apetecia falar com ela”. 


Saí a falar sozinha e fui direitinha à Catarina. Contei-lhe a história e ela começou a rir, a rir, a rir. Ficámos as duas uns bons minutos a rir que nem umas parvas, olhando nos olhos uma da outra. E eu dizia “mas isto é uma casa de gente doida, Catarina” e ela ria ainda mais e continuei “e quando pensamos que já vimos de tudo ainda não vimos nada” e ela fazia sinal de concordância com a cabeça para cima e para baixo, rindo com os olhos escuros muito brilhantes, mas sem grande espanto, de certo modo, aceitando, como se aceitam as brincadeiras das crianças. Ela não vivia as coisas da mesma maneira que eu. Não lhes dava intensidade. Continuava calma e tranquila, a uma certa margem de tudo. E assim que ele a chamava, ela apressava-se a apagar o fogo, dizendo “sim, senhor engenheirinho, sim senhor engenheirinho”. E se ele tivesse um dia cheio de reuniões, como muitas vezes acontecia, ela ia ter com ele, no espaço entre uma e outra reunião, dizendo “tem dez minutinhos para fazer um xixizinho e lavar as mãozinhas”. Diria isto esfregando as mãos uma na outra, no seu ar aprumadíssimo, de secretária fidelíssima e exemplar, enquanto ele olhava para ela sem saber se ela estava a gozar com ele ou não.  


Quanto a mim, ria, ria, mas ria de gosto, só que por dentro. E não era pouco o esforço que fazia para não o dar a perceber. Estava sempre à espera de que um dia, numa destas caricatas situações, a coisa explodisse.  


Dado o recado, LQ acabava sempre seguindo o seu caminho como que não tendo ouvido nada e a Catarina voltava para o seu lugar, continuando com as mãos apertadas uma na outra, no seu andar teso, muito direita, com as saias demasiado curtas e as perninhas de rã, como na brincadeira lhe chamávamos.  



Mas esta briga não duraria muito. Esperta e sobretudo rápida no gatilho, rapidamente IC lhe daria a volta e ele não tinha como resistir aos seus encantos e ficaria tão contentinho que dias depois, traria para nós, trufas da floresta negra, na Alemanha, onde tinha estado há poucas semanas atrás e daria às suas duas secretárias uma a cada uma, vindas directamente do bolso das suas calças para as nossas mãos, sem papel, sem nada, todas meladas e com um aspecto de vomitado. E, claro, não esquecendo que ainda teríamos que dizer “obrigada” porque, segundo ele, não eram umas trufas quaisquer. 


Só que, da mesma maneira que vinham dos bolsos dele para as nossas mãos, assim que virou costas, do mesmo modo foram das nossas mãos direitinhas para o lixo. E lá foi ele em direcção ao seu cantinho, tirando trufas dos bolsos e comendo, uma atrás da outra.

 

Os Assessores ganhavam muito bem, não era qualquer ninharia. Eram pagos a peso de ouro. Mas faziam-nos rir e isso não há dinheiro que pague.  É justo (!)... 

  

 

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O Candeeiro - 8


O candeeiro não saía de jeito nenhum. Até parecia que tinha nascido ali, de tal forma estava colado ao chão. Era um candeeiro de pé alto, que tinha uma base redonda bem grande, em pedra. Muito pesado, de facto, mas já o tinha movido várias vezes, pelo que, o problema não era do seu peso. 


Estava no gabinete do meu chefe, aproveitando uma breve ausência dele para pôr coisas em ordem e como o espaço não era muito, precisava de desviar um pouco o candeeiro, mas ele brigava comigo e eu já estava cansada. Olhei para o chão e percebi que havia uma grossa camada de cera que não tinha sido espalhada e, provavelmente, logo após a aplicação, puseram o candeeiro em cima e ele tinha colado. Só podia ser isso e já estava assim há algum tempo. Teria que ligar para a logística e pedir para virem removê-lo. 


Enquanto isto, vejo passar o Cruz, um colega da manutenção, que tinha problemas de vária ordem e uma vida muito complicada. Mas às vezes conseguia ser engraçado e apesar do seu quase permanente semblante fechado, quando finalmente ria, era um riso gostoso. Precisava de se rir mais e precisava de muitas outras coisas que a vida tinha sido obrigada a tirar-lhe, dada a sua condição de dependência de drogas para acabar com outras drogas. 


