Ainda
adolescente, com dezassete anos, deixei a vida de estudante que tinha em
Setúbal, onde vivia com a minha avó e os meus primos, para vir para Lisboa
trabalhar e ser independente, porque estava farta da vida que tinha desde que a
minha mãe faleceu. E fiquei a viver em casa dos meus tios, bem no centro da
cidade.
Vim
porque queria a minha independência e a minha liberdade. Por isso comecei a
trabalhar no Ministério das Finanças, onde a minha tia há muito trabalhava. Foi
bom ter vindo. Era um grande passo na minha vida. Porém, independência e
liberdade ainda estavam por vir, porque a minha tia me fazia uma super
vigilância e todos os passos que ela dava eu era obrigada a dar também.
Saíamos
do Ministério às dezassete horas e trinta minutos e antes de irmos para casa havia
sempre alguma coisa para fazer, porque ao chegar tinha a mesa posta e tudo mais
que perfeito e pronto à espera dela e do marido. Por isso podia dar-se ao luxo
de ter sempre algum lado aonde ir. Ou ia à missa ou comprar alguma coisa, ou
simplesmente ver as montras da baixa, enfim, alguma coisa havia de preencher o
tempo antes de ir para casa. E eu tinha que ir a reboque. Não havia
alternativa. Comecei a trabalhar assim que cheguei a Lisboa, em Agosto de 1970,
ainda com dezassete anos, para fazer os dezoito logo em Setembro. E a vida era
isso. Trabalhar e andar atrás da tia, quisesse ou não. Não havia querer da
minha parte. Até que Dezembro chegou e com ele muita coisa mudou.
Como
sempre, os meus tios começaram a pensar no seu fim de ano. Eles viviam para as
viagens e para as festas. As suas festas, pois elas eram só deles e de mais
ninguém. E o fim de ano estava planeado. Então, o que fazer com a minha pessoa?
Para eu não ficar em casa com a empregada, decidiram que iria a uma festa de
uma colega do Ministério. Uma colega com quem eu não tinha a menor intimidade,
que só conhecia de vista, que era ainda bastante jovem, mas que parecia uma
velha autêntica, pela maneira como se vestia e se arranjava. Mas era uma pessoa
de confiança da minha tia e, portanto, eu podia ir passar o fim de ano com ela,
como se precisasse de quem tomasse conta de mim e me vigiasse!?
Era
uma grande chateação aquela decisão. Mas deus escreve direito por linhas
tortas. Sem dúvida. Ela tinha um irmão padre e iam fazer uma festa de paróquia,
o que para a minha tia era muito seguro para mim. Ou ficava em casa ou ia à
festa da paróquia com o padre e a “freira”. Boa! E acho que movida mais pela
curiosidade do que por outra coisa qualquer, eu fui. Mas com toda a verdade eu
achava que ia ser um tédio de todo o tamanho. Enfim, cada um tem o que merece.
A
festa era, nem mais nem menos, num armazém vazio de Alcântara, na Avenida
Marginal. Um casarão vazio, com uma pequena mesa redonda coberta com uma toalha
bem simples, onde havia coisas para comer, que as pessoas voluntariamente e
eventualmente iam trazendo. Havia uma aparelhagem de som e uma ou outra
cadeira. Uns poucos caixotes que não se sabia o que continham e de resto estava
vazio, com todo o espaço livre, frio e pouco acolhedor. Mas como tinha aquelas janelas
enormes em meia lua, características de todos aqueles edifícios na marginal,
pensei que me poderia entreter e esquecer… ficando a observar a vista do rio e
a folia do lado de fora.
Não
fazia ideia de onde me ia meter, em todo o caso, era fim de ano e a minha tia
tinha-me oferecido nesse ano um vestido muito bonito que me tinha comprado
aquando das suas férias no Verão em Paris. Muito simples, em malha, todo
direito e colado ao corpo, embora sem exagero, com manga comprida e muito
curtinho, branco e prateado, em que praticamente só se via o prateado. Depois
calcei uns sapatos de verniz pretos, de salto, também muito simples, o meu
cabelo curto de costume, sem ordem para deixar crescer, e os olhos esfumados
com as pestanas bem pintadas, lá fui eu para a “festa”, longe de imaginar como
seria o meu primeiro fim de ano, com dezoito anos acabadinhos de fazer, ingénua
e sem experiência nenhuma da vida.
Ao
chegar, as poucas pessoas que lá estavam, tudo gente velha para a minha idade,
velha e sem graça, tudo “beatas” e nada mais, de volta do padre, todos olharam
para mim sem uma única palavra, apenas me olhando. Fiz o mesmo. Exatamente o
mesmo, sentindo-me como peixe fora de água. Mas nem por isso me importei. Tinha
sido empurrada para ali e não era por isso que eu ia ser igual aos outros, nem
mostrar o que não era que, aliás, não tinha porque esconder.
