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quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Uma pequena distracção - 55


João Bosco Soares da Mota Amaral, Presidente do Governo Regional dos Açores. Tudo estava no começo. Era a RTP nos Açores e Mota Amaral no Governo. E até eu, que me tinha transferido de armas e bagagens para a Delegação da RTP em S. Miguel, Ponta Delgada.

 

Mais ou menos seis meses depois de ter chegado aos Açores conheci aquele que viria a ser o meu marido e pai do meu filho, o António. A empresa abriu concurso para admissão de técnicos nos seus quadros e ele que tinha recém chegado à sua terra natal e andava à procura de emprego, depois de ter passado uns anos em Angola no cumprimento do serviço militar obrigatório, vinha agora concorrer, tendo sido admitido como operador de câmara, o que o fazia andar por todo o lado, na cobertura de tudo o que era notícia, acompanhando os jornalistas em todos os trabalhos televisivos. 

 

Mota Amaral, como Presidente do Governo Regional, andava sempre em viagem e a televisão atrás dele, claro está. Era um indivíduo discreto, reservado, com muita ética profissional e muito seguro de si, o que lhe conferia um certo à vontade e que lhe ficava muito bem, porque sabia estar, como se comportar e penso que agradava a toda a gente, pelo menos como pessoa. Com os jornalistas e operadores da RTP tinha até uma certa familiaridade, pelo muito que conviviam. Era uma constante, como facilmente de compreende. E sempre que havia que ir ao encontro dele e de quem o acompanhava para o efeito, o pessoal identificáva-o por "Joãozinho", sem que nisto houvesse o menor desrespeito pela sua pessoa. Conforme já disse, toda a gente gostava dele.

 

Nesta altura eu e o António já namorávamos e ele ficava uns dias em casa da mãe e outros em minha casa. Andava de cá para lá e de lá para cá, porque era quase ao virar da esquina e assim não se desligava por completo da casa materna, sendo que era bom ficarmos os dois sempre que nos apetecia. Com isto, começou a haver muita coisa espalhada lá por casa, isto é, pela minha casa. Ele foi sempre muito desarrumado, muito desligado de tudo. As coisas ficavam onde calhava e mais nada. Talvez porque tinha a mãe que cuidava de tudo e fazia tudo por ele e pelo irmão e, portanto, nunca foi educado para ser organizado. Veio para minha casa e foi a bagunça completa. Sendo que sou o oposto, as coisas nunca foram fáceis. Aproveitando isso, uma vez mais se desligava da tarefa de arrumar, achando que era a mim que competia fazer o que a mãe fazia. E ainda assim, as coisas continuavam desarrumadas, porque não é possível andar atrás de ninguém a guardar e a arrumar isto e aquilo, uma coisa a seguir à outra, não é de todo possível, nem física nem psicologicamente, é uma canseira terrível e uma enorme frustração.

 

E uma vez mais era dia de ir esperar Mota Amaral que vinha de Lisboa. O dia decorreu normalmente e ao final da tarde, como acontecia muitas vezes naquela altura, o pessoal reunia-se num café para conversar, descontrair, contar umas piadas e dar umas boas risadas. Encontravam-se uns amigos, comiam-se umas cracas, etc... e a piada daquele dia era a respeito da reportagem de Mota Amaral.

 

Da mesma maneira que na RTP tratávamos João Bosco da Mota Amaral, carinhosamente, por "Joãozinho", também ele quando queria brincar, usava os diminuitivos com o pessoal. E naquele dia, uma vez mais, lá foi um jornalista com um operador de câmara. Mota Amaral tinha acabado de chegar ao aeroporto, vindo de Lisboa com o seu pessoal e caminhava por ali fora em direcção à saída, onde o aguardava o motorista. Seguindo-o, o jornalista ia-lhe fazendo perguntas, ao mesmo tempo que o fazia parar aqui, parar mais ali, enquanto o câmara o seguia filmando-o e toda a sua atenção se concentrava na filmagem. As máquinas ainda não eram como agora. Eram mais pesadas, mais antigas, mais difíceis de manejar.