Para ser totalmente franca, nem nunca entendi muito bem como a DRH conseguia mantê-lo nos quadros da empresa, pois se fosse noutra empresa qualquer, há muito teria sido despedido. Não se podia dizer que não tinha sorte porque, na verdade, tinha um chefe que o protegia, pelo facto de ter um filho pequeno que precisava do emprego do pai para sobreviver. Mas era um quadro difícil, porque estava constantemente a recair e tudo se repetia, com a falsa promessa de que era sempre a última vez. 


Quando vi o Cruz, decidi brincar um bocadinho, sem maldade, apenas para nos descontrairmos um pouco. Chamei-o e ele reagiu como de costume. Primeiro ficava parado, ausente, naquele seu ar aparvalhado, com a barriga exageradamente para fora e as costas completamente curvadas; a boca sempre aberta com o maxilar inferior descaído e a língua de fora, como um cão cansado. Era o preço da sua pouca força de vontade. E ficava parado sem resposta, na verdade, esperando que desistissem dele, tal como ele desistia de tudo e de todos, a começar por ele mesmo. 


Na segunda chamada ele veio. Chegou ao pé de mim e pedi-lhe para entrar no gabinete, a fim de me ajudar a tirar o candeeiro do lugar onde estava. Sem olhar para mim, perguntou porque não o tirava eu sozinha e essa era a resposta perfeita, a resposta que eu sabia de antemão que viria. Respondi-lhe que não conseguia.

 

Ficou um pouco parado e depois reclamou “não consegues?” E voltei a responder que não. Olhou para mim com um ar super desconfiado e voltei a dizer-lhe a verdade, que não conseguia. Só não lhe disse que ele também não ia conseguir.

 

Podia dizer que não sabia o que se passava na cabeça dele, mas o facto é que sabia exactamente o que ele estava a pensar, porque eu o conhecia muito bem, e não só a ele, e ainda porque ele era tudo, menos imprevisível.

 

E naquele momento passava pela cabeça dele que, não havia razão alguma para lhe pedir ajuda. Qualquer pessoa fazia aquilo. Pedia ajuda porque era a ele, se fosse a outra pessoa não o faria. E nada disto era verdade, nem uma nem outra coisa. Eu realmente não conseguia levantar o candeeiro do sítio e depois não estava a fazer dele moço de recados. 


É que, por causa das suas limitações, deixavam-no para trabalhos que, por vezes, nada tinham a ver com a sua categoria profissional e ele não gostava disso. Mas também não restava alternativa porque, em boa verdade, para alguma coisa ele tinha que servir, já que o conservavam lá e lhe pagavam um ordenado normal. 


Como ele não reagia e eu estava a perceber que a cabeça dele estava a matutar desnecessariamente, peguei no varão do candeeiro, fazendo mais uma tentativa de o levantar, em vão, para ele ver que realmente não conseguia e percebendo que afinal eu não estava a brincar com ele - e depois era mais um favor quase pessoal, do que outra coisa -, mudou de atitude e deve ter pensado que era uma boa oportunidade para mostrar a sua macheza e mais: que, afinal, as mulheres sem um homem nada são e em alguma altura da vida um homem sempre faz a diferença. 

 

Deixei-o divagar um pouco e ver o que decidia, e como o decidia porque, talvez ele ainda não soubesse, mas era livre de pensar, tão livre como o era em agir, embora na maioria das vezes essa liberdade de acção se traduzisse em negativo.  Mas isso ele teria que aprender.


E nesta altura ele já sorria um pouco com um certo ar de escárnio da minha pessoa, claro, mas não me importei. E o sorriso dele foi aumentando, aumentando, porque devia achar que não tinha como não tirar o candeeiro. Na cabeça dele, e eu percebia isso perfeitamente, aquilo era fácil, fácil, por isso ria com gosto ante a expectativa de me poder mostrar a facilidade com que julgava que o ia fazer. 


E como ele só ria, fazendo-me de ingénua, perguntei-lhe de que se ria. Ele abrandou um pouco, fez uma pausa e, naquela voz rouca e embatucada, respondeu “então não consegues tirar o candeeiro?” Fingi estar chateada e respondi-lhe mais uma vez que não. Ele não entendia, mas também não desconfiou de nada e era essa a minha vantagem, porque eu queria rir quando ele pegasse no candeeiro e percebesse que também não o conseguia tirar. A menos que eu estivesse enganada o que, evidentemente, podia acontecer. 


