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sexta-feira, 3 de abril de 2015

O Nuno - 16


Aquela sala era uma maravilha. Não havia stress que entrasse porque se passava o dia a rir por dentro e por fora, às claras ou às escondidas, de alguma maneira havia sempre um motivo atrás do outro que não nos dava descanso. Era uma terapia e tanto e porquê? Porque havia uns elementos absolutamente deliciosos, mas um, um em especial era uma verdadeira anedota, uma anedota viva, que ninguém podia ignorar nem desmerecer.

 

Nuno era filho de mãe e pai funcionários que conseguiram enfiá-lo na RTP. Nuno era muito novo, tinha vinte e um anos. Por acaso lembro-me de ter entrado com a mesma idade, vinte e um anos, mas não era filha nem família de ninguém e só entrei porque fiquei classificada em primeiro lugar no concurso público que fiz no meio de trezentos e tal candidatos. Mas o Nuno já tinha um filho com três aninhos, que era uma graça. E quando nos metíamos com ele, brincando, por causa de ter sido pai tão cedo, respondia com a sua habitual displicência “a malta era jovem e éramos hippies, íamos para o castelo e…” e… já se viu.

 

O facto é que o David estava cá. A mãe, a Mara, era uma garota da idade dele, mas com outra cabeça, tanto assim, que Nuno passava a vida a pedi-la em casamento e ela negava-se, coisa que ele não entendia, mas que não o fazia desistir e sempre que havia pedido de casamento, que dava direito a ficar de joelhos perante a pretendida, fazendo uma declaração com flores e tudo, no outro dia tínhamos que aturar os desabafos do “não” da Mara.

 

Viviam juntos desde o nascimento do filho, sendo que os pais dele pagavam quase todas as despesas. Aquele neto era quase um filho. Mas estava tudo em família, tanto em casa como no trabalho e isso é que era o importante. Entretanto, todos os dias levávamos com “Nunices”, como costumávamos dizer. O Nuno era um indivíduo que não primava pela inteligência e além disso, ou por conta disso, desenvolvera uma personalidade excêntrica baseada num possível ego, que o fazia achar que era especialmente capacitado para qualquer coisa e ainda dotado para as artes -, só porque o pai era “pintor” -, quando na verdade não era, nem muito nem pouco, em coisa nenhuma. Esta é que era a verdade. Gostávamos muito dele, mas as coisas são como são.

 

Tinha outras coisas, tais como, era um indivíduo bem disposto e sempre alegre, tinha muito amigos, mas todo ele era muito “naif” e às vezes fazia-nos perder a cabeça com tanta burrice. Só fazia asneiras no trabalho. Os outros faziam e ele desfazia. Era uma completa nulidade. Não sabia, nem aprendia e o que fazia era precário. Só sei que à conta dele, passávamos a vida a rir, ainda que não quiséssemos.

 

Vocês têm a mania do “inho”, dizia ele, e nós ríamos, sendo que, muitas vezes, ele nem percebia de que é que nos ríamos, o que nos dava ainda mais gozo. Sempre que atendia o telefone e eram recados que tinha que transmitir, era preciso tradutor/a, porque ele simplesmente alterava as coisas mais simples, complicando-as. Um dia atendeu três telefonemas seguidos, com pouco intervalo uns dos outros e dizia para a pessoa a quem tinha que dar o recado, porque na altura não estava: “telefonou o sr. António da Central”; ficávamos a olhar para ele e desatávamos rir. “Telefonou o sr. Raposo da Manutenção”… e a cena repetia-se; “telefonou a D. Alda…” e a gente ria, porque não conseguíamos deixar de o fazer, enquanto ele ficava muito chateado, queixando-se “lá estão as parvas a rir” e a gente ria ainda mais. É que não tinha sido nada daquilo que ele tinha ouvido, ou seja, não havia nenhum sr. António na Central, mas sim um Antonino, assim como não havia nenhum Raposo na Manutenção, mas sim um Raposinho e a D. Alda não era Alda coisa nenhuma, era Aldina, mas como ele dizia que nós tínhamos a mania do “inho”, por sua livre recreação, mudava o nome às pessoas e quando o rectificávamos “oh, homem, não é António, é Antonino” ele não percebia, limitando-se a dizer “hum, que esquisito”. Esquisito ou não, as pessoas tinham um nome que ele não podia alterar porque lhe apetecia.