 

Mota Amaral vinha sempre de frente para ele e ele andando da frente para trás para o apanhar sempre de frente. Sempre recuando, recuando, Mota Amaral ia falando com o jornalista. Contudo, não lhe passou despercebido o insólito, isto é, o "pormenor" que não era pequeno e quase inconscientemente não parava de olhar para os pés do operador. António também começou a achar estranho o olhar insistente do Presidente do Governo Regional para o que parecia serem os seus pés, mas longe de imaginar o motivo. Quando a reportagem terminou e os microfones se desligaram e a câmara parou de funcionar, bem mais descontraído, "Joãozinho" Mota Amaral não se conteve e em pleno aeroporto de Ponta Delgada, no meio de todo o pessoal que o acompanhava e de mais uns quantos mirones que sempre gostam de seguir o Presidente e estar de volta a dar fé de tudo, debaixo das luzes da ribalta, "Joãozinho" olha uma vez mais para os pés do operador de câmara que estava na sua frente e rindo diz "eh, Antoninho, que aconteceu?" e dizia isto rindo, rindo, ainda que discretamente, mas rindo com gosto.

 

"Antoninho" olha finalmente e curioso para os seus próprios pés e percebe a piada. Despistado como era, tinha os sapatos desirmanados, ou seja, um par de cada nação, o  que muito divertiu "Joãozinho", pelas boas risadas que deu com gosto.



segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A Carla - 54



Há dias encontrei um colega de trabalho e os dois começámos a tagarelar disto e daquilo, mais precisamente sobre a empresa, os colegas, alguns que já partiram, outros que também se reformaram e por aí adiante. Muitas novidades, outras nem tanto. Foi o caso.

 

De repente ele perguntou-me se me lembrava da Carla, uma colega do Serviço de Manutenção. Claro sim, respondi, a Carla da Drecção Técnica. “Ah, o filho dela é “gay”! E dizia isto com um ar de quem estava convencido de que eu iria ficar chocada ou pelo menos, muito admirada.

 

Convém esclarecer que em relação a este assunto não tenho nada contra, mas também não tenho nada a favor. Cada um é como cada qual. No caso em questão, quando ele me disse isto, não fiquei nada surpreendida. Ao contrário do que ele poderia pensar, para mim aquilo fazia todo o sentido. E porquê?

 

A Carla era uma mulher num sector que até então só tinha homens. Foi portanto, a primeira mulher a trabalhar em electrónica na empresa. Logo de seguida apareceu outra, mas essa outra era completamente diferente. Ambas eram casadas e com filhos. A Carla só tinha um, que por sinal era um rapaz. Lembro-me bem do garoto por lá, desde pequeno. Todos os funcionários, uma vez por outra, tinham necessidade de levar os filhos por não terem com quem ficar. E por tanto, assisti ao crescimento dele, como de muitas outras crianças. Aparentemente era um miúdo perfeitamente normal. Um menino, apenas isso.

 

Mas a Carla não era uma mulher na verdadeira acepção da palavra, isto é, não era uma mulher comum. Ela era diferente. E não era pelo facto de estar num sector de homens. A outra também estava nas mesmas condições e apesar de não me lembrar de alguma vez a ter visto maquilhada ou vestida de maneira mais sexy, nem por isso deixava de ser mulher, de ser feminina. Apenas era uma mulher bastante simples. A Carla não. A Carla era diferente. Não tenho como explicar de maneira lógica porque não era pelo facto, por exemplo, de usar o cabelo curto. Durante muitos anos usei o cabelo bem curto e as minhas amigas ficavam surpreendidas dizendo que quanto mais curto eu usava o cabelo mais feminina ficava. Portanto, não era por aí. Também não era o facto de nunca a ter visto de vestidos ou de saias. Usava sempre calças, mas quantas mulheres bem femininas só usam calças por se acharem mais sexys? A Carla, evidentemente, não se pintava, não se enfeitava, era estrictamente básica. Mas a outra colega também. No entanto, olhava-se para ambas e via-se a diferença. Uma era mulher sem margem para dúvidas, já a Carla não. Ela parecia sempre mais homem que mulher. Aliás, ela nunca parecia mulher. Até a voz dela, apesar de ser bastante suave e até meiga, não estava colocada na posição certa.

 

Portanto, não era possível dizer que era por isto ou por aquilo, mas qualquer pessoa olhava e no todo, via uma mulher diferente, apesar das formas avantajadas, apesar de tudo. Isto é tanto verdade que na distribuição dos trabalhos havia sempre o cuidado de, olhando a escala de quem estava de serviço, dependendo do trabalho em questão ser ou não adequado a uma mulher e se fosse o caso, e estivesse na vez da colega, a Leonor, o trabalho era imediatamente encaminhado para outro colega, um homem. Na vez da Carla, ninguém pensaria em dar o trabalho a outra pessoa. Ela bastava-se, não precisava de ser poupada à tarefa, qualquer que fosse. Era casada com um indivíduo bastante mais velho, bem parecido e tinha um colega também bastante mais velho que andava sempre a tentar seduzi-la. E em relação a isso ficou sempre a minha dúvida, ou ela não percebia ou fazia que não entendia.  Ela era uma mulher mas, insisto, não era uma mulher comum. O lado masculino nela era muito forte, muito acentuado.