Finalmente parou de rir, aproximou-se e pegando no candeeiro, primeiro com uma mão e logo a seguir com as duas, não o conseguiu levantar, claro está. Dobrou o seu empenho e pediu-me para sair do lugar onde estava, para ter mais espaço de manobra. Puxava de um lado, empurrava do outro, ficava rubro do esforço que fazia, mas todas as tentativas foram em vão, até que percebeu que era válido o meu pedido de ajuda, que não era uma brincadeira e que, afinal, tinha ficado mal na fotografia. 

 

Perguntei-lhe o que é que se passava e a resposta dele olhando, olhando, mas sem encontrar explicação, foi “não sei”. “Ah, mas riste-te de mim!” - disse-lhe eu e continuei – “Pois é, ri melhor quem ri por último”. 

 

Mas ele estava entristecido. Afinal de contas não tinha conseguido provar nada. Mas eu também não queria que ele ficasse chateado. Então propus-lhe que tentássemos os dois. Voltei para junto do candeeiro e os dois começámos a abanar para lá, para cá, tanto o sacudimos e empurrámos que, finalmente, cedeu, mas ainda assim, não tinha sido fácil. Por baixo, tinha uma enorme camada de cera, claro está. 

 

Então ele riu e riu, já todo satisfeito porque, afinal, sempre tinha servido para alguma coisa e não tinha ficado mal visto de todo. E lá foi, no seu andar autómato, batendo os pés um pouco mais apressado do que o costume, impulsionado pela adrenalina, mas com a cara sempre no chão e a língua de fora, como sempre. 

 

Há coisas que nunca mudam.



quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Em Cambridge - 7


Quinze dias após o nascimento da minha neta Sofia, estava na minha vez de ir para Inglaterra, mais propriamente para Cambridge, onde eles residiam, para dar assistência à jovem família e conhecer ao vivo a minha pequenina e a mais recente chegada à família.

 

Um dia saí com a minha querida nora, a Tânia, para irmos fazer compras ao supermercado e tive que ser eu a conduzir para ela poder ficar no banco de trás, dando assistência à bebé.

 

Conduzir em Inglaterra pode dizer-se que não foi nada fácil. Eles habituaram-se rapidamente. Para mim foi um suplício. Era muita coisa ao mesmo tempo. Primeiro, o facto de estar sentada no lado contrário ao que era habitual. Segundo, andar na faixa contrária e todo o trânsito a correr no sentido contrário, era um permanente susto. Finalmente, o GPS que eles usavam era sempre em inglês e se bem que não fosse difícil entendê-lo, em condução, tudo se tornava mais complicado, com tendência a bloquear a minha acção.

 

Cada vez que precisava de meter mudanças, porque não era um carro automático, lá ia eu com a mão direita, assim como o travão de mão, não havia uma única vez que o fizesse logo à primeira com a mão esquerda. Levava sempre em primeiro lugar a mão direita e só quando percebia que não o encontrava é que, rapidamente, ia com a mão esquerda. Por mais curto que fosse o trajecto, até porque Cambridge é uma cidade pequena, quando chegava, estava sempre exausta, por todo o esforço que era obrigada a fazer para me concentrar em tudo ao mesmo tempo. Mas enfim, só conduzia quando era mesmo necessário.

 

Vínhamos carregadas do supermercado e estava na hora de dar de mamar à pequena Sofia, que não gostava de se fazer esperar. Estacionei o carro mesmo em frente à porta de casa, mas no lado oposto da rua, dado que normalmente não usávamos o estacionamento da garagem. Saí e tirei todos os sacos do supermercado, enquanto a Tânia se ocupava da Sofia. Quando abrimos a porta de entrada do prédio e já estava tudo junto ao elevador, a Tânia chama-me, aponta para fora e muito ansiosa diz “o carro… o carro!”…

 

Não percebendo exactamente o que ela queria dizer, olhei para onde apontava e então percebi. O carro estava a deslizar, a deslizar, ou seja, a andar sozinho para trás. Logo me lembrei que me tinha esquecido de puxar o travão de mão e largando tudo, fui a correr que nem uma doida, sem saber exactamente o que fazer. Ou abria o carro e entrava para o travar ou me punha atrás dele para travar o andamento. E enquanto corria pensava em qual das duas situações seria melhor, mas isto em fracções de segundo.  