 

Muitas vezes, muitas vezes mesmo, vinha de boleia para casa comigo, porque ganhava tempo. Um dia disse que eu tinha que esperar um bocadinho porque primeiro precisava de ir à florista, que era do outro lado da rua, comprar uma flor para a Mara. Começámos todos a rir porque logo percebemos que seria mais uma investida para pedir a Mara em casamento. Disse-lhe que não podia esperar. Começou a “choramingar” para ver se me comovia e esperava por ele. Disse-lhe que não. Como ele já estava a torrar a minha paciência, lembrei-me de uma coisa. No sítio onde eu o largava para apanhar o autocarro para casa, que era um pouco mais à frente, havia flores. Disse-lhe que viesse, que podia comprar a flor junto à paragem do autocarro. Mas ele dizia que não havia nenhuma florista ali. Tem uma florista, sim, dizia-lhe eu, sem entrar em pormenores. Bom, depois de muita batalhação, lá se convenceu e veio comigo até ao tal sítio onde costumava ficar. Quando parei disse-lhe que tinha ali à direita a florista. Ele olhou e viu a funerária com o florame todo à porta. Ignorou e voltou a perguntar-me onde era a florista. Repeti-lhe que ali mesmo na frente dele. Mas isto são flores para os mortos, dizia ele, muito espantado. Oh, tonto, e as flores não são todas iguais? Respondi-lhe. Não vou levar destas flores para a Mara, nem pensar, dizia ele, muito chateado… parecia um puto. Isso é contigo, tu é que sabes, respondi-lhe. E gora aonde é que vou comprar a flor para a Mara? Aí, tens tantas flores, não há uma que sirva? Dizia eu. Ah, mas estas não… enfim… disse adeus e deixei-o. 


No outro dia estava de trombas comigo, não me falava. Contei a história, toda a gente se ria. Fui mázinha: não; a verdade é que as flores não têm culpa de ser discriminadas. Umas servem, outras não. São todas iguais. Não vêm todas do mesmo sítio? Cada um dá-lhes o destino que quer. Claro que conhecendo o ser “naif” do Nuno, era sabido que ia dar sarilho. Fazer o quê? Nunca mais me chateou com as flores. Quando precisava ia mais cedo buscá-las.

 

Um dia tive que passar no mecânico para lhe pagar e mais uma vez o Nuno ia comigo. Parei o carro e saí. Veio o mecânico, acertámos as contas, ele olhou para dentro do carro, viu o Nuno e em voz baixa perguntou-me se era o meu marido. Respondi-lhe que era um colega e regressei ao carro. Comecei a andar e o Nuno pergunta “o que é que ele te disse quando falou baixinho”? Respondi-lhe que queria saber se ele, Nuno, era o meu marido. O Nuno todo enxofrado, arregalou os olhos e disse “eu, o teu marido, era só o que faltava!” Achando que era por causa do factor “idade”, eu, a parva, disse-lhe que também não era preciso reagir assim, lá por ser mais velha, não era preciso mostrar-se tão incomodado assim! Mas logo ele se apressou a corrigir, dizendo que não era nada disso. Fiquei mais intrigada. Então o que seria? Resposta dele, com o dedo indicador bem apontado para o ar: “Se eu fosse teu marido não eras tu que conduzias o carro, era eu!”… Eu já não queria ouvir mais disparate nenhum. Chegava de tanta estupidez.

 

O Nuno andava a tirar a carta de condução. Chegou o dia do exame e ficou mal. Vinha muito triste, claro. Uma vez pediu à mãe o carro emprestado e a mãe disse que não. Depois pediu ao pai e o pai disse que não. Claro, os pais sabiam o filho que tinham. Um dia ia comigo de boleia e pediu-me para conduzir o meu carro. “O quê, estás doido?” Disse-lhe eu. Pois ele levou o caminho todo a chatear a minha paciência para o deixar meter as mudanças. Parecia uma criança pequena. Até que, a páginas tantas, parei junto à berma do passeio, abri a porta e disse-lhe sem dó nem piedade: “sai, sai, estou farta de te aturar; nem ao meu filho eu aturo tanta parvoíce”. Ficou amuado, como era de esperar. 


Mais tarde, finalmente conseguiu tirar a carta. Um dia, a descer a Calçada de Carriche, ia um sujeito a conduzir um velho carro, muito, muito devagar: dez ou quinze à hora, mas muito cheio da sua pessoa. Eram buzinadelas de todo o lado e eu pensei para comigo mesma “mas o que é isto, o que é que se passa”? Quando passo por ele, qual não é o meu espanto, era o Nuno… quem mais poderia ser?...