 

E assim, quando o colega com quem eu conversava me contou que o filho dela era “gay”, usava até as unhas pintadas, etc… e havia gozação porque o preconceito sempre há-de existir, não fiquei nem um pouco surpreendida. Fazia todo o sentido. Aquilo era uma coisa genética e simplesmente tinha passado para o garoto. Nada a fazer. Compreendi perfeitamente que não se pode ir contra a própria natureza. As coisas são como são.


Um casal perfeito - 53



O senhor Carlos e a D. Leonor moram numa torre na Praceta contígua à minha. A D. Leonor foi-me apresentada por uma grande amiga, sua vizinha, de quem era também muito amiga e que, infelizmente, já não está entre nós. Sempre os conheci já com bastante idade, mas agora estão mesmo velhotes. Têm uma loja de roupas de homem e senhora muito próxima de casa e a vida deles é da loja para a casa e da casa para a loja. Às vezes, ao domingo, ele pegava no carro e lá iam dar uma voltinha e era tudo.

 

Nunca tive contacto com ele mas com ela sim. De vez em quando cruzávamo-nos na rua e cumprimentávamo-nos, sendo que me falava com muito agrado, muita simpatia, muita educação, mas sobretudo com muito carinho. E algumas vezes desabafava comigo situações da sua vida familiar. Foi ela que cuidou dos pais e dos sogros até ao fim das suas vidas e falava-me disso com algum sofrimento, mas sempre com um imenso respeito por todos eles, nunca demonstrando aborrecimento pelo cansaço ou sobrecarga que isso lhe tenha causado, o que seria normal. Era uma senhora impecável, sem nada a apontar. E comigo, era de um carinho tão grande, que dava gosto cumprimentá-la. Sempre tinha um sorriso bonito - porque ela era bonita -, nada forçado, com que terminava a conversa e falava-me mesmo com muita meiguice. Falava do marido com uma imensa ternura e dos vizinhos com toda a amabilidade. Era uma pessoa que demonstrava um grande equilíbrio emocional e sempre me pareceu bem adaptada à vida com uma resistência incrível. O marido muito cedo montou o negócio da loja, que por sinal até tem o nome dela e disso viveram sempre.

 

Nunca tiveram filhos. Viviam um para o outro. Como já disse, ela cuidou dos pais e dos sogros até ao fim, até que ficaram sozinhos, agora mais tranquilos, mais sossegados e a vida deles era muito pacata, muito tranquila. Muitas vezes, da minha varanda eu a via à janela, espreitando. Acenava-lhe e ela fazia-me adeus, muito contente. Era uma senhora muito agradável e até doce.

 

Mas tudo isto parece que faz parte de outra vida. É que as coisas mudaram. E mudaram drasticamente. O senhor Carlos continua a ser o mesmo. Alto, magro, velhote como sempre, mas direito que nem um fuso, sempre com seu charuto na mão e a fumaça no ar, nele nada mudou. Pelo menos aparentemente. Já ela… não é mais a mesma, com grande pena minha.

 

De longe em longe ainda a vejo à janela, por entre os vidros e as cortinas corridas de lado a lado para que ninguém possa ver o que está para lá. Mas há pessoas que são assim. As janelas não se podem abrir para os outros não “espreitarem”(!). Quanto à D. Leonor, a questão é que comecei a perceber que já não me falava como dantes. Ela até ficava contente quando me via e a partir de certa altura começou a ignorar-me, a esconder-se ainda mais. Lá teria os seus motivos, mas não dei especial importância. Talvez problemas de visão, talvez.

 

Entretanto, precisei de um tecido fino para acrescentar um forro de um vestido e para não ter que ir mais longe, fui até à loja do senhor Carlos. Normalmente era ela que estava ao balcão e ele ficava cá fora a apanhar ar e a dar as suas fumaças de cachimbo, com ar de patrão. Mas como já disse, tudo mudou. E como!