Havia outros carros estacionados e se não tomasse uma resolução rápida podia ser complicado. E ainda nem bem tinha decidido o que fazer, quando percebi que o carro tinha parado. Não sabia porquê, mas uma vez parado, abri, entrei e então puxei o travão de mão.

 

Entretanto, vim cá fora para ver se estava bem naquele sítio ou se seria melhor chegá-lo um pouco à frente e só então reparei que o passeio, isto é, a calçada, não era em linha recta, fazia uma ligeira diagonal para o sentido da estrada, o que fez o carro travar, porque o pneu encontrou resistência.

 

O susto não foi pequeno e a minha condução em Inglaterra, por mais que fosse necessária e que mais tarde nos tivesse dado muita vontade de rir, acabava ali. Ponto final. Só voltaria a conduzir em Portugal.



terça-feira, 9 de setembro de 2014

As calças brancas do LQ - 6


LQ era um assessor do CA que foi colocado num gabinete da Direcção Técnica para lhe darmos apoio. Quem trabalhava mais directamente com ele era a Catarina, mas sempre sobrava alguma coisa para mim. 

 

Era curtido e vaidoso, também. Não era muito bem visto pelos trabalhadores, mas com o tempo, acabou por ser aceite, conseguindo uma boa colaboração por parte de todos, pelo menos, na nossa Direcção. 


Era nervoso e irrequieto e fazia questão de dar sempre a entender que estava muito ocupado, mesmo quando era apanhado a dormir, mas considerava-se o maior e queria mandar em tudo e todos. 


Um dia, olhando para ele, sempre em movimento, percebi que as calças do terno branco que usava com frequência, estavam curtas e fora de moda. Comentei com a Catarina, que logo começou a rir e as duas rimos à conta das calças curtas do LQ. A partir daí, sempre que ele punha aquele fato, lá olhávamos nós uma para a outra e lá vinham à baila as calças dele, para nos divertirmos um pouco. E os comentários começavam: “mas a mulher não vê?”, “e não tem outra roupa para vestir?”, “com tanto dinheiro que ganha”... etc, etc. Até que, sugeri à Catarina, que o chamasse à atenção para o facto de as calças estarem muito curtas, mas a Catarina coibiu-se, não tinha muito à vontade para isso. Como vi que ela não iria avançar, disse-lhe que lho diria eu mesma. Ela riu muito, deu muita gargalhada, mas achava que eu não seria capaz de lhe dizer. No fundo ela tinha um certo medo dele, como quase toda a gente. 

 

Os dias passaram e lá vem o LQ novamente com o seu fato branco, imaculado, que devia estar imundo. Ás vezes dava-nos gozo falar mal de qualquer coisa e o LQ prestava-se a isso. No fundo só precisávamos de descontrair um pouco. E dizia ela a rir com gosto: “diz lá, Luisinha, diz”. Ok. Lá o chamava eu “engenheiro”, era assim que o tratávamos “oh engenheiro, pode chegar aqui” e a Catarina a tentar ficar séria, engolindo o riso e o gozo que lhe ia na alma, porque ela era sempre muito correcta, correcta de mais. Sim, sr. engº, sim, sr. engº. Mesmo que não fosse para ser, ela sempre dizia "sim" a tudo. 


Lá veio ele e quando chegou perto de nós, com muita calma, perguntei-lhe em voz baixa “engenheiro, já viu como essas calças estão curtas, precisa descer essa bainha, se quiser traga-as que eu arranjo, se não tiver quem lhe faça”… ele interrompe, começa a gaguejar - o que acontecia sempre que ficava nervoso, dizendo: “ah, não, este fato já é velho, tenho que o pôr de lado, porque tenho lá um novo”… bla… bla… bla…


A Catarina morta de riso e o homem desfazia-se em desculpas esfarrapadas porque, na verdade, ele tinha sido apanhado de surpresa. Ele nunca pensou que alguém reparasse naquele pormenor e muito menos o dissesse assim, abertamente, sem rodeios. Mas ele ia sempre directo aos assuntos, com tudo e todos, portanto, eu só fiz o mesmo. Tinha aprendido a lidar com ele e amor com amor se paga. 


