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quinta-feira, 30 de julho de 2015

O peru de Natal - 18


Era Natal. Além da família, naquele ano havia visitas e a casa estava repleta. Para simplificar a ceia de Natal e termos tempo para acompanhar os amigos recém-chegados, que tinham vindo do Brasil para passar a época Natalícia connosco e mais uma vez terem o gosto e o prazer de passear por Lisboa, incluindo centros comerciais, encomendou-se um peru recheado no El Corte Inglês. 

Tudo correu muito bem, até que chegou a véspera de Natal, com um cem número de coisas a fazer. Andava tudo eufórico e a mãe queria mostrar o seu melhor, tanto no que dizia respeito à pessoa dela, nos seus tremendos oitenta anos cheios de presença, vaidade, disposição, como no que dizia respeito à casa, usando as suas melhores toalhas, louças, enfim, essas coisas da praxe. 

Já tinha dado todas as suas ordens para o que cada um precisava de fazer e chegava a hora de ir ao Corte Inglês buscar o peru. Pediu ao marido, que se desculpou, com qualquer coisa que tinha para fazer e muito sorrateiramente, dispensou-se a ele mesmo dessa tarefa. Pediu a um dos filhos que vive com os pais, mas também não obteve colaboração. O trabalho… enfim. A Clara, nem contactável estava, nem fazia muito sentido. Os outros ainda menos e claro está, sobrou para mim. 

Tudo bem, porque não? É preciso, vamos a isso. E a mãe lá se foi arranjar com toda a pompa e circunstância. Do chapéu ao perfume, das luvas ao nariz empinado, lá fomos nós ao Corte Inglês. Pelo caminho, embora muito curto, dizia que seria bom estacionar o carro lá fora, porque aquilo era coisa rápida. E não se calou um segundo, conforme era costume. Na verdade, quando passei na frente da porta principal em direcção ao parque, havia um lugar vago, que ela logo sugeriu que eu o aproveitasse. Aquilo era rápido, insistia ela. Então, antes mesmo de estacionar, pediu-me para a deixar sair. Eu nem sabia se podia estacionar ali e o facto de estarem lá os outros não me tranquilizava nem um pouco. Mas como era Natal, podia ser que a coisa fosse pacífica. Então, decidiu que podia ir sozinha e que seria melhor eu esperar ali. Se precisasse de alguma coisa chamaria por telemóvel. Tudo bem. 

Esperei, esperei e fartei-me de esperar. Achei que não devia ser tão rápido como ela dizia, claro, mas o facto é que já estava a demorar demasiado. Chamei duas vezes pelo telemóvel, mas não respondia às chamadas, que acabavam caindo na caixa postal. Que fazer? Bom, teria que esperar para não nos desencontrarmos, mas já começava a ficar inquieta. Não estaria pronto o peru? Mas nesse caso podia dizer alguma coisa!? 

Depois de muito tempo e muito farta de estar ali sem saber o que fazer, voltei a ligar. Desta vez a mãe atendeu, mas eu não ouvia a voz dela. Em vez disso, ouvia tudo o que se passava à volta dela. Ouvia um barulho de fundo de muitas vozes ao mesmo tempo e ruídos que não conseguia identificar. Finalmente, ouvi a voz dela, mas não era a falar comigo, era a falar sozinha ou para alguém com quem devia estar chateada. Dizia ela “não consigo entrar… então, quando é que eu entro?”… 

Bom, continuava sem falar com ela, mas dava para perceber que ali havia grande confusão, o que era natural, por ser véspera de Natal. Entretanto, a chamada caiu e aí fiquei novamente à espera. Por aquela porta era um tal sair e entrar, mas ela não aparecia. Passado um pouco, toca o meu telemóvel: era ela. Ansiosa, atendi imediatamente na esperança de ter notícias concretas. Dizia ela que aquilo estava muito difícil e que estava imensa gente para apanhar os elevadores. Que o peru era uma caixa enorme que ela não conseguia segurar, mas que depois um senhor lhe deu um carro e ela lá o foi empurrando até aos elevadores mas, com tanta gente, não conseguia entrar no elevador com o carro. E nesse preciso momento, ouvi a voz de um senhor dizendo “pode passar, faça o favor de passar” e só a ouvi dizer, “parece que agora vou conseguir” e a chamada mais uma vez caiu. 

