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sexta-feira, 25 de maio de 2018

Danielzinho - 44


“Danielzinho” … Danielzinho… dizia a rapariga loura, bonita, de olhos azuis e pele muito branca. Parecia uma nórdica. De trato fino, comedida e educada, de onde teria ele desencantado aquela angélica criatura?! Sim, porque precisava de ser um anjo para aturar o Daniel. Sentados à mesa, frente a frente, os gestos dele, amplos, descoordenados e desajeitados, para não dizer abrutalhados, com algo de agressivo, estavam em completa discordância com os dela. A vida tem destas coisas, aparentemente estranhas e eu não conseguia desviar o olhar e a atenção deles, porque aquilo não encaixava. Havia ali uma disparidade muito grande. E já a tinha visto várias vezes ali, a almoçar com ele no refeitório da RTP, o que me intrigava ainda mais.

 

Daniel era engenheiro. Tinha sido aluno dos Pupilos do Exército, onde tirou o curso, mas qualquer incidente na sua vida o tinha perturbado tanto que se tornara um psicopata. Passava a vida encharcado em medicamentos e era uma lista interminável de antidepressivos e ansiolíticos, que nunca mais acabava. Tinha coisas estranhas, atitudes e… todo ele era estranho. Olhando uma primeira vez, era uma pessoa normal e até era engraçado, bem parecido, mas depois, quando começava a falar, logo se percebia que ali havia coisa. Alguns chamavam-lhe o “maluco”, mas ele não era maluco. Era descompensado, isso sim e à conta disso levava por arrasto uma série de maluquices sem conta. Também havia quem tivesse medo dele, mas não era caso para tanto, embora, em boa verdade, não possa dizer que fosse totalmente inofensivo. Estou a lembrar-me, por exemplo, de uma altura em que todos os dias ele ia à Mesquita, à hora do almoço e vinha contar-me aquilo com um ar triunfante, que me dava um sinal de alerta, quero dizer, de que algo se passava; aquilo queria dizer alguma coisa. Com efeito, descobri pouco tempo depois, que ele ia à mesquita àquela hora para tirar partido do almoço de borla, à custa dos muçulmanos que, quando se aperceberam disso, logo trataram de correr com ele, claro. Por isso, o ser inofensivo dele não era evidente tanto assim. Daniel era astuto e tinha a mania que era esperto, o que fazia com que sempre acabasse por se dar mal, que é o que geralmente acontece com gente desta natureza e muito especialmente com ele, pelos problemas que já tinha.

 

Um dia ofereceu-se para ir jantar comigo. Digo, ofereceu-se, porque eu sabia de antemão que não era um convite. Ele não seria capaz dessa proeza e além disso nunca tinha dinheiro. Mas fui, até porque ele não tinha amigos, nem ninguém que se interessasse por ele. Claro que por esta altura, a rapariga loura que era namorada dele, já tinha ido à vida. Era duro aturá-lo. Durante o jantar, Daniel fez tanta cena, disse tanto disparate, que só me apetecia dar-lhe um tabefe e ir-me embora. A meio do jantar, disse-me que tinha feito um óptimo negócio. Fiquei a olhar para ele à espera do que seria um óptimo negócio. Em pleno jantar, descalça um sapato, que coloca sobre a mesa e metendo a mão dentro do sapato, saca da palmilha nojenta, fedorenta, dizendo-me para sentir o toque. Eu olhei para ele aterrada com tamanho disparate. Seria possível que aquela criatura não se desse conta do que estava a fazer!? Como era possível ser tão desprovido de sensatez, de ética e não ter a noção de que há coisas que não se fazem em hipótese alguma, sendo que aquela era uma delas? Estávamos a jantar, o sapato estava sujo e cheirava mal e ele metia a mão em cima da palmilha, sem quaisquer escrúpulos e queria que eu fizesse o mesmo?! A minha vergonha era tanta que me apetecia dizer em voz alta “não conheço este senhor de lado nenhum e não tenho nada a ver com ele!”. Mas era tarde, agora tinha que gramar, senão, o que faria eu com ele ali a jantarmos na mesma mesa?...

 

Mas então o excelente negócio que havia feito é que aquela horrorosa palmilha, que só de olhar para ela já me dava náuseas, segundo ele, fazia uma série de coisas ao mesmo tempo, tais como: massagem, relaxamento, fisioterapia e o rol nunca mais acabava. Fazendo as contas a cada uma das especialidades da dita cuja, aí estava o óptimo negócio que ele tinha feito. E nem se levantou para ir lavar as mãos… eu já não o podia ver nem ouvir. E nem vou enumerar nem contar a série de asneiras que continuavam sem parar.

 

Daniel trabalhava nas instalações do Campo Grande, que um dia foram encerradas e por isso foi transferido para a sede da RTP na Avª 5 de Outubro, tendo ficado sob a chefia do engenheiro RS, uma pessoa espectacular, um excelente profissional, educado, fino, de muito bom trato, uma pessoa a quem não havia o que apontar. Mas, para seu azar, Daniel ficou colocado no mesmo gabinete dele, o que passou a ser uma dor de cabeça para o engenheiro. Certo dia em que o chefe não estava lá, por ter saído em serviço, Daniel fechou a porta e trancou por dentro. Para quê? Para dormir, certamente, mas primeiro tratou de pôr uns pauzinhos de incenso, provavelmente para o ajudarem a adormecer, o que aconteceu, claro, só que o fumo saía por debaixo da porta e foi preciso chamar a segurança para a abrir e perceber o que se estava a passar. Daniel acordou muito confuso e com a voz toda embargada disse que estava a "meditar"… enfim… só se esqueceu de que estava a trabalhar, mas isso era para esquecer.

 

Mas o pior de tudo… Daniel teve que deixar o apartamento onde morava para se mudar para casa dos pais que tiveram que o receber embora sem o mobiliário, porque não tinham espaço para isso e talvez nem precisassem. Então, andava muito agoniado por conta desse problema que tinha que resolver. Um dia, falou com o chefe, dizendo que precisava de levar os móveis para a RTP(?), porque estava sem casa. Perante tal disparate o engenheiro fez de conta que não ouviu, porque ficou tão irritado e enervado com o assunto que saiu a falar sozinho para não ter que disparatar com ele. E vinha pelo corredor fora dizendo umas asneiras que não faziam nada o género dele, sempre muito bem comportado. “É maluco, é doido e agora tenho que aturar isto)?)”, etc..., etc…

 

O facto é que um belo dia ligaram da recepção, dizendo que estava uma carrinha de mudanças à porta da RTP com mobiliário para entregar no gabinete do senhor engenheiro RS, da parte de quem?... O resto é fácil de adivinhar…