 

Uma vez tocou o telefone da colega ao lado dele, cuja secretária estava junto à dele. O telefone dela tocou e como ela não estava, ele atendeu. Logo a seguir ela chegou e sentou-se. Tocou o telefone dele e como ele continuava ao telefone, atendeu ela o dele, ficando os dois telefones com os fios cruzados. Ele acaba o telefonema e desliga o telefone, sem nunca mais se lembrar que era o dela, pousando o auscultador no primeiro telefone que tinha à frente, o dele, onde ela estava a falar. Resultado: desligou a chamada dela. Eu, que ficava em frente, estava a trabalhar mas presenciei a cena toda e dei o alerta, dizendo que ele tinha desligado a chamada dela, porque ela ficou com o telefone na mão “tá… tá… tá”… e ninguém respondia, claro, pelo que ela acabou também pousando o auscultador. Nesta altura a Vitória, que ficava ao meu lado, a Vitória e eu já ríamos da confusão que o Nuno, uma vez mais, tinha estabelecido, enquanto ele se lamentava dizendo que nós o acusávamos de tudo, era tudo ele, continuando a leste do que tinha feito. E, calmamente, começámos a explicar, mais para a colega do que para ele, o que tinha acontecido. Mas, entretanto, a pessoa com quem a Lurdes estava a falar e a quem tinha sido cortada a chamada, liga de novo. Claro que o telefone que tocou foi o do Nuno, pelo que ele levantou o auscultador para atender, mas como os auscultadores estavam cruzados não ouvia nada, porque estava no auscultador errado e dizia “não está cá ninguém!”… Nós sabíamos que estava, mas no outro auscultador. Mas por esta altura já ríamos tanto, que já nem se percebia o que dizíamos e ele continuava a leste. E o telefone tocava, ele atendia “tá?”… E desligava. E a cena repetia-se até que eu me contive e disse à Lurdes para descruzar os auscultadores que estavam trocados. A Lurdes que era esperta e perspicaz, percebeu logo o que se tinha passado. Descruzou os auscultadores olhando para ele e dizendo “idiota, é mesmo idiota, imbecil, olha o que fizeste, não serve para nada”… e o Nuno só dizia “são umas malucas”… “estou farto disto”… e outras coisas mais, ao mesmo tempo que saía porta fora, com a gente a rir que nem umas perdidas.

 

Uma vez chegou pela manhã entrando na sala com um canudo gigantesco, daqueles que os desenhadores de arquitectura usam para guardar os trabalhos. Assim era o Nuno, entrando porta adentro, com aquele seu ar triunfante de sempre, de um grande personagem. Quando o vimos exibindo o canudo, todos franzimos a testa pensando no que ele iria aprontar desta vez. Entrou e encaminhou-se para a minha pessoa, criando um certo suspense. Todos ficámos atentos, a ver o que saía dali. No seu melhor, abre o canudo enorme, tirando de lá uma miserabilíssima folha de papel A4. A esta altura já estavam várias colegas de volta, assistindo àquela performance. Todos estavam curiosos para ver o que traria o Nuno. O hilário começou assim que saiu uma folha A4 de um canudo tão grande. Essa foi a primeira gargalhada geral. Depois e sempre em grande estilo, coloca a folha em cima da minha secretária. Dando uma olhada vejo umas pinceladas, parecendo que os pincéis tinham sido limpos naquela folha. Depois ele vem ao meu ouvido dizer para ignorar o resto do pessoal porque, ali, além de mim, ninguém tinha “sensibilidade” para apreciar as artes. Os outros não percebiam nada daquilo, sendo que eu é que estava à altura do trabalho artístico dele. Fiquei a olhar para ele com cara de parva. Saiu da geral, aquela exclamação “puf”, de que não serve para nada. Tendo percebido o desprezo de todos, continuou a explicar-se, dirigindo-se sempre e só à minha pessoa “isto é o que está a dar”. O que eu via era uma coisa sem nexo nenhum. Uma coisa de idiota. E era isso que me apetecia dizer-lhe, mas não o conseguia, faltava-me a coragem suficiente. Entretanto, ele continuava a querer vender a banha da cobra: isto é o que está a dar… nos consultórios dos médicos e nos gabinetes dos advogados é isto que se usa agora e vale uma fortuna (?)…


Mas há mais... quando ele se chateava muito e já não sabia o que fazer, punha o lápis ou a caneta por cima da orelha, à antigo merceeiro e lá vinha aquela frase, que por mais que fosse corrigida, não entrava de maneira nenhuma:


-  "É preciso uma paciência... uma paciência de Jacob"!

De Jô, dizíamos todos ao mesmo tempo, a rir à gargalhada.


- De Jô???... 

Sim - respondíamos nós - Jacob é a outra lá de baixo.

Era uma colega de se chamava Helena Jacob!(?)