Bom, depois de muito tagarelar, prometeu que não usaria mais aquele terno, mas olhava para nós com um olhar diferente do habitual. Talvez por ter descoberto que afinal não éramos só o que aparentávamos. Afinal, havia mais em nós, embora estivéssemos sempre caladinhas e a Catarina no sim, sr. engº. Ele foi, e nós ríamos que nem umas perdidas. A Catarina nem queria acreditar do que eu tinha sido capaz. Mas aquilo não era nada. E contámos às outras colegas as história das calças e todas diziam “ah… tu disseste?” É, eu disse. 

 

Os dias passaram e um dia à chegada dele, pela manhã, olho para a Catarina e digo “lá vem ele outra vez com aquelas calças, não acredito!” E diz a Catarina já a desfazer-se a rir: “Então, o que é que tu queres, o homem não tem outras”. Começo a chamar por ele “engenheiro, oh engenheiro” e lá vem ele apressado, a andar de lado, com papéis na mão para mostrar trabalho e com a cara franzida, para se perceber que àquela hora da manhã já estava cansado de trabalhar.

 

“Engenheiro, outra vez essas calças?” Resposta dele, parecendo um garoto que está a ser chamado à atenção por algo que não fez, ao mesmo tempo que se olha de cima a baixo para obter a sua própria aprovação:

 

Mas são outras(?)… ai, vocês!...

 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O Jeep do RM - 5


Em frente ao meu chefe que estava sentado à secretária, concentrado em qualquer coisa que estava a fazer, aguardava que ele me desse atenção para lhe dizer o que tinha acabado de acontecer. Mas ele fazia tudo menos dar-me a atenção que eu precisava naquele momento. Estava difícil.

 

A seu pedido, evidentemente, porque tinha sido chamado para uma reunião inesperada e que não era possível prever a que horas acabaria, tinha ido à rua buscar o jipe dele que estava estacionado no parquímetro e dado que já havia lugar na garagem da rtp, na 5 de Outubro, não valia a pena pôr mais moedas. Apressado, ele atirara-me a chave, pedindo-me para ir buscar o jeepe e estacioná-lo na garagem.

 

Nessa altura, ainda não tinha carro da empresa nem direito a estacionamento e, se bem que não fosse das minhas competências fazer aquilo, a nossa camaradagem profissional ultrapassava em grande escala esses limites. Assim, depois dele ter ido para a reunião, lá fui buscar o carro.

 

Na verdade, era a primeira vez que tal acontecia. Já tinha ido pôr moedas no parquímetro, algumas vezes, mas nunca tinha conduzido o jipe, no entanto, não achei que tivesse algum problema, por isso, peguei nas chaves e fui. Pus o jipe a trabalhar e fui conduzindo até à entrada da garagem. Aguardei pelo sinal verde e entrei.

 

Comecei a descer a rampa da garagem até ao piso menos um e ao fazer a esquina, calculei mal a curva e pumba… bati. Ouvi a traseira lateral direita embater com força na parede. Que estupidez(!), pensei. Como é que eu, uma condutora experiente, tinha feito uma coisa daquelas? Ainda por cima com um carro que não era meu? Ele confiava em mim e eu tinha feito um estrago daqueles!? É que, pelo estrondo, não tinha sido pouca coisa. Estava irritadíssima comigo mesma.

 

Continuei a conduzir até ao piso menos dois onde encontrei lugar e estacionei. Estava ansiosa para ver o estrago que tinha feito. Apressadamente, saí do carro e fui inspeccionar. Nem queria acreditar. Que loucura! Aquilo não podia ter acontecido de jeito nenhum. E agora? De quantos vencimentos eu ia precisar para pagar o estrago feito?

 

E aí estava eu, à espera que ele me desse atenção para lhe contar o sucedido. Quem iria ficar mais furioso, ele ou eu? Sim, muitas vezes nos desentendíamos, mas a nossa cumplicidade estava acima dessas coisas. Fazíamos uma dupla imbatível. Podíamos ter um desentendimento forte, mas no instante seguinte estávamos a entender-nos a cem por cento. Tínhamos liberdade para sermos francos um com o outro, até onde isso é humanamente possível, o que era muito mais do que profissional.

 

Não que isso alguma vez me tenha dado privilégios no campo profissional nem tão pouco monetariamente. Para ele eu sempre fui a melhor secretária do mundo, mas traduzi-lo em promoção e em remuneração, jamais. Quando eu o confrontava com essa situação e quando chegava a altura do ano, dos enquadramentos profissionais, muitas vezes o encostei à parede fazendo-lhe perguntas directas acerca do meu desempenho profissional, a que ele nunca teve dúvidas em reconhecer o mérito que me era devido. E eu sabia que ele o reconhecia com verdade. Mas daí não passava.