O
padre aproximou-se e falou que eu era bem-vinda e que podia ficar à vontade,
como se houvesse algo para não ficar. Pensava para comigo mesma, como seria a
noite ou o tempo que ali passaria, no meio daquela gente que mais pareciam
peças de museu. Era essa a minha sina e tinha que me aguentar.
Quando
consegui livrar-me do padre fui até uma das janelas em meia lua e como o
parapeito tinha uma largura considerável, decidi sentar-me com os joelhos
dobrados e os braços à volta. E aí fiquei olhando ora para dentro ora para
fora, à procura do que seria mais interessante: se o nada que existia ali
dentro ou a noite que aparecia do lado de fora, apesar de tudo, bem mais
atraente. E ali fiquei, com alguns olhares em cima de mim, com certeza achando
estranha a minha posição pouco convencional e em cima do parapeito, depois de
me terem oferecido uma cadeira e eu ter rejeitado. Paciência. Eu era assim.
E a
noite mostrava-se daquele jeito, naquela pasmaceira, com música sem graça e
nenhum entusiamo da parte de ninguém. Até que, por volta das onze horas, as
coisas mudaram como que por obra do espírito santo. Sem mais nem menos, vejo
entrar pela porta dentro um grupo de rapazes e raparigas mais ou menos da minha
idade, que vindos não sei de onde, mudaram completamente o panorama da “festa”.
Eram seis.
A primeira coisa que fizeram foi mudar a música. De seguida começaram todos a
dançar em grupo. Caramba! Agora já apetecia olhar e ver a alegria e a energia
que começava a mudar. E então começaram a chamar por mim, para me juntar ao
grupo. Bem gostaria, mas a timidez não me deixava arrancar dali. Por isso
continuei no meu posto de observação, embora já com um sorriso nos lábios.
Várias vezes insistiram, mas eu sempre abanando a cabeça, sem coragem de me
juntar a eles, que eram dois rapazes e quatro raparigas.
Ao
fim de algum tempo, uma das garotas deixou o grupo e veio ter comigo, insistindo
para que fosse com ela. Continuei a dizer que não, mas logo de seguida um dos
rapazes juntou-se a ela, forçando-me a ir ter com eles, até que vieram todos ao
meu encontro. Foi um choque, porque eu não compreendia porquê tanta
insistência. Eu ainda tinha o registo de que eu não era ninguém que valesse a
pena, que não agradava a ninguém, que ninguém gostava de mim, etc. E aquela
insistência deles começou a baralhar as minhas ideias.
As
duas raparigas começaram a elogiar a minha toilette, o meu vestido, etc. É que
todos eles estavam vestidos na maior simplicidade. Jeans e t-shirts, sem nada
de festivo. Roupa de todos os dias. Por isso, de facto, eu destacava-me e
muito. Mas na altura não tinha essa noção. Os rapazes começaram a dizer para ir
dançar com eles e todos queriam, porque queriam muito que me juntasse ao grupo,
porque estava muito gira, muito tudo e porque estava tão sozinha, o que era uma
pena. E assim foi que me arrastaram com eles. Entrei no ritmo, comecei a
mexer-me, a minha energia começou a fluir e de repente tudo mudou. Agora tinha
valido a pena ir até àquele lugar, ainda que fosse com a “freira”, que eu até
já tinha esquecido. E a música acabava, para logo começar outra que não nos dava
tréguas na dança. A festa estava apenas a começar. Em todo o caso, eu já falava
com todos e todos sorriam felizes de me ter aberto e de estar com eles. Era
entrar noutro mundo. E como era bom! Até parecia que nos conhecíamos já há
muito tempo…
Até
que chegou a meia-noite e o grupo decidiu sair dali e ir para a Ribeira. A
Ribeira! O que seria a Ribeira? Tendo a concordância de todos, decidiram que eu
iria também com eles. Oh, como é que isso ia ser? Lá lhes expliquei que tinha
ido com aquela pessoa e não podia desrespeitar as ordens da minha tia. Mas eles
não queriam saber disso para nada. Eram jovens e queriam apenas o direito de se
divertirem na noite de passagem de ano. E continuaram a convencer-me, dizendo
que tinham uma carrinha com lugar para todos e depois me deixariam em casa.
Não
sem receio, fui falar com a “freira”, que não era freira, dizendo-lhe que eles
me tinham convidado para ir com eles à Ribeira, mas é claro que ela não queria
de jeito nenhum, dizendo que a minha tia tinha confiado na pessoa dela para
tomar contar de mim e, portanto, não podia ir. Foi quando me dei conta de que
não podia deixar que ninguém tomasse conta de mim, porque não precisava. Eu
sabia! Sempre soube. Sempre fui responsável o suficiente para cuidar da minha
irmã e dos meus primos e agora para mim, já com dezoito anos, porque haveria de
precisar de cão de guarda? Era ridículo e era um direito que eu tinha, fazer o
que me apetecia, especialmente numa noite diferente.
