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segunda-feira, 30 de março de 2015

Seria cómico se não fosse trágico - 15


É verdade. Seria cómico se não fosse trágico e entre estes dois pólos é difícil posicionarmo-nos. Contudo, e porque a vida continua, aqui fica a história.


Meu pai faleceu às vésperas de completar noventa anos. Uma vida longa, complicada, difícil, mas com muitas coisas boas e muitas alegrias, também, sem dúvida. Quis o destino que partisse enquanto dormia, o que considero uma verdadeira bênção, pois penso que não sentiu nada.


Nessa manhã, a minha madrasta que sofria de Alzheimar acordou, levantou-se e fez o que normalmente costumava fazer, sem dar por nada. E porque daria? Era natural que desse. Só o facto de ele ainda estar deitado quando ela se levantou já era um sinal, dado que era sempre o primeiro a levantar-se e sempre se levantava cedo. Mas dado o estado de saúde dela, nada lhe ocorreu. Também, logo de manhã, apareceu a irmã que, quase todos os dias ia lá passar o tempo, atazanando a cabeça deles, especialmente a da irmã porque, além do Alzheimer, tinha outros problemas: Parkinson e outras coisas mais, pelo que, conseguia estar pior do que a minha madrasta, que passava o tempo a queixar-se de que ela a cansava e que, por sua vez, dava conta da cabeça do meu pobre pai, que se via a braços com tudo isto. A sorte dele é que conseguia evadir-se e desligar-se com facilidade.


E naquela manhã, estava eu a entrar no carro para mais um dia de trabalho, quando o telemóvel tocou. Tinha falado com ele no dia anterior, várias vezes e a última vez já era noite. Estava bastante bem disposto, muito animado porque ia dar um jogo de futebol e ainda me disse quantas pessoas estavam a ver o jogo, pelo que tinha com que se distrair ao serão. Tudo bem, eu estava tranquila, porque parecia que estava tudo bem. O facto é que o telemóvel tocou. Não fiquei em sobressalto, mas o que seria? Era a D. Conceição, a senhora que se encarregava de tomar conta deles - o que representava uma ajuda preciosíssima, sempre muito atenta e cuidadosa com tudo -, pedindo-me para ir o mais depressa possível, porque o meu pai tinha falecido. Chegou lá, viu as duas e perguntou onde tinha ido o meu pai, tão cedo. A minha madrasta respondeu que estava a dormir. Ela estranhou o facto, mas foi para a cozinha fazer coisas. Como o meu pai não dava sinal, ela voltou a perguntar à minha madrasta se ele estava mesmo a dormir. A outra respondeu que achava que sim, porque ainda não tinha aparecido. A D. Conceição insistiu para ela ir lá ver se se estaria a passar alguma coisa. A outra foi e vendo o meu pai deitado, voltou, dizendo que ele continuava a dormir. O tempo foi passando e a D. Conceição pediu para o ir ver e claro, viu que ele estava morto. Bom, já não fui trabalhar. Dei um telefonema rápido para o meu chefe e segui directamente para lá. Em simultâneo, fiz uma chamada para a minha irmã do Algarve, para que se orientasse com a vida dela e tratasse de avisar a restante família. 


Quando lá cheguei, estava a minha madrasta, a irmã, a D. Conceição e a minha meia-irmã, filha do casamento do meu pai com a minha madrasta. Entretanto, já lá estava uma senhora da agência funerária porque, a minha meia-irmã, a mais nova, já tinha tomado umas providências, uma vez que morava lá ao lado. Quis ir ver o meu pai e pedi à senhora da funerária que me deixasse sozinha com ele por uns minutos. Estranhamente, aquela morte, que eu tanto temia, não estava a ser tão dramática como supunha. Em primeiro lugar, ele tinha partido durante o sono e isso eu tinha que agradecer a Deus. Em segundo lugar, na verdade, olhando para aquele corpo morto, era realmente um corpo morto e vazio, ou seja, ele não estava ali. Aquele que eu tão bem conhecia e que tanto amava, não era aquilo. A vida dele já não pertencia àquele corpo. Eu até conseguia sentir a energia dele mas, definitivamente, já não estava ligada àquele corpo,  talvez por causa do "vazio" que me fez sentir. Percebi que ele tinha partido e que a sua existência, melhor dizendo, a sua essência, passara a outra dimensão. Compreendi a morte como uma “passagem” para a outra vida, o que me fez ficar relativamente bem comigo mesma e respirei fundo. Claro que há a saudade, mas isso é outra coisa. A verdade é que felizmente para ele e para todos nós, não foi um drama maior, como foi a morte da minha mãe, que partiu com trinta e dois anos de idade, deixando-nos ainda crianças. Isso sim, foi assaz doloroso. Uma dor sem fim.


