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quinta-feira, 27 de julho de 2017

Palavras árabes - 38


O tio padre não largava aquela bíblia de maneira nenhuma. Em todos os lugares que parávamos, logo ele arranjava um sítio para pousar e abrir a sua tão sagrada bíblia, onde enfiava o rosto por inteiro: olhos, nariz e boca; tudo duma vez, por trás da sua santa e atenta leitura. 

É verdade que ele andava sempre com ela atrás, para todo o lado, inclusive em casa. Mas aquele passeio às Furnas, em dia de domingo, tinha sido ideia dele. Fazia sentido que se alheasse um pouco das leituras para se integrar num passeio familiar, sobretudo com os sobrinhos netos em volta. Mas por mais que tentássemos pô-lo a falar e a comunicar connosco, não havia maneira de o trazermos a nós, respondendo apenas com breves monossílabos “ham, hem, hom, hum…” fingindo estar a dar atenção, mas o facto é que dali não saía. Nem com toda a gritaria das crianças. Nada conseguia interrompê-lo. Aquilo já me estava a chatear. Foi então que me lembrei de uma brincadeira que não pude evitar. 

Cheguei-me devagar, devagarinho, junto dele, para não o assustar e afastar-se ainda mais do que já estava e sempre de mansinho, como quem não quer nada, perguntei-lhe: 

- Sabe que os árabes têm muitas palavras começadas por “al”? 

E levantando ligeiramente a cabeça, ao mesmo tempo que olhava para mim, respondeu:

- “Hum…” – sem perceber aonde eu queria chegar, claro.

É verdade ou não? – Continuava eu – Os árabes têm um vasto dicionário de palavras começadas por “al”, inclusive, nós herdámo-las – e olhando em frente, com os olhos postos no horizonte, acenou que sim com a cabeça e antes que voltasse a mergulhar o nariz de novo na santa e sagrada bíblia, como quem não quer nada, perguntei:

- Sabe como é que se diz, por exemplo… “rapaz” em árabe? 

Continuando com o olhar fixo no horizonte, como que a ver se a palavra lhe caía do céu, abanou a cabeça em sentido negativo. Então respondi:

- Rapaz, em árabe, diz-se: “almoço”. 

E os olhos dele deixavam de estar fixos e meio perdidos no horizonte, para se fixarem em mim, com o sobrolho meio franzido e o rosto balançando levemente para cima e para baixo, de quem está apreciando, julgando, pensando em algo que nunca lhe tinha passado pela cabeça. A esta altura, o sobrinho mais novo e meu marido, que estava posicionado atrás, sem ser visto pelo tio, já ria com gargalhadas silenciosas, sem se conseguir conter, mas sem querer quebrar a brincadeira que, para o tio, parecia ser uma coisa séria. 

E antes que voltasse a pôr a cabeça novamente na sagrada bíblia, mais uma vez o interceptei, continuando:

- E sabe como é que se diz… “cara” em árabe? 

É claro que ele não sabia e nem nunca tinha pensado nisso. Por isso, novamente desviando o olhar da minha pessoa para se fixar na distância, ficou em silêncio durante alguns segundos, até que o interrompi, dizendo:

- “Cara” em árabe diz-se “alface”.

Olhando para mim, dizia ele:

- Que interessante!...

E enquanto voltava a mexer a cabeça, balanceando-a levemente para voltar a perder-se no horizonte, apreciando a tão extraordinária informação sobre o vocabulário árabe, que nunca tinha imaginado, nem pensado, dizia:

- Curioso!  

E até já sorria, um sorriso muito débil, lá muito no fundo. O certo é que eu estava a conseguir arrancá-lo à sua leitura preferida. Eu estava contente com aquela cena. Estava a resultar. E de novo perguntei:

- E… “auto-estrada”?

- Não faço ideia – respondeu. Não faço a menor ideia.

Dei-lhe uns instantes para ver o seu pensamento andar um pouco à nora e passados uns segundos respondi:

- “Alpista”.

- “Alpista”? – Repetia ele – É interessante! – E repetia a palavra, exportando-a infinito afora, dando-lhe toda a liberdade para existir e para a admirar. E como a coisa se proporcionasse a continuar, decidi continuar:

- E sabe como é que se diz em árabe “supositório”? 

