Alice voltava, apressada, para meu grande descanso(!)…
Degrau por degrau eu ouvia os passinhos de uma pequenina com pouco mais
dois anos apenas, numa noite escura e fria de inverno. Ela era uma graça. Às
vezes com trancinhas enfeitadas e coloridas, outras vezes com o cabelo solto e
todo espetadinho, era uma perfeita miniatura da típica mulher Africana. Filha
de pais Guineenses, com uma irmã já com quinze anos de um casamento anterior da
mãe, era esta irmã que tomava conta dela quase todo o tempo. Fazia de mãe, de
pai e estava sempre a cuidar dela.
Alice subiu até ao patamar e foi direita à porta de casa. Como não chegava
à campainha, com as mãozinhas pequeninas deu várias pancadas para se fazer
ouvir. Eu estava na minha casa, com a porta entreaberta, porque estava à espera
de uma amiga e quando ouvi o elevador parar no terceiro andar, achei que era
ela, a minha amiga. Mas não era. Em todo o caso, como ela deveria estar a
chegar, continuei com a porta encostada, sem voltar a fechá-la, ao mesmo tempo
que espiava Alice.
Na verdade, Alice já se habituara à confusão daquela casa e às festas com
montes de gente que não fazia nada, a não ser beber e comer. Faziam-se festas
por tudo e por nada. Inventavam-se festas para convidar os amigos e pôr música
em altos berros que ninguém conseguia ouvir a não ser mesmo o barulho. Só o
barulho. De tal modo que, para falarem uns com os outros e se fazerem entender,
tinha que ser aos gritos. E para falarem ao telemóvel saíam de casa e vinham
para o patamar, uma área razoável, uma vez que são seis apartamentos por andar,
e aí ficavam, um, dois, três, uns quantos, cada um falando mais alto que o
outro, o que a eles parecia não incomodar, porque as festas aconteciam com
bastante frequência e os amigos sempre os mesmos. Eram umas a seguir às outras.
Não havia sossego para ninguém. A mãe e a irmã iam para a cozinha e o pai
ficava na sala a conviver com os amigos, sempre a entrarem e a sairem e uma
confusão dos diabos. Mas Guineense é mesmo assim. Até que um dia um vizinho se
chateou e chamou a polícia que interveio e a partir daí as coisas acalmaram
bastante.
Alice anda por ali, de um lado para o outro. Não importa se são horas de
tomar banho, de comer ou de dormir. Se quiser beber de um copo de alguém,
imediatamente lhe dão o que ela quer. Se quiser comer seja o que for,
chocolates, rebuçados, doces, o que quer que seja, um dá-lhe uma coisa, outro
dá-lhe outra e ninguém chega a saber o que é que ela comeu e bebeu de verdade
ou não. Se tiver sono encosta-se num canto qualquer ou num buraco do sofá e
dorme no meio de tudo aquilo.
A televisão está num qualquer canal e os miúdos todos pegam no comando e
mandam e desmandam. Ninguém presta atenção em nada. Independentemente do que
está a passar na tv, a música está a todo o vapor, passando por colunas
potentíssimas, que quase não cabem dentro de casa. Alguns ficam de pé, a fumar,
encostados às janelas. Ninguém consegue falar com ninguém. Uns recostam-se e
quase dormem. Outros estão sempre de telemóvel na mão, nas suas redes sociais
preferidas. E Alice também se entretém muito com os telemóveis, que usa até
descarregar a bateria, o que nada a atrapalha. Trata logo de ir pôr a carregar
e alguém lhe passa outro para a mão.
A mãe trabalha durante o dia e quando volta para casa está cansada. Muitas
vezes deita-se para descansar e adormece. Alice janta ou não, conforme. Se
disser que tem fome, talvez lhe dêem um yogurt, um sumo de pacote ou
cocacola, que é rápido e fácil. Guineense passa muito tempo a descansar na
cama. Ou é porque está frio ou porque está calor.
Alice vai para a creche, onde passa o dia e onde gosta muito de estar
porque tem muitos amiguinhos e brinca muito. É uma criança muito sociável e
gosta de se fazer comunicar. Também canta e dança lindamente. É mesmo uma graça
a dançar. Não que lhe tenham ensinado, mas porque vê muitos vídeos no telemóvel
e imita com uma perfeição impressionante. Parece que já nasceu ensinada. Porque
não é só a dança em si, é toda a incorporação dos gestos, de todo o seu corpo
que fala e as expressões encantadoras que o seu rosto assume enquanto dança, é
realmente enternecedor. O pai e a mãe babam a ver a sua menina bebé dançar, o
que não é sem razão.
Alice aguardava que lhe abrissem a porta e eu continuava à espera da minha
amiga. Se não estivesse à espera dela não tinha assistido à chegada do
elevador, o que só mesmo por mero acaso. E o acaso fez com que visse
saírem três adultos e uma criança: a mãe de Alice, a irmã e o primo, que
está a viver temporariamente lá em casa, enquanto não arranja trabalho e um
lugar para ele. Os quatro saíram do elevador e um de cada vez foram em
direcção à porta de casa, que fica do lado oposto, em frente à minha. Um por
um, entraram em casa, brincando, gracejando. Um por um dos três adultos,
apenas, porque Alice não entrou. No meio dos três, Alice saiu do elevador
e sozinha começou a descer as escadas. Fiquei atenta, à espera que alguém a
seguisse, mas ninguém a seguiu(!).
No segundo andar, mesmo por baixo deles, mora outra família guineense que
tem duas garotas da idade da irmã e com quem ela às vezes fica. Talvez ela
quisesse ir ter com elas ou talvez não. O facto é que quando ouviu a porta
fechar-se e sem que ninguém a tivesse seguido, insegura, voltou atrás, pelo
menos por esta vez...
Às pancadas na porta alguém acorre abrindo e num misto de verdadeiro
espanto e contentamento, exclama, “Alice!?... … …”