E agora começa a cena; uma cena de loucos, diga-se de passagem. Quando lá cheguei eram umas dez horas da manhã e até à hora em que o corpo saiu para a capela, ao fim do dia, durante todas aquelas horas, levámos com as duas irmãs, com as maiores loucuras que se possam imaginar, mas sem descanso, porque logo se esqueciam do que tinham acabado de dizer para recomeçar uma vez mais toda a mesma lenga-lenga. É triste, é duro, é horrível!


Então, a minha madrasta só dizia “ora o que havia de acontecer… o Custódio morreu… como é que foi acontecer uma coisa destas?!...” Isto não era um desabafo de viúva; de uma mulher que acaba de perder o marido. Isto, era um disco que estava gravado e que saía a cada dois minutos. E de cada vez que ela dizia isto, a irmã respondia “mas tens a certeza? Já foste ver? Pode ser que não... vai lá ver melhor...” 


A minha madrasta passava-se. Gritava com ela, chamava-lhe estúpida e olhava para ela com vontade de lhe bater. A outra calava-se, intimidada. Dois minutos depois, a minha madrasta voltava à carga. Dava uns passos miúdos e com as mãos apertadas e os dedos entrelaçados, começava o seu dilema “Mas quem é que havia de dizer uma coisas destas… o Custódio morreu, já viram… e agora(?!)”, ao que a outra respondia “mas tens a certeza(??” e a outra respondia que sim, aos gritos e com os olhos bem arregalados para a irmã que continuava o disco dela “mas está mesmo morto? Pode ser que ainda não esteja bem morto e se possa chamar um médico, um médico bom, que possa fazer alguma coisa!…” A outra exasperava com as coisas que a irmã dizia. 


A minha irmã e eu olhávamos uma para a outra sem trocar uma palavra, atónitas, com todo aquele espectáculo. E mais um bocado e lá vinha mais uma pergunta “E o Custódio, saiu?” Respondia a outra “já te disse que o Custódio morreu e não me chateies mais a cabeça”… - a outra -  “morreu,  mas como é que isso foi acontecer? Então não chamaram um médico? Não pode ser… não deve ter morrido"… - a outra olhava para ela e começava a gritar, completamente histérica… enfim, foi o dia todo nisto. Mais daqui, mais dali, a coisa foi sempre a mesma, cada uma com seu disco. Só então tive a noção do problema que o meu pai tinha que enfrentar diariamente e do drama que estas doenças são.


Ao fim do dia fui para minha casa descansar e preparar-me para o dia seguinte: velório e funeral. E no dia seguinte estava a família toda, bem como os amigos mais chegados e alguns vizinhos. Enfim, estava quem tinha que estar. Era o velório. Tudo em silêncio. Tudo na maior paz. A minha irmã mais nova ao meu lado e mesmo à nossa frente a minha madrasta e a irmã. 


Nas profundezas do silêncio e ainda que em voz baixa, bem baixinho, ouço a voz da tia da minha irmã, que estava à frente dela, perguntar à mãe, que estava à minha frente: “Ó Maria Angelina, mas afinal o que é que estamos aqui a fazer e esta gente toda aqui também?” A minha madrasta não deve ter entendido muito bem ou não estava à espera que a irmã se lembrasse de falar naquele momento… não sei… sei que fez a outra repetir a pergunta “o que é que estamos aqui a fazer e o que é aquela caixa ali?”


