Uma
balança tem dois pratos lado a lado. Sua função: pesar. Assim, se pusermos um
peso num dos pratos, imediatamente ele vai abaixo, na proporção do peso
colocado. Em contrapartida, o outro sobe, agindo à acção directa do primeiro. Se, em
seguida, colocarmos no outro prato um peso maior que o primeiro, a posição
inverte-se, ou seja, o prato desce para fazer subir o primeiro. O certo é que o
desequilíbrio se instalou. Mas isto é uma balança e é para isso que ela serve.
Se quisermos restabelecer o equilíbrio temos que manter os pratos iguais, isto
é, ter pesos iguais em ambos os pratos.
Há
uns trinta anos atrás, um belo dia em que, por qualquer razão tive que andar no
metro, estava uma rapariga africana que deveria ter uns vinte e cinco anos. Reparei
nela porque naquela altura ainda não se usavam “leggins” e ela estava com umas
calças pretas muito justas, apertadíssimas,
onde ela se tinha enfiado a toda a força porque, ainda por cima não era magra,
nem um pouco, e a gordura tentava sair por todo o lado. O traseiro era enorme,
tudo nela era enorme e tentava dar nas vistas o mais possível, isto é, não
queria passar despercebida de maneira nenhuma. Virava-se para todos os lados
com o nariz no ar, fixando as pessoas como que a dizer-lhes “aqui estou eu,
toda boazona”... enfim.
Quando
chegou a minha paragem, saí e ela saiu também. Azar o meu, porque parecia que
ela se tinha colado a mim. Saiu na minha saída e tomou o meu caminho. Tentei
desviar-me apenas porque, na verdade, ela atraía as atenções num sentido que
não me agradava, por isso não me apetecia estar por perto. Todavia,
descontraída e provocadora, trocava as minhas voltas e continuava a colar-se a
mim sem que eu percebesse o porquê. Não a podia mandar embora, de modo que fui
ignorando, embora ela caminhasse praticamente a meu lado.
Atravessámos
uma rua e estavam uns homens vestidos de fato de macaco azul, que certamente
eram da oficina do lado e como era a hora do almoço, deviam estar fazendo uma
pausa de descanso, encostados à parede, fumando um cigarrinho descontraído ao mesmo tempo
que se aqueciam ao sol, antes de pegarem novamente no batente. E então pense”i:
agora é que vai ser lindo”, porque era quase certo que iam chover comentários e
não seriam agradáveis, de certeza. Apressei o passo e propositadamente
desviei-me, para não ouvir nem ver o que não me interessava. Só queria seguir o
meu caminho o mais tranquila possível.
A
rapariga africana passou o mais perto possível dos mecânicos e ainda que eu não
quisesse ver nem ouvir, claro que ouvi os assobios e os ditos dos mecânicos, o
que não me espantou. O que me espantou foi que ela parou e injuriada, começou a
falar com eles. Continuei o mais depressa possível achando que estava livre,
mas nem por isso, porque ela correu na minha
direcção e mais uma vez prantou-se
a meu lado, sem que eu percebesse a razão disso. Fiquei calada e ignorei, mas
ela começou a falar comigo em jeito de desabafo. Fui fingindo que não a ouvia,
mas ela insistia fazendo o mesmo, como se eu lhe estivesse a dar atenção.
Aquilo era uma praga!
E a
conversa dela era esta: “eu sou como sou, visto o qui quero, sô livri,
tô num país livri, ninguém
tem nada com isso”. Como eu não respondia, porque achava que não tinha nada que
responder, nem a conhecia de lado nenhum, ela continuou: “sou livri, eu
sô livri, visto o qui quero,
faço o qui quero, ninguém tem
nada com isso, não achas”?