 

Entrei e ao balcão estava agora ele, o “patrão”. Estranhei, mas ainda assim, não dei especial importância. Mas, de repente, vejo a D. Leonor sentada num banco, num canto da loja junto à parede, olhando através da grande montra cheia de roupas completamente ultrapassadas. A posição dela e o ar distante e frio foram iguais desde que entrei até que saí. Cheguei, cumprimentei-os, disse o que queria, que por acaso não consegui e tive que ir a outro lado, mas o que importa é que foi ele que me atendeu, sempre senhor do seu nariz, com a sua postura de costume, como se nada estivesse a acontecer. A D. Leonor nada disse, não se moveu, não saiu da apatia em em que estava, não se desligou da ausência completa que a absorvia e na qual estava mergulhada, sem a menor vontade de regressar à realidade, ao aqui e agora. Estava longe, longe, completamente perdida no infinito. E foi assim que os deixei.

 

Esta cena incomodou-me demais. Saí de lá arrasada com o que tinha acabado de testemunhar. A D. Leonor estava numa completa solidão, ignorada por si mesma, mas também pelo marido que não foi capaz de pronunciar uma só palavra sobre o estado da mulher, sabendo que nós nos falávamos tão bem. O que se passaria com a senhora? Aquilo não era uma briga de casal. Fui-me embora a pensar naquilo e a ficha caiu. Aquilo tinha um nome: Alzheimer! Só podia.

 

Passaram-se uns dias e novamente precisei de linha preta que tinha acabado. Como não me apetecia ir mais longe, decidi uma vez mais ir à loja do senhor Carlos. E assim também podia ser que conseguisse saber mais alguma coisa da coitada da D. Leonor, que me estava a incomodar muito.

 

Aproximei-me da loja e desta vez ela estava à porta. E uma vez mais ele ao balcão. A situação costumava ser inversa. Não que eu fosse lá muitas vezes, mas quando passava ali via sempre ela lá dentro e ele à porta a fumar. Para eu poder entrar ela teve que se desviar um pouco, o que o fez sem nada pronunciar. Todavia, o olhar que me lançou foi um olhar feroz, como se a culpa de ela estar assim fosse minha. Claro que percebi que o problema não era esse. O problema era exclusivamente dela. Entrei e ela foi direita para o seu lugar, o canto da sala, e mais uma vez ficou a olhar para o exterior, aparentemente indiferente a tudo e todos.

 

O senhor Carlos atendeu-me e eu queria ter a coragem ou o atrevimento de perguntar por ela, mas foi como se ele me tivesse lido o pensamento e sem mais nem menos começou a falar. E dizia que a mulher não estava bem. Que toda a vida tinha sido uma companheira dedicada. Tratava da casa, cozinhava, tratava da roupa, enfim, fazia tudo em casa e ainda estava o dia todo na loja e agora não fazia nada, o que muito atrapalhava a vida dele. Já tinha pensado em ir para um lar com ela, mas achava que isso era “morrer”. Gostava de estar cá fora e fazer o que queria e a ideia de um lar não lhe agradava em nada. E continuava a queixar-se de ela agora não querer fazer nada. Estava a ser medicada para a “doença” que ele recusava admitir, mas a medicação não adiantava muito. Claro que a doença era Alzheimer e não era preciso dizer nada. Mas o facto de ele não o admitir era bastante sintomático e relevante.

 

E enquanto ele falava eu olhava discretamente para ela, lendo-lhe os pensamentos. O problema da D. Leonor era apenas o problema de um casamento “perfeito” de toda uma vida. Tinha uma óptima casa. Tinha tido uma vida de certa forma tranquila. Mas estava na ponta final e a tomada de consciência fazia-se presente, dizendo-lhe que tinha feito uma travessia inútil ou quase inútil. Que não tinha vivido a vida que queria ter vivido. Que tinha feito tudo em função dos outros e não tinha tirado partido de nada para si mesma. Uma boa casa, para quê, se nem filhos tinha? A loja onde toda a vida tinha sido empregada do marido, o “patrão”. Uma vida de trabalho, dedicada aos outros, onde ela própria se tinha anulado por completo. E só agora ela via isso e como se arrependia! Tarde de mais. Estava velha e cansada. As rugas tinham tomado conta de todo o seu rosto e de todo o seu corpo. No olhar, era visível a revolta da sua alma, a raiva contida e o desprezo por tudo o que a rodeava. Nada mais lhe interessava. Era apenas uma pesada carga ao cima da terra. Como tinha sido tão estúpida consigo mesma? Como se tinha deixado levar até àquele ponto? Tudo tinha passado e não restava nada. Agora não havia mais volta a dar e toda a sua vida tinha sido um vazio e uma inutilidade tremenda, pois tudo ficara por viver.