A minha madrasta que até então não tinha dado sinais alarmantes de desordem mental, desatinou completamente. Olhou para a irmã e em estilo de pergunta, repetiu a pergunta que a outra lhe tinha feito: “o que é que estamos aqui a fazer?!” Eu e a minha irmã ficámos imóveis, aterradas e incrédulas. Nós não sabíamos lidar com uma situação daquelas. Ela não sabia e eu… eu nem sabia bem se acreditava no que presenciava. A outra, um pouco acabrunhada e continuando a falar baixinho perguntou mais uma vez: "o que é que estamos aqui a fazer com esta gente toda?" A minha madrasta olhou para ela e respondeu: "então, não sabes, o Custódio morreu!". Resposta da outra: "O Custódio morreu...?" E a outra: "então não sabes?" A outra: "não"... a minha madrasta: "não sabes(?)", a outra: "não, ninguém me disse nada!"


Então a minha madrasta volta-se para trás e num tom de completa perplexidade, pergunta directamente à filha: “oh Aldinha, então tu não disseste nada à tia que o pai morreu? Ela tinha sido a primeira pessoa a tomar conhecimento da morte do cunhado. A minha irmã, com o nervoso, começou a pestanejar vigorosamente, que era um tique dela, mas manteve-se calada e quieta que nem uma porta. E sem se fazer esperar, virando-se para mim, muito, muito zangada e muito indignada: “Lilly, então não disse nada à minha irmã, que o seu pai morreu?”... (!) 


Até estremeci, de susto.


Então e para aguentar com o tranco, pensei: “bom, se o meu pai estivesse aqui, daria uma grande gargalhada cheia de compaixão, para sua descontracção”. 


Seria cómico, se não fosse tão trágico.

 

sexta-feira, 6 de março de 2015

Nordeste - 14


O aeroporto internacional de S. Paulo estava uma completa bagunça, por conta da greve dos controladores de tráfego aéreo. Havia vôos em atraso e outros que nem se chegavam a realizar. No entanto, a Inajá e eu conseguimos um voo para Natal.

 

Era um avião muito pequeno, como os que fazem os vôos inter-ilhas, nos Açores. E aí estávamos as duas sentadas, à espera de embarcar para um merecido descanso em Ponta Negra. Mas eu nunca tinha visto um vôo assim. Assim, quero dizer, naquelas condições. Bem sei que íamos para o nordeste, mas nunca pensei que aquilo existisse. Havia um indivíduo que não tirava os olhos de mim, o que já me estava a incomodar. Claro que não seria pelos meus lindos olhos, mas talvez me tenha ouvido falar e tenha percebido que era Portuguesa.

 

E finalmente lá veio a chamada para o vôo. Foi tudo a correr, com certeza com medo de perderem o avião, mas como a Inajá não estava com pressa nenhuma, fomos ficando para o fim e quando entrámos, já estava praticamente cheio e não conseguimos lugar juntas. Ela passou à minha frente e fez-me sinal para me sentar na segunda fila do lado esquerdo, porque logo a seguir, ou seja, na terceira fila, também havia um outro lugar e assim poderíamos ficar o mais perto possível uma da outra.

 

Havia muita gente no corredor e não davam passagem. O avião tinha somente duas filas de três lugares de cada lado e o corredor ao meio. Atrás de mim vinha o sujeito que não tirava os olhos de mim e quando me preparei para me sentar - o que não era fácil, porque era um lugar entre duas pessoas e portanto, tinha que passar por cima da primeira, a da ponta, que era uma senhora gorda, que não fazia a menor intenção de se levantar para eu passar, fui obrigada a alçar a perna e praticamente pular por cima dela, que ainda por cima era bastante avantajada. Então, o indivíduo, o tal que me seguia com o olhar, aproveitou a deixa para comentar “tá vendo como é bom ser magra”?! Fiquei sabendo que gostava de mulheres magras. 