O raio do peru já estava a dar mais trabalho do que eu imaginava e nesta altura decidi deixar o carro e ir ao encontro dela, por achar que era o mais sensato. E depois de uma trégua rápida dos carros sempre a passar, atravesso a estrada em direcção à porta do Corte Inglês. Entro, e olhando para aquela multidão, lá descubro a mãe empurrando o carrinho, de facto, com uma caixa que parecia ter meia dúzia de perus. Continuava a praguejar, claro: “Dois homens em casa e são as mulheres que têm que fazer tudo”, dizia ela. Não era o caso, que lá em casa era rigorosamente o contrário. Era o marido e o filho que faziam tudo. Sempre me lembro de ver a minha tia/mãe pedir, dar ordens, etc… Mas só por esta vez ela estava certa. E continuava a relatar tudo o que tinha acontecido, que estava cheio e tudo o mais. 

Tirei a caixa do carro e disse-lhe para vir comigo. Agora a caixa estava nas minhas mãos e realmente era um trambolho que não dava jeito nenhum e a prova disso é que tropecei num degrau ou num desnível qualquer e fiquei sem saber se largava o peru ou… enfim, lá consegui não fazer asneira, mas foi por pouco. Lá ia o molho e tudo à vida. Levantei-me, sempre segurando a caixa, ela preocupada se eu me tinha magoado, olhámos uma para a outra e desatámos a rir. Era comum acontecerem essas cenas, de desatarmos a rir nas alturas menos apropriadas. Parecia que todo o mundo estava a olhar para nós pensando que éramos doidas. Eu, caladinha como convinha, mas a mãe, sempre falando bem alto para toda a gente ouvir e fazendo os seus comentários, por vezes nada desejáveis. Mas era assim e todos nós já estávamos mais do que habituados. 

Antes de atravessarmos a estrada e como estava em linha de vista com o carro, pedi-lhe para ir para lá e me abrir a porta do assento traseiro, enquanto eu abria com o comando, para depois poder pegar convenientemente na caixa do peru. Mas de cada vez que apontava o comando, algo se interpunha e eu não conseguia fazer contacto. E perante cada tentativa minha, falhada, ela não fazia senão rir, rir, rir, só que eu já não estava a achar muita graça e só me apetecia largar o peru em qualquer lado. Finalmente o carro abriu e lá foi ela andando para me abrir a porta lateral esquerda. Acontece que a porta estava ligeiramente empenada e o que abria era muito pouco para a caixa poder entrar. Eu bem empurrava, virando daqui, dali, mas não ia. Já cansada, fechei a porta com toda a força, pedi-lhe que abrisse a bagageira e enfiei o peru no porta bagagem. Entrámos no carro e desatámos a rir outra vez. 

Pelo caminho a mãe ia revendo todas as peripécias, acrescentando mais uns pormenores e à custa disso continuávamos a rir. Quase a chegar a casa ligou para os homens dela exigindo que viessem cá abaixo para levarem o peru para casa. 

E chegou a hora da ceia de Natal. Foi tudo para a mesa. Tudo o que havia e o peru também. Lá estava ele, todo bonitinho, tão brilhante que até parecia de plástico. E toda a gente começou a comer e de tudo um pouco se foi provando e comentando o gosto, o paladar, enfim. Mas o peru, continuava lá, bonitinho, inteirinho. No final da noite, todos olhámos para o peru e todos comentámos que não tinha sido encetado. Ninguém tinha sido tentado a experimentar o famigerado peru. Ok, levantou-se a mesa e foi tudo para dentro, para a cozinha. 

Dia de Natal, a mesa posta para o almoço. Muita coisa na mesa e lá vem outra vez o peru, inteirinho. O almoço deu início, foi-se comendo tudo o que estava na mesa, mas o peru continuava lá, sem ser tocado, até que a mãe se lembrou de que melhor seria cortá-lo. E lá veio uma boa alma com uma enorme faca que desmanchou o peru todo. Agora o peru já estava todo esquartejado, era mais fácil para se servirem. E todos continuaram desfrutando do almoço de Natal, mas o peru continuava lá, embora cortado, sem ninguém lhe tocar. Acabou o almoço, levantou-se a mesa e lá foi tudo para dentro novamente. E o peru passeando. Eu já nem podia olhar para ele. 

E veio o dia 25 à Noite e todas as iguarias vieram e o peru também, claro. E já ninguém queria ver o peru. E acabou o Natal, as visitas foram-se embora e tudo voltou ao normal, mas o peru continuava intacto. A mãe, com as mãos juntas e os dedos cruzados, olhava para nós e olhava para peru e não sabia se havia de rir, se havia de chorar. 

O facto, é que o peru, não fez falta nenhuma. Acredito que tenha feito falta em muitos lares e a muitas famílias. Ali, comeram peru sim, mas de castigo, até ao Ano-Novo.