O tio padre olhou para mim muito depressa e mais atento que nas outras palavras, parecendo querer saber imediatamente a resposta sem se fazer esperar muito.

- Como é?

Como é(?) - Perguntava, interessadíssimo pelo assunto, na sua belíssima pronúncia açoriana e com um ar deliciosamente ingénuo. Tive que responder. Tive que satisfazer a sua curiosidade, mas não era assim tão rapidamente como ele parecia querer. Fazia parte da brincadeira criar algum “suspense”. Por isso fiquei olhando para ele, ansioso pela minha resposta, enquanto o sobrolho permanecia franzido. E finalmente satisfiz a sua curiosidade:

- Supositório, em árabe, diz-se “Alcoentre”.

- Hum?... – Dizia ele com a boca entreaberta, o queixo ligeiramente descaído e um ar estupefacto. 

Foi então que desatámos a rir, achando que já chegava de atazanar a vida dele. Quando percebeu que tinha sido apanhado na brincadeira também riu com satisfação. E na verdade pareceu-me até aliviado por aquilo não passar de uma brincadeira, se não, como é que ele não iria saber? 

O tio padre não era estúpido nem burro. O tio padre só tinha um defeito: ser padre. É que o facto de ser padre o fazia ter todo o tipo de limitação e, portanto, como homem de boa fé, acreditava ou não, mas caso não acreditasse, não tinha essa consciência, o que vem a dar no mesmo.

E o passeio às Furnas foi salvo pelas palavras árabes.



quarta-feira, 26 de julho de 2017

Uma capa para o I Pad - 37


Uma capa para o I Pad, era disso que eu precisava. Já tinha andado a ver e não tinha encontrado nada do que queria. Agora estava no sítio certo e mais uma vez iria procurar, porque me fazia falta. Já tinha visto na Worten e não havia o que eu queria. A Rádio Popular estava ali bem na minha frente e não perdi mais tempo.

Entrei e comecei a averiguar. Passei pelos corredores com tudo e mais alguma coisa, menos capas para tablets. Mas de repente ei-las, ali na minha frente. Aproximei-me e comecei a inspecionar. Havia várias, de várias cores, mas ainda não era bem aquilo. Chamei um dos empregados e perguntei se havia mais. Olhou e respondeu que não. Era tudo o que havia. Pensei, mais uma vez não encontro o que quero. Até já tinha visto nos chineses e nos indianos. A questão é que o meu I Pad, coitado, já estava um pouco desactualizado, isto é, tratava-se de um modelo já antigo. Os mais recentes tinham medidas diferentes. Esse é que era o problema. Mas precisava de uma capa. Aquela estava muito velha, a desfazer-se e eu andava sempre com ele. Por isso precisava mesmo.

Bom, cingi-me ao que havia para o modelo e apesar de não ser exactamente o que precisava, era pegar ou largar, pois arriscava-me a não arranjar mais nada e isso não era conveniente. Aquelas capas protegiam apenas a parte fronteira do I pad e nada mais. Uma folha única num material que parecia pele e que aderia no lado esquerdo por sistema de íman e assim ficava seguro no tablet.

Olhei bem para elas e mais uma vez pensei que não era nada daquilo que queria. Eu queria uma coisa consistente, que desse bastante protecção. Nada a fazer. Era pegar ou largar. Já tinha corrido tudo, por isso sabia que era a única chance. Abri uma, experimentei, vi e voltei a ver, enfim, se não havia alternativa, tinha que me habituar àquilo. Era um pouco estranho, mas o que fazer? Por outro lado, era mais fácil de encaixar na pasta porque ocupava muito menos espaço. De tanto experimentar até já me ia habituando à ideia. Estava resolvido. Vi as cores e decidi que queria a preta, sem sombra de dúvida. E finalmente vi o preço. Aí, apanhei um baque. Cinquenta euros, nada mais nada menos do que cinquenta euros. C’um caraças, não faziam a coisa por menos. Mas eu precisava daquela porcaria, caramba! Paciência, lá iam cinquenta euros à vida. Fazer o quê? E dirigi-me para a caixa de pagamento.