Finalmente consegui chegar ao lugar e sentar-me. Entretanto, a Inajá já estava sentada e lá nos acomodámos. Eu levava um livro para me entreter na viagem, mas ainda era cedo para começar a minha leitura. O rebuliço era tremendo. Havia uma agitação fora do vulgar. Um avião tão pequeno conseguia dar mais trabalho do que um grande. Pois é, mas tinha-me esquecido que era um voo doméstico! As hospedeiras não tinham mãos a medir. Uma senhora que ia sentada na fila à minha frente, a primeira, estava muito preocupada por conta de uma pequena mala que não conseguia acomodar na bagageira e a hospedeira não queria que ela a levasse no colo. Disse-lhe que a acomodaria na parte de trás do avião e que à chegada lha devolveria, mas a senhora não estava nem um pouco descansada. É que eram os medicamentos dela e queria-os debaixo de olho. Foi uma luta. Cada um tinha o seu problema e a sensação que eu tinha é que ouvia galos e galinhas cacarejando… có-có-ró-có-có… por todo o lado, mas acho que isso não podia ser, não sei. É porque as pessoas tinham todas um ar muito rural, gente do “sítio”, muito caipiras e as bagagens que traziam eram igualmente caipiras. Cestos de verga e outras coisas do género. Eu olhava e parecia que transportavam garrafões de vinho ou azeite ou ainda cachaça, sei lá. Também não devia ser nada disso, mas era a impressão que me causava. Só sei que era uma bagunça infernal e que aquela gente não se acomodava nem por nada. 

 

Com tudo isto, tive uma crise de claustrofobia como nunca tinha tido na minha vida, até porque, felizmente, não sofro de claustrofobia. Mas também pode ter sido pânico. Estava um calor infernal e o ar condicionado geral ainda não tinha começado a funcionar. Com aquela gente toda em cima de mim e o avião tão pequeno, parecia que queria respirar e não podia. Comecei a suar, a suar e pensei que me ía dar uma coisa. Estava quase a gritar, descontrolada, quando me lembrei de abrir o ar por cima de mim e fi-lo no momento certo. Mais um segundo e tinha sido uma bronca.

 

Bom, o avião arrancou e finalmente preparava-me para dar início à minha leitura, quando percebi que não ía ser possível. O indivíduo à minha direita, junto à janela, como o vôo era de baixa altitude e se via a paisagem lá por baixo, estava deliciado e fez a viagem toda com o pescoço virado a 90 graus à direita e o rosto colado ao vidro da janela, o que me tirava toda a luz. Azar… ainda fiz uma cara feia, mas ele sorria de uma ponta a outra, com os lábios cerrados e percebi que não havia nada a fazer.

 

Entretanto, veio uma “aeromoça” perguntar o que queríamos tomar. Pedi uma coca-cola sem gelo e a senhora do meu lado esquerdo pediu um chá com gelo. Isto, depois de muitas tentativas por parte da hospedeira, porque ela não sabia o que pedir. Encolhia os ombros e sorria, só isso.

 

A confusão tinha abrandado um pouco, mas continuava muita agitação e eu não perdia a esperança de ver um galo ou uma galinha pulando no meio do corredor ou um caipira puxar do garrafão e meter à boca uma cachacinha.

 

Entretanto, dá-se um episódio completamente insólito. Um passageiro deficiente precisou de ir ao WC. Até aqui tudo bem. Vieram duas hospedeiras que transportaram o senhor até à porta do WC e depois o transferiram para a sanita. Como o avião era muito pequeno aquilo era tudo ali à nossa frente. O povo todo se levantou para “espreitar”… eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Veio uma outra hospedeira que mandou sentar toda a gente e correu um cortinado de um lado ao outro, o que era a coisa certa. Ainda assim, houve quem abrisse o cortinado para ver o senhor deficiente a fazer xixi!? É inacreditável uma coisa desta natureza. Eu estava passada.

 

Tudo voltou ao normal e lá veio uma hospedeira trazendo as bebidas. Quando chegou a vez da minha fila ela perguntou para quem era a coca-cola e antes que eu tivesse tempo de responder, a senhora do meu lado esquerdo respondeu que era dela. Pensei que talvez ela tivesse mudado à última hora e eu não me tivesse apercebido e antes que a bebida fugisse tomou logo um gole. Mas não, claro que não. Quando a hospedeira me vinha dar o chá eu disse “desculpe, coca-cola”. Então a hospedeira percebeu imediatamente que tinha havido uma troca e apressou-se a substituir o chá pela coca-cola que eu tinha pedido. Aí aconteceu outra cena inesquecível. A senhora caipira, na sua doce e ingénua inocência, com toda a calma deste mundo, disse “ai disculpi, eu menganei”, mas isto foi o de menos. Isto era natural. O que não era natural é o que se segue. Depois de já ter tomado um ou dois goles, não sei, muito solícita e delicadamente, vem devolver-me a coca porque era minha(!?)...

 

 

E viva o nordeste! Viva o Brasil, que eu amo de paixão.