Bom,
agora já era demais, porque ela se estava a dirigir a mim, à minha pessoa directa e insistentemente. Aquela
tinha-me saído na rifa e não havia nada a fazer, só que já estava farta daquela
cena e precisava de pôr um fim naquilo. Então, virei-me para ela e falei-lhe na
mesma linguagem, dizendo-lhe: “A liberdade não é só para ti, é também para os
outros. Se queres ser livre tens que aceitar a liberdade dos outros. Tu podes
fazer e dizer o que quiseres, mas eles também. Tu és livre, sim, mas eles
também”. Ela parou, e soltou um grito de admiração, de indignação, de
interrogação, de espanto, sei lá, e ficou lá atrás parada, digerindo o que
tinha acabado de ouvir, enquanto eu continuei o meu caminho.
Os
órgãos de comunicação social não param de falar no cenário “França”, com
destaque especial para o palco “Paris”. Atentado terrorista contra os direitos
democráticos, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade,
liberdade, liberdade… e de repente parece que o mundo inteiro se esqueceu de
uma coisa que é fundamental: a nossa liberdade termina quando começa a dos
outros. É uma frase feita, não tem nada de criativo, mas é crucial nesta
questão porque, quem desrespeitar este princípio está lixado; porque quem
desrespeitar esta regra de ouro é terrorista. A guerra não é feita só com armas
de fogo. A guerra é feita também de provocações, de brincadeiras de mau gosto,
de desrespeito por si mesmo e pelo próximo. A guerra é feita de palavras, obscenidades
e muita coisa feia que não dignifica nem respeita nada nem ninguém, e então a
balança desequilibra-se, e nesse desequilíbrio onde se pensa que uns ganham
enquanto outros perdem, mas onde na verdade ninguém ganha nada e todos perdem,
há os bons e os maus. É claro que os bons são o ocidente e tudo o que o
representa. O ocidente representa o mundo “civilizado”, o mundo livre,
democrático, onde tudo é permitido menos matar. Ainda assim, às vezes é
permitido. São excepções, mas há. Por
exemplo: Obama versus Ossama.
Não.
Matar não é permitido nunca. Não há nada que justifique a matança do homem e
isto é válido para ocidente como para oriente, para todo o planeta e todo o
universo. Tirar a vida não é permitido a ninguém, nem mesmo aos governantes.
Estamos todos inseridos nesta regra, nesta lei universal.
Mas
voltando ao ocidente, o mundo considerado civilizado. Onde está o civismo que
provocou o incidente de Paris? Onde ficou a ética, o profissionalismo, a
comunicação, o socialismo… onde ficou a arte nos cartoons horrorosos que não dignificam
nada nem ninguém, que ferem de morte a
susceptibilidade de muitos, não importa quem. Só porque uns se
acham donos e senhores da verdade, vamos arrasar com os “bárbaros”, desafiando
todas as crenças e todas as doutrinas, todos os credos e toda a humanidade? Que
mundo medonho é este?
Pergunto-me,
no meio deste lixo todo, onde fica a paz? Para quando a paz? Se não há paz não
há amor. Onde não há amor há ódio e onde há ódio há guerra e disto não saímos,
porque vivemos num mundo civilizado!? Num mundo que quer liberdade a qualquer
preço, mas onde ninguém sabe o que é liberdade. E ainda vêm os colegas da RTP
com um falso ar pesaroso, manifestar-se em pleno telejornal, que estão
completamente solidários com os colegas do jornal que sofreu o atentado!? E eu
me pergunto: mas a que propósito? Alguma vez a RTP se mostrou ou transpareceu
para o seu público, pelo menos, algo de tão indecoroso? Porventura não foi até
suspenso um programa humorístico, por ter sido considerado inadequado? Alguns
programas de informação não tiveram cortes por causa da liberdade de expressão
dos telespectadores em linha directa?
Porque carga de água vêm agora mostrar-se tão solidários com os outros?
E muito mais haveria para dizer acerca disto, mas não me apetece, porque
sou livre…
A Liberdade não é uma conquista, nem um
desafio, nem um passatempo.
A Liberdade é um Dom.