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segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A falsa Ordem de Serviço - 19


Rosas brancas, frágeis… uma aragem mais forte e desfolham-se com toda a facilidade. Frágeis na cor, frágeis na estrutura, depressa começam a perder as pétalas e uma por uma segue o seu próprio caminho.

 

De novo? Um, dois, três, quatro… cinco… no regresso, seria a sexta vez que passava por ali, completando três dias de idas ao clube de Vela e lá estava ele. Que drama!... Como era possível? Há pessoas que nos surpreendem pela positiva, outras pela negativa. Era o caso. Até tive dificuldade em reconhecê-lo. “Parece”… pensei eu. Não parece, é. Sem dúvida nenhuma. Que coisa diabólica!

 

Parei um pouco, por entre a roseira branca, observando a figura. Parecia um tonto, coitado. Era uma pessoa de estatura baixa, mas normal. Agora, parecia que estava por metade da altura. Umas calças larguíssimas, que não pareciam dele e um casaco com uns ombros muito largos que lhe chegava até aos joelhos, quando não devia ultrapassar a zona da coxa. Inacreditável!

 

O cabelo grisalho, quase todo branco e bastante grande, mas acima de tudo, com um ar descuidado. Uma mala a tiracolo, enorme e muito cheia, que carregava com imensa dificuldade e vários sacos de plástico em que, constantemente, mexia e remexia. Assim se arrastava. Dava dois passos, parava. Trocava de mão os sacos e voltava a andar mais dois passinhos para voltar a parar. Olhava para todos os lados e trocava novamente os sacos, olhando para dentro deles, como se tivesse esquecido alguma coisa. Dir-se-ia que tinha acabado de ter sido expulso de casa e amedrontado, não sabia o que fazer nem para onde ir. Que tristeza!

 

Não me apetecia ver mais. Talvez devesse falar-lhe, mas não tinha a coragem de o fazer. Devia ir ter com ele e trocar algumas palavras, tentar entender o que se estava a passar… em vez disso, mais uma vez, fingi que nada via, continuando o meu caminho. Era dramático.

 

A aragem dissipava o calor, amenizando a temperatura, ao mesmo tempo que dispersava as pétalas das rosas, tão suaves, tão macias, embora feínhas, excepto uma ou outra, cuja beleza também pouco duraria. Cheirei-as e fiquei deliciada. Que perfume, que aroma levemente adocicado, que elixir delicioso! Inspirei, expirei e voltei a inspirar profundamente, mas com toda a lentidão, para tirar o máximo partido daquele prazer delicioso e esquecer aquele drama.

 

Um pequeno triângulo no meio da rua, que podia ser uma rotunda, mas tinha a forma de triângulo. Um botequim lá plantado e mesas com bancos de madeira. Em volta, uma cercadura de arbustos verdes quebrada aqui, quebrada ali, com algumas flores pelo meio. Uma música suave, não muito alta… bastante agradável. Alguns velhotes sentados, conversando uns com os outros ou somente vendo quem passava. Carros estacionados por ali e em volta os prédios antigos e velhos do Poço do Bispo.

 

E eu ali parada, agora no segundo pé de roseira branca, um pouco mais adiante, presa naquele drama que tanto me entristecia. O estranho… bem, o estranho era tudo… mas o mais estranho é que, de todas as vezes que ali tinha passado, lá estava ele, naquele sítio! Era uma coincidência muito desagradável, porque não me parecia normal. Ou ia para algum lado ou vinha de algum sítio, mas encontrá-lo ali, sempre que eu por lá passava… era caótico, a menos que estivesse lá sempre e não fosse a lado nenhum. Seria possível? Parecia um pedinte! E tinha um ar de desgraçadinho... Como é que pode? … E segui para o clube, com todas estas coisas na cabeça.

 

Tinha sido meu colega durante trinta e muitos anos, quase quarenta. Trabalhava na Contabilidade e era um bom profissional. Tinha-se reformado bastante mais cedo do que eu, pois era um pouco mais velho. Uma pessoa normal, com uma vida normal, comum. Mas aquele não era o mesmo, era uma sombra dele. Uma boa pessoa, incapaz de fazer mal a uma mosca. Humilde, bem formado, com um ar servil, sim… mas agora? Quem era aquela estranha criatura? E sempre naquele sítio! Não era uma simples coincidência. Ele estava ali sempre. Ainda não tinha falhado uma só vez e isso é que me deixava intrigada, porque encontrá-lo uma vez… duas vezes… tudo bem, acontece. Mas sempre e do mesmo jeito, com a mesma sacola e os sacos de plástico, igualzinho?!... Era assaz incomodativo.

 

 

A aula terminara e ficámos conversando, numa troca de impressões uns com os outros. O clube era um edifício muito antigo, espaçoso, com uma sumptuosa escadaria que, em tempos idos, devia ter sido um luxo. Agora, estava tudo muito velho. E enquanto descia as escadas com o corrimão de madeira e rebordo dourado, atapetadas com uma larga passadeira de alcatifa vermelha, pensava comigo mesma que agora ia ter a coragem de ir ao seu encontro e tentar perceber alguma coisa. Era o mínimo que podia fazer. O exercício físico tinha-me feito bem e o espírito estava mais leve e disposto a encarar aquela realidade, fosse o que fosse.

 

Saí a porta das instalações do clube e atravessei a rua para o jardim, em direcção ao carro. Parei no jardim junto ao primeiro pé de rosas, olhando em volta. Havia a música, os velhotes sentados, o autocarro na paragem, os táxis estacionados à espera de clientes, os carros para lá e para cá, as oficinas abertas e os mecânicos a trabalhar. A vida acontecia. Olhei para o relógio e era meio-dia, mas ele não estava em parte nenhuma e era a primeira vez que tal acontecia.

 

Cheirei as rosas: uma, duas, três vezes. Cheirei uma e outra e outra, enquanto prendia uma pétala entre os dedos. Como era bom aquele perfume, meu Deus! Fiquei a olhar as roseiras, meio abandonadas, meio esquecidas. Aquelas rosas brancas, frágeis e deliciosamente cheirosas, que perfumavam o ar, exalavam um aroma inebriante, que chegava a embriagar. Talvez por isso, por serem tão cheirosas, os velhotes se acomodassem por ali… não, seguramente, não era. Era por causa do botequim. Ninguém via as rosas, ninguém cuidava delas, nem sequer olhavam para elas. Era como se nem existissem.

 

E ele não estava. Pela primeira vez não estava ali. A minha missão não fora cumprida, mas a minha tarefa estava simplificada. Ali, onde a vida acontecia da forma como tinha que acontecer, segui o meu caminho em direcção ao carro. Uns estavam, outros iam. Uns vivendo tranquilamente, na paz do seu canto; outros, num mundo submerso, de escuridão e sombras, passando ao lado de tudo, num vazio permanente. O drama da vida.

 

Soltei a pétala que estava presa nos meus dedos e deixei-a ir, também ela com seu lema. Ficaria horas sem fim, mergulhada no perfume que o vento suavemente dispersava e ao mesmo tempo dissipava pelo ar… seguindo o seu percurso intemporal e eterno, sem pedir licença para passar…