 

Todavia, era o meu melhor amigo. Resolvíamos sempre as nossas coisas, os nossos assuntos pessoais e profissionais em equipa, no mais perfeito equilíbrio, protegendo-nos um ao outro, facilitando a vida pessoal e profissional um do outro, quebrando o “galho” um do outro, organizando-nos para facilitar também a vida no âmbito familiar porque, para além do trabalho, há a família, que é preciso respeitar e que precisa da nossa atenção.

 

Sempre que eu tinha descompensações de ordem emocional e ficava esgotada era ele que sabia o que fazer comigo. Era ele que me dava a “mão”, era com ele que desabafava e o contrário também era válido.

 

A agora aí estava eu, esperando que ele parasse o que estava a fazer e olhasse para mim, para me ouvir dizer que tinha batido com o Honda na esquina da garagem. Como é que iria reagir? É verdade que ele não tinha o direito, legalmente falando, de me culpabilizar. Mas isso, entre nós, não contava. Eu era culpada, sim.

 

Finalmente, ele olhou para mim e como se ainda não tivesse reparado que eu já ali estava há algum tempo, disse: “ah, estás aí”. Não sabia como dizer, mas antes que se fosse novamente e me deixasse pendurada, disse-lhe que já tinha posto o carro na garagem. “Ah, já havia lugar... pois àquela hora já tinham saído muitos”…, comentou ele. E antes que continuasse, porque quando começava a falar nunca mais se calava, interrompi, dizendo: “tenho muita pena, desculpa, mas bati com o carro, na garagem”. Estava dito.

 

Surpreendentemente, não ficou muito admirado. Não percebi bem porquê, mas talvez para me poupar. Perguntou se tinha sido muito, respondi que sim, muito. E era. Estava batido e muito riscado. Era feio. Ele ouvia-me, mas não parava de fazer coisas, indo da janela para a secretária, da secretária para a estante, mexendo aqui, mexendo ali, tirando daqui e pondo ali, mas nada de comentar acerca do assunto. Disse-lhe, então, que visse e depois me dissesse, que eu, claro está, contrariada, mas assumia o prejuízo.

 

Findo o dia, retornamos às nossas casas. Quando me deitei, não conseguia dormir, pensando em como ele iria ficar aborrecido quando visse o estrago. Talvez ele não tivesse reagido mal por achar que eu estivesse a exagerar. O pior é que não estava. Tinha sido uma pancada e tanto. Ele nem imaginava. Que chatice! Como não era com um desconhecido, mas sim com o meu chefe, acabei por me acalmar e consegui dormir.

 

No outro dia, lá vou eu a caminho da rtp para mais um dia. Chego e começo a trabalhar. Ele ainda não tinha chegado e com o trabalho, quase me esqueço do assunto. Mas, de repente, eis que chega, apressado, entra no gabinete, tira o casaco e senta-se. E não diz nada. Que estranho. Esperava que ele entrasse por ali dentro, fazendo-me mil e uma perguntas, porque quando começava a falar nunca mais se calava. Mas, para meu grande espanto, nada disso aconteceu.

 

Vou atrás dele, fico na sua frente e ele apenas me pergunta o que é que há, se eu quero alguma coisa. Oh, digo eu, então e o assunto de ontem? Com uma certa ingenuidade ele pergunta qual era o assunto. Com os nervos já em franja, reavivo a sua memória, lembrando-lhe que ele ficara de ver a batida com o carro. Resposta dele:

 

- Ah, aquilo? Aquilo já estava!


segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A Fátima - 4


"Eu sou uma pessoa muito evoluída!..." - dizia a Fátima no seu melhor, isto é, com toda a sua ignóbil desenvoltura, certa da sua pessoa e das suas convicções, perante todo o nosso espanto.

 

 O Zé contava uma anedota e à volta dele estava eu, sentada à secretária, posto que ele estava sentado numa cadeira junto à minha secretária, a que vieram juntar-se o meu chefe, RM e o chefe dela, FP. A Fátima tinha ficado sentada no lugar dela, do outro lado da sala, e como tinha trauma de anedotas, fez cara feia e dali não saiu, mostrando-se aparentemente desinteressada.