 

Era isso tudo que passava na cabeça dela. É claro que isso mexia com ela de forma doentia e o “Alzheimer” tinha tomado conta dela. E agora, mais do nunca, chegara a sua vez de ser cuidada, mimada, de ter um pouco de atenção e compreensão da parte de quem mais o devia, o marido, o “patrão”.

 

E enquanto eu tirava o dinheiro da carteira para lhe pagar, ele continuava com as suas queixas do que ela já não fazia, etc, etc, etc… coitado dele que agora tinha que fazer tudo sozinho, etc… etc… etc…, mas o que mais me impressionou e me deixou completamente perplexa e sem palavras foi quando ele disse que é claro que ele sabia muito bem como aquilo tudo lhe passava em dois tempos – e fiquei curiosa -, com dois fortes estalos na cara e ela ficava boa de vez(!?)…



Cenas da vida conjugal - 52



Meu marido nunca gostou de se levantar cedo. Por sorte tinha um trabalho que lhe permitia escolher o horário que lhe conviesse e por isso estava quase sempre à noite, o que fazia com que pudesse dormir até bem tarde. Um horário assim significava entrar às quatro horas da tarde e terminar mais ou menos à meia-noite, dependendo do alinhamento da emissão. Além disso, independentemente da hora a que chegava a casa, ia direito para o computador, sendo que a hora a que se deitava entrava pela noite dentro. Já eu não podia fazer o mesmo porque, como a maioria dos trabalhadores, o meu horário era de dia e sempre o mesmo, manhã e tarde.

 

Isto era bastante complicado de gerir, não para ele que só fazia aquilo que queria, mas para mim que tinha que levantar o meu filho à mesma hora, sair comigo, levá-lo à ama e mais tarde à escola e por aí adiante. No regresso a cena repetia-se. Eu ia buscá-lo e regressávamos os dois a casa. O pai nunca, ou raramente, estava connosco. E quando assim não era, a verdade é que era ainda pior porque, se ele podia dar-se ao luxo de entrar atrasado, já eu não podia, pelo menos em teoria. Anos a fio, dava-me uma grande sobrecarga sob todos os aspectos, porque nunca andávamos a par e passo.

 

Mas aí, chegou o dia em que começou a sentir uma necessidade de se habituar a levantar mais cedo e até fazer uma tentativa de escolher um horário de dia e aproveitar o tempo de maneira diferente. Isto era uma verdadeira fantasia, porque o que ele fazia fora da empresa, fosse a que horas fosse, era sempre o mesmo: trabalhar. Esse era o mundo dele. Não estarei errada se pensar que nunca na vida preparou uma refeição, nem que fosse só para ele, muito menos para a família. Nem me lembro de alguma vez ter ido ao supermercado para fazer compras para casa… era assim.

 

Mas realmente dizia que queria “mudar de vida”. Como então? Começar a levantar-se à mesma hora que eu e o filho. Era isso que ele queria, ou dizia que queria, mas todos os dias acontecia o mesmo. Nós levantávamo-nos, despachávamo-nos e ele lá, entre vale de lençóis, dormindo sem fazer o menor esforço para se levantar. Em todo o caso, todos os dias se lamentava, dizendo que queria tanto levantar-se cedo(!)… queria, mas não se tinha levantado. E todos os dias era a mesma cena, lamentações por causa de não se ter levantado cedo. Até que se lembrou que eu tinha que chamá-lo, isto é, acordá-lo. Era isso que era preciso. A partir daí a minha missão, além do que já tinha para fazer, era ser o despertador dele. A mim ninguém me chamava, mas tudo bem. Estava combinado, eu passaria a acordá-lo todas as manhãs. Se era essa a solução para resolver o problema de se levantar de manhã, como parecia tanto querer, porque não? Acordá-lo-ia conforme seu pedido.

