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sexta-feira, 20 de março de 2020

IC 17 - 57


Da varanda da minha casa olho a paisagem à minha volta, vejo a serra que felizmente ainda tem muito verde para espraiar a vista e relaxo. Quando estou cansada ou entediada vou até à varanda e aprecio a vista.

Algures, por entre a serra vejo a IC 17 e deparo-me sempre com o trânsito infernal que nela passa. Também eu por lá passei e vezes sem conta fiquei parada durante muitos anos enquanto trabalhava. Felizmente, desde há algum tempo não preciso mais de enfrentar essas confusões, a não ser esporadicamente, por algum motivo pontual. Tirando isso, dessa parte já me livrei. E fico observando o correr do trânsito.

Nos fins de semana o trânsito corre, não fica parado e não raras vezes tentei fazer o exercício mental de contar em simultâneo os carros que passam para norte e para sul. Desde a primeira vez que fiz isto, percebi logo que era uma causa impossível. Uma impossibilidade completa. Mas como sou teimosa, quando penso numa coisa que quero fazer e não consigo, em vez de desistir, vou sempre tentando. Mas isto é uma coisa que eu sabia perfeitamente que não iria conseguir nunca.

A mente, a minha mente, é uma mente “normal”, felizmente, e uma mente normal não tem os poderes cognitivos tão alargados que consiga fazer duas contagens ao mesmo tempo. Contar num sentido é uma coisa e mesmo que sejam muitos carros, a coisa vai. Fazê-lo simultaneamente e em dois sentidos, mesmo que fosse em sentidos iguais, duas contagens é impossível. Pelo menos para mim, e desafio quem quer que seja a fazê-lo. Não faz.

O cérebro dos humanos não tem a menor capacidade de fazer esse prodígio. Pode até haver quem tenha essa capacidade. Mas isso são excepções. Já vi na televisão programas sobre esse assunto e com efeito há pessoas, raríssimas, que têm uma mente prodigiosa que consegue cálculos matemáticos em grande escala, em apenas segundos. Conseguem o que mais ninguém consegue. Como(?), não faço a menor ideia, porque eu jamais faria. Tenho que aceitar que são cérebros diferentes, sem as limitações que os outros, os “normais” têm. Parece mentira, mas acontece.

Quanto a mim e como gosto de desafios, vou sempre tentando, ainda que de antemão tenha a certeza de que não é possível. Por isso, quando chego ao segundo ou terceiro de uma das direcções para passar ao primeiro da outra direcção, já estou toda baralhada e volto ao princípio à espera de não ficar bloqueada e desejando que os carros passem o mais distanciados possível uns dos outros, tanto para a direita como para a esquerda, para me darem tempo. É um exercício inútil, mas eu vou fazendo. E perdendo, também. Sempre. Disso não há dúvidas. Ou não havia.

Sim, não havia.

Agora, nos dias que correm, fui surpreendida com um facto. Venho à varanda, olho a paisagem, observo o horizonte, a serra, o céu, ora limpo ora delineado de nuvens, vejo a IC 17 e de repente, com o maior espanto, consigo fazer a contagem, o que é simplesmente incrível. Quem diria que esse dia chegaria!? E fico parada, segurando os números apenas para não me esquecer. É mesmo incrível!?...

Quando me dei conta disto entrei em processo de meditação automático e percebi que, seja pelos motivos que forem, não há nada que não seja possível. Ou melhor, não há “impossíveis” definitivos, o que significa que a “esperança” é aquilo que nunca morre. Não, não é a última coisa a morrer, porque se morrer não é esperança. É aquilo que nunca morre, mesmo depois de morrermos. Quantas coisas não se realizam depois da nossa morte(?!)... Mas isso é outro assunto.

No caso, temos a contagem dos carros que passam na IC17, uma das mais movimentadíssimas vias, por ser a circular exterior da área metropolitana de Lisboa. Agora eu olhava e com toda a facilidade, os números fixavam-se na minha memória sem a mais pequena dificuldade.

Milagre? Não. Alguma coisa mudou em mim? Também não. As minhas capacidades continuam exactamente as mesmas, certa de que com a idade não hão-de melhorar, só pioram. E a IC17 também não mudou, continua a passar no mesmo sítio. Então, a que se deve esta mudança súbita, perante um facto que era dado como certo, não conseguir contar em simultâneo os carros que passam para norte e os que passam para sul?!

Fiquei contente com o facto? Nem por isso. Mas eu sempre quis ser capaz dessa proeza!? Mas agora já não queria. Ou seja, preferia mil vezes continuar a não ser capaz de contar, porque isso é que era normal. Estava sem palavras para comigo mesma. Até o meu pensamento estava lento, lento e sem saber o que pensar, olhava a via rápida e era um verdadeiro desalento. Silenciosa, calma e tranquila, comparado com o que era. Tão diferente, tão anormalmente diferente. Mas ao menos isso podia fazer com que me sentisse um pouco feliz, por finalmente poder fazer a contagem que eu tanto desejava ser capaz. Mas não. Porque agora dava-se o inverso. Agora eu queria voltar a não ser capaz de contar, como antes, como era, como deveria ser.

E somos mesmo complicados, ou nem tanto. Mas agora e, mais do que nunca, eu não queria mesmo ser capaz de contar os carros. Queria ver a IC 17 bem cheia.

E mais, queria poder sair de casa livremente e ir para onde muito bem me apetecesse. Poder falar às pessoas sem o mais pequeno constrangimento. Olhar para as ruas e ver gente e mais gente a circular. Os jardins e os parques cheios de crianças a brincar e a correr, felizes e contentes. Queria poder continuar a encontrar-me com os meus amigos e as minhas amigas, combinar almoços e jantares e festas e quanta coisa mais.

Queria ver a minha neta ao vivo e a cores, poder abraçá-la e beijá-la muito e matar saudades. Queria ir à praia apanhar sol e caminhar à beira mar. Queria andar nas ruas à procura de motivos para fotografar. Queria conviver e confraternizar como habitualmente fazia…

E mais... bem mais do nunca, eu só queria ser capaz de saber esperar. Esperar que o Covíd 19 se fosse embora de vez, para voltar a olhar para a IC 17 sem conseguir contar os carros que passam...