 

Nunca percebemos porque razão ela reagia mal às anedotas. Tinha um amigo que todas as tardes passava por lá para a ver e tinha por hábito contar uma anedota, o que muito me encantava, por ser uma forma de quebrar o stress de tantas horas seguidas de trabalho e animar um pouco o espírito. Mas para ele contar, a Fátima exigia sempre que não fosse uma anedota "ordinária", porque ela não gostava. Então, o amigo tinha sempre que ter muito cuidado com o que ia contar, para não ofender os ouvidos da pequena.

 

Naquela tarde era o Zé, que também costumava passar por lá, embora com menos assiduidade. Era só de vez em quando, mas a presença dele era sempre marcada por alguma graça e alguma piada que, verdade seja dita, ele tinha de sobra. Uma boa disposição fora do comum. Grande Zé!

 

“Era uma vez um alentejano”... assim tinha começado a anedota, como começam tantas outras e que a Fátima possivelmente não apanhou desde o início, com a mania de não querer anedotas "ordinárias". E de cada vez que ele se referia ao alentejano, o pressuposto protagonista da anedota, dizia: "então, o homem"... "o homem"... "e o homem"... e à medida que a anedota ia avançando e tomando forma, nós já íamos aumentando o riso, antecipando um final super hilariante, porque tínhamos a certeza de que era esse o seu fim.

 

A Fátima não apanhou o início, mas de repente resolveu que não queria ficar de fora porque, se os outros já se estavam a rir, porque não haveria de rir também? Contrafeita ou não, lá se levantou para se juntar ao grupo. O facto é que, de cada vez que o Zé falava "o homem...", a Fátima interrompia, perguntando com um certo receio e uma ingenuamente completamente desastrosa, naquela voz grossa e meio embargada, que lhe era tão característica: "quem era o homem?", a que o Zé, da primeira vez nem ligou, fazendo apenas uma ligeira pausa para dar continuidade; da segunda vez que ele menciona, no decorrer da anedota "o homem...", lá vem a Fátima novamente a insistir: " mas quem era o homem"(?), porque era tudo o que ela queria saber da anedota.

 

O Zé prolongou a pausa, mas continuou, ignorando a inusitada pergunta, porque não fazia sentido nenhum e nós, quase que já nem precisávamos de ouvir o resto porque, só de ouvi-la interromper para querer saber quem era o homem, já estávamos perdidos de riso, a tentar disfarçar para não nos escangalharmos a rir antes do tempo.

 

E já mesmo na reta final da anedota quando, mais uma vez, o Zé diz: "e o homem"..., a Fátima avança na sua total imbecilidade, com um sorriso mais amarelo do que nunca: "mas quem era o homem?..." E estando mesmo no fim, o Zé pára, olha para ela com os olhos muito arregalados e numa fúria, dá-lhe um grito: "oh porra, sei lá quem era o homem!!!..."

 

Nós, perdidos de rir a bom rir, tanto, que o estômago até me doía. O meu chefe RM perdido de gozo, olhava para mim e falava com os olhos, como só eu entendia. Foi dois em um. A anedota acabou e nós ríamos que nem uns perdidos, sem conseguirmos entender aquelas malogradas intervenções da Fátima que, em vez de ouvir a anedota, só queria saber quem era o homem(?).

 

E como não tivesse achado muita piada - nem podia, porque não esteve com atenção - e percebendo que não conseguia acompanhar os outros, começou a resmungar connosco, dizendo que tínhamos a mania que éramos espertos e que ela era parva, etc. Não raras vezes ela se manifestava desta maneira. Mas ela realmente não era parva. Ela era inteligente, só que vivia num mundo à parte, num mundo só dela e depois tinha dias em que estava mais ausente do que outros. Mas a maior parte do tempo não estava presente.

 

Naquele dia a coisa foi mais longe porque ficou muito irritada. E então disse uma coisa que eu não sei como classificar. Disse que nós achávamos que ela era estúpida e atrasada mental o que, segundo ela, não era nada disso, porque se considerava muito esperta e muito evoluída. Muito evoluída! Até aqui... tudo bem. O meu - nosso - grande espanto foi quando ela proferiu esta frase que, para mim, ficou célebre e não foi por ter vindo dela. Viesse de onde viesse, mas foi dela que veio e é estranho:

 

"Eu sou muito evoluída... eu até já tive uma relação extraconjugal!..."

 

E assim, ficámos todos a saber, o que é realmente ser evoluído!...