 

E começou a minha tarefa de chamá-lo todos os dias. Despachava-me a mim e ao filho e já na hora de saída ou enquanto tomávamos o pequeno almoço, lá ia eu chamá-lo. E embora eu estivesse simplesmente a ir ao encontro de um pedido dele, era difícil, porque ele não reagia nada bem e era um constrangimento e tanto. Uma grande chatice. Mas nada que não fosse previsível. E todas as manhãs tínhamos esta saga. Se ao menos resultasse, enfim, mais sacrifício menos sacrifício... o pior é que não resultava. Balbuciava, virava-se para o outro lado e ficava. Levantar-se era exactamente o que não fazia. E a cena repetia-se todos os dias, o que me deixava terrivelmente frustrada, saindo de casa já aborrecida.

 

Mas as coisas conseguiram piorar. Durante o dia, quando nos encontrávamos no trabalho e ele se confrontava com o facto de continuar a não se levantar e a entrar tarde, teve outra ideia magnífica. A culpa era minha(!?) Era minha porque não fazia muito esforço para o acordar, isto é, tinha que ser mais insistente, mais firme, porque ele queria mesmo levantar-se de manhã. Sorte malvada! Só deus sabe o que me custava toda aquela situação a somar a todas as outras que não vêm ao caso e ainda assim, claro, a culpa era minha. Até porque a culpa era sempre minha, fosse do que fosse, nem podia ser de mais ninguém.

 

Mais empenho, mais vezes a chamá-lo, a dizer-lhe que era ele quem tinha pedido, se é que se tinha esquecido disso, enfim, uma verdadeira luta que se repetia diariamente, sem solução aparente. E a cada vez que o chamava ele respondia que já ia, que já tinha ouvido, mas continuava na cama. O meu dia começava sempre com uma significativa carga negativa. E as desculpas iam sempre no sentido de me fazer sentir incompetente e culpada. Pois claro. Começou a desculpar-se, dizendo que nem me tinha ouvido  chamá-lo, que se tinha respondido era inconscientemente, que eu não queria saber, não o ajudava… etc… etc.

 

Até ao dia em que me cansei e decidi pôr ponto final. E quando eu decido uma coisa não há quem me demova. Está decidido, está decidido. Não sei se é bom ou mau, mas é assim, desde que me conheço. Ele sabia perfeitamente que eu o chamava e sabia o esforço que eu fazia para ele se levantar. Se não se levantava, decididamente, era porque não queria e agora eu não estava mais disposta a continuar a deixá-lo brincar comigo daquela maneira. Ele sabia que estava a mentir e que eu sabia disso. Estava a fazer de mim parva. Então, eu só tinha que fazer o jogo dele, mais nada. E pensei, se ele não está disposto a reconhecer que o problema é dele e se joga para cima de mim, indeterminadamente, que não o chamo, que não ouve, etc…, sabendo perfeitamente que isso não é verdade, então vamos jogar os dois e vamos ver quem ganha.

 

E a partir daí deixei, simplesmente, de me dar ao trabalho de sequer o chamar ou acordar. Fim de capítulo. Se quisesse que fosse à luta. De qualquer maneira ele já fazia questão de me atirar à cara que era eu que não o acordava, pois era isso que eu iria fazer. Eu não lhe daria mais o trabalho de me mentir descaradamente. E pronto, acabou-se a saga. E agora era ele que vinha ter comigo dizendo que não o tinha chamado. De facto não o tinha chamado. Ele tinha toda a razão. Mas isso eu não lhe dizia. Tinha chegado a minha vez de “fingir”. E perante toda a indignação dele em relação ao facto de o não ter chamado, reagi como de costume, dizendo que o tinha acordado, sim, como todos os dias o fazia e mais uma vez ele tinha ignorado, o que era falso porque, na verdade, eu não o tinha chamado. Primeiro ficou na dúvida, depois talvez até tenha acreditado, tendo em conta tudo o que estava para trás.

 

No segundo dia voltou a questionar-me e tranquilamente voltei a dizer-lhe que o tinha acordado como todos os dias e que já estava habituada à reacção dele e portanto já não tinha nada para dizer. Nesse dia a dúvida ficou. E no terceiro dia a cena repetiu-se, voltei e mentir, o que me deu um enorme gozo, e mais calma do que nunca, encolhi os ombros, respondendo simplesmente que era o costume, sem mais reacção da parte dele. 

 

A ficha tinha caído. Ele agora sabia que eu estava a mentir e era essa a minha intenção. E como não estava em posição de exigir nada porque sabia que durante todo o tempo tinha estado a "brincar" com a minha paciência, calou-se de vez e o assunto acabou, o que já não era sem tempo.

 

Amor com amor se paga e "para grandes males, grandes remédios”!...