Enquanto me dirigia para a caixa, ia olhando a capa e pensando com os meus botões, que cinquenta euros por aquilo era perfeitamente inconcebível. E por mais voltas que desse, não conseguia perceber como é que uma folha de dezoito por vinte e quatro centímetros de um qualquer material, com um lado de metal aderente por íman, poderia custar aquele dinheiro todo. Não se justificava de maneira nenhuma. Mesmo que fosse pele, ainda assim não podia valer aquele dinheiro. Era um roubo. E eu era obrigada a pagar aquilo? Não estava nada satisfeita, nem um pouco. Se pagasse tanto, mas ao menos se justificasse? Não era o caso. Quanto é que aquilo para mim valeria? Para ser bem franca, bem honesta, nem cinquenta, nem trinta e nem vinte. Dez… nem isso. Não, na verdade aquilo por cinco euros já estava bastante bem. Não, nem isso, na verdade não dava mais que três ou dois euros. Era isso. Dois euros pagavam aquilo, porque realmente não valia mais do que isso. Cinquenta!?... Era um delírio. Um atentado à bolsa de quem quer que fosse.

Pus em cima do balcão e quando o empregado pegou no leitor da barra de códigos, deu-me um “vaipe” e disse: “não, desculpe, mas não vou levar”. Como ele parecia não me ter ouvido, repeti: “desculpe, mas não vou levar, é muito caro, não vale o preço”.

O rapaz parecia não me dar a menor importância e continuava com o leitor a passar. Já o tinha passado várias vezes sem que eu conseguisse perceber porque o fazia, mas não me respondia e estava muito empenhado no que estava a fazer. De repente parou e pediu-me para esperar um pouco. Pensei, mas vou esperar porque cargas de água, se já lhe disse que não vou levar? Vi-o dirigir-se ao corredor onde estava o mesmo material e trazer outro. Voltou à caixa e passou o segundo no mesmo leitor. Olhava para um e para outro e voltou novamente a ir buscar um terceiro e um quarto. Não havia dúvidas, porque cada um era de cor diferente. O que eu tinha escolhido era o único preto. E mais uma vez insisti: “não quero, desculpe, é muito caro”. Mas ele continuava empenhado não sei em quê, com as capas para trás e para a frente, fazendo-me sinal para esperar, esperar… esperar o quê(?), pensava eu. Estive vai não vai para me ir mesmo embora, mas ele estava a ser insistente e alguma coisa me dizia “espera”.

E fui esperando, enquanto ele resolveu chamar outro colega. E foram novamente os dois ao mesmo sítio ver… não sei o quê. E eu à espera, sem fazer a menor ideia do que se passaria e nem estava muito interessada. Só queria mesmo era ir-me embora. E veio outro empregado e estavam já todos à volta daquele assunto, que tanto discutiam, sem que eu tivesse a mais pequena ideia do que poderia ser. E mais uma vez voltou à caixa, mas desta vez, delicadamente, chamou-me, pedindo-me para o acompanhar. E eu pensando: “mas que grande chato… o que é que ele quer(?)… já lhe disse que não quero!” E conforme pensei, disse em voz alta. Então, para meu grande espanto, o sujeito passando novamente a capa preta pelo leitor, perguntou: “são dois euros, a senhora está interessada?” E ficou olhando para mim, à espera da minha decisão.

Dois Euros? Perguntei, meio confusa. Como, dois euros? Não eram cinquenta? Sim, respondeu ele. Todos os outros passam com cinquenta euros, mas este passa com um euro e noventa e nove cêntimos e é o único com este preço, se a senhora ainda estiver interessada, é o preço dele…

Mas é diferente dos outros(?), perguntei. Não, é exactamente igual. Já estive a ver com os meus colegas, não há diferença absolutamente nenhuma. A única diferença é no preço. Não sabemos explicar porquê. Mas está tudo certo. O leitor diz que é precisamente um euro e noventa e nove. Quer levar? …

Ah, claro. Por esse preço não tenho dúvidas, respondi perplexa, porque se eles não sabiam, não era eu que ia saber. Enfim, aquele estava ali à minha espera, sem dúvida nenhuma. E lá fui eu, contentinha da silva. Finalmente tinha uma capa nova. Não era bem aquilo. Mas por um euro e noventa e nove, estava óptimo e saí de mansinho, o mais rapidamente possível, para não se arrependerem e voltarem atrás. Estava feito.

 Bingo!