Foi
chamar o irmão padre que começou a pregar-me um sermão, mas eu peguei na minha
mala e juntei-me ao grupo que, por sinal, não minto, quando digo que deliraram
por me terem no meio deles. E lá fomos todos na carrinha à Ribeira, segundo
eles, para beber um cacau quente. Eu estava feliz que não cabia em mim, por
aquela oportunidade de ouro que pela primeira vez em tantos anos me fazia
sentir uma pessoa normal e não fazia ideia de que aquele ritual do cacau da
Ribeira fazia parte da tradição da noite alfacinha. Até então a minha
vida só tinha dias. As noites eram apenas para dormir e sonhar, às vezes
coisas boas, outras nem tanto.
E
assim, a noite estava finalmente a surgir. No meio daquela multidão do mercado,
na fila para o cacau quentinho da Ribeira, eu não fazia a menor ideia de onde estava e
muito menos de que tudo aquilo existia. Era um outro mundo que brotava e me
fazia enxergar a vida do outro lado. A minha alma vibrava, tal qual o brilho do
meu vestido prateado, que as garotas e até os rapazes estavam encantados com
tudo comigo. Eles percebiam a minha timidez e a minha escassez de conhecimento
da vida. Tudo aquilo para eles era perfeitamente corriqueiro e banal. Já para
mim era como que um despertar. Não era só a minha alma que vibrava. O meu espírito
planava e o cacau caía em mim como um bálsamo que embriagava os meus sentidos
todos e mais alguns.
Aquilo,
sim, era uma verdadeira festa, porque as pessoas estavam lá e viviam aquilo
duma maneira intensa e eu com eles. Os meus olhos abriam pela primeira vez,
vendo as luzes da noite, as luzes que durante o dia estavam escondidas. No dia
seguinte, eu ia ter que aturar a tia por causa daquela aventura,
mas naquele momento eu faria o que me apetecesse e nada nem ninguém mo
impediria. A minha intuição dizia que podia confiar no grupo que a vida enviara
para me fazer viver e me devolver a alegria há muito perdida e esquecida. Mas
agora ela estava de volta e eu teria toda a minha vida para recordar aquela
noite tão especial, onde nada mais aconteceu do que o absolutamente normal, mas
que para mim, estava completamente fora de alcance.
E
fomos ao cacau da Ribeira. E todos juntos celebrámos o ano novo, um ano
verdadeiramente novo para mim. Não importava onde era nem com quem era. Era o
que era, simplesmente. Eu nem sabia o nome deles, nem donde vinham nem para
onde iam. Vinham da vida e iam para a vida. Uma vida onde havia alegria,
felicidade e onde ninguém fazia nada de errado. Eles desfaziam-se em
amabilidades comigo e eu não entendia porquê. Porque ali, se alguém estava de
fora, era eu, não eles. Eles pertenciam àquele mundo. Eles tinham outra
perspetiva da vida que até então eu nunca tinha tido. Eles abriram as portas para
mim, ajudando-me a dar um passo que não foi pequeno, para
continuar a minha caminhada no presente e que teria uma enorme repercussão no
futuro.
Por
volta das duas horas da manhã, começou a debandada. Entrámos todos na carrinha, com eles dizendo para não me preocupar que me deixariam à porta de casa. E assim
foi. Cheguei a casa sem me importar com as consequências. Mas a partir daí tudo
mudaria. Eu não deixaria que ninguém nunca mais me desse ordens e me proibisse
de fazer o que eu queria. Nunca mais ninguém me diria “vai por aí”. Eu só iria
onde a minha cabeça e o meu coração mandassem. E isso eu descobri naquela
noite. Na noite do meu primeiro fim de ano, onde eu acabava de compreender que
viver era imperioso e era para isso que cá estávamos. E que todos nascemos com
direito à liberdade. Por isso eu estava determinada a fazer valer os meus
direitos como ser humano que era, pura e simplesmente.
Aquela
noite não se limitava a um fim de ano especial ou não. Aquela noite trazia a
força e o empurrão necessários para eu abrir os olhos e ganhar coragem para, de
uma vez por todas, entrar na vida toda inteira, com todo o meu ser e toda a
minha intensidade e trabalhar a todos os níveis para conseguir chegar onde a
vida me pudesse levar, dentro das minhas possibilidades. Daí para diante eu
iria apreciar a vida em todas as suas dimensões. Viajar no tempo real,
aproveitar todas as oportunidades de crescer espiritualmente e aplicar esse
aprendizado na vida em concreto. Eu cairia muitas vezes, mas também teria todas
as capacidades de sempre me conseguir reerguer, para continuar a minha caminhada
por onde quer que ela passasse, mas sempre e somente por minha conta e risco,
onde eu seria a única responsabilizada e mais ninguém.
Na terra, as luzes da cidade brilhavam a todo o vapor. No céu, lá bem no alto, uma
estrela brilhava muito mais, iluminando o meu caminho com todo o seu esplendor.