Apressado, LQ tinha entrado no gabinete. Não ia jurar, mas era
quase certo. Na minha estratégica posição, plantada no meio da sala, como
convinha, para poder dar apoio a toda a estrutura da Direcção e, ainda que
estivesse concentrada no que estava a fazer, quase podia garantir que o tinha
visto passar.
Pouco tempo depois passa IC, também apressada, ao encontro dele, pensei.
Mas, conforme entrou, saiu, percorreu todos os gabinetes e todo o open space da Direcção, parecendo uma barata tonta.
O que é que esta quer, pensei para comigo mesma. Anda há procura de quem? Se
não é do LQ, de quem mais pode ser?
Adivinhando o meu pensamento, chega junto de mim e pergunta-me
pelo Luís. Respondo-lho que penso que está no gabinete, mas logo ela se apressa
a negar, dizendo que não. Um não vago, contudo. O facto, é que ela tinha ido
lá, portanto, tinha visto com os seus próprios olhos e um pouco esmorecida, que
não era nada o seu género, deu à sola.
Continuei a fazer o que estava a fazer, mas mesmo sem querer,
aquela cena não me saía da cabeça. Ia jurar que tinha dado pela entrada dele,
mas não me lembrava de o ter visto sair, o que não queria dizer não tivesse
saído sem que eu reparasse. E também não tinha acerteza absoluta dele ter
entrado. Eram tantas entradas e saídas que a minha cabeça não podia ter
certezas absolutas. Alguma coisa não batia certo, mas não percebia o que era.
Para não me levantar, levantei o auscultador, liguei a extensão da Catarina e
olhando para trás, porque ela estava na outra ponta da sala, perguntei-lhe se
sabia do LQ, ao que respondeu “sim Luisinha, o senhor engenheirinho está no
gabinete”. A Catarina falava tudo em “inho”. Respondi que também achava que
sim, mas que a IC tinha ido lá e ele não estava.
Como ela era directamente secretária dele, podia ser que ele
tivesse saído sem eu ter reparado e que lhe tivesse dito alguma coisa. Agora
ela vinha confirmar que ele estava lá. Mistério… Perguntei-lhe se ela tinha a
certeza e ela respondeu “sim, Luisinha”, sorrindo, com o seu sorriso de orelha
a orelha, que fazia parte dela. Perguntei-lhe então se não tinha visto a IC.
Respondeu que “sim, sim”, como um robot. Continuei, dizendo-lhe que ela não o
tinha visto no gabinete. Encolheu os ombros docemente, riu e voou. Quando as
coisas a ultrapassavam ela simplesmente desligava-se, não as confrontando. Cada
um é como é. Mas a Catarina era gira.
Claro que o homem não estava. A IC não era tonta. Era, mas de outra natureza,
por exemplo, gostava de dar nas vistas e dava, mas não vem ao caso. E não sei
porquê, mas levantei-me para ver com os meus próprios olhos que ele realmente
não estava, caso contrário não ia conseguir concentrar-me no que estava a
fazer. A minha cabeça continuaria a pensar naquele enigma. Era muito mais fácil
ser como a Cathy, mas eu não era assim. Por isso, levantei-me e fui ao gabinete
dele.
E lá estava ele. O estranho é que não fiquei tão espantada como deveria ter
ficado e não tanto porque a Catarina dizia que ele estava lá. É que, apesar de
tudo, eu confiava bem mais em mim e a minha intuição dizia-me que ele estava.
Eu sentia a presença dele lá, muito embora a IC não o tivesse visto. A Catarina
tinha razão, mas isso era secundário, porque o mistério permanecia. Como é que
a outra não o tinha visto?! O homem estava ali, sentado à secretária, a
trabalhar ou a fingir que trabalhava; também não vem ao caso, mas que mágica
tinha ele feito para não ter sido visto num espaço tão
reduzido?!...
Ingenuamente, perguntei-lhe se não estava ali quando a IC o tinha
ido procurar. Respondeu que sim. A minha cabeça estava a dar um nó. Parecia que
estava tudo doido. Mas ela esteve aqui e disse que o engenheiro não estava,
disse eu, intrigadíssima. Respondeu, então, que ela não o tinha visto. Eu
estava absolutamente incrédula. Credo, engenheiro, disse-lhe eu, se estava
aqui, como é que a doutora Isabel não o viu?
Aquilo, realmente, era de doidos. Eu abri a porta do armário e escondi-me
atrás, continuou ele. Jesus! Naquela casa aconteciam as coisas mais loucas que
se podiam imaginar, mas um Assessor do CA escondido atrás de uma porta de
armário, como um qualquer garoto, era demais!
Em frente à secretária dele havia um armário/estante encostado à
parede e o espaço entre armário e a secretária era minúsculo, dando apenas para
uma cadeira, quando iam falar com ele. Olho para baixo e vejo o chão cheio de
papéis, papéis, papéis. Agora olhava para o espaço da porta, que ainda estava
aberta, e a parede e imaginava o LQ ali entalado para se esconder da IC. Logo
eles, que passavam a vida enfiados naquele pequeníssimo gabinete, rindo
escandalosamente, completamente histéricos e a pobre da Cathy ainda tinha que
ir ao bar comprar chocolates para eles, tal qual crianças mimadas.
Perguntei-lhe porque é que os papéis estavam todos no chão, ao que respondeu
que era para fingir que os estava a apanhar, caso ela o visse. Eu estava
incrédula de verdade. Cada resposta era pior do que a outra. Aquilo não podia
estar a acontecer. Fez-se silêncio e não resisti a perguntar-lhe porque razão
tinha feito aquilo, porque se tinha escondido dela. Respondeu “porque ela é uma
chata e não me apetecia falar com ela”.
Saí a falar sozinha e fui direitinha à Catarina. Contei-lhe a história e ela
começou a rir, a rir, a rir. Ficámos as duas uns bons minutos a rir que nem
umas parvas, olhando nos olhos uma da outra. E eu dizia “mas isto é uma casa de
gente doida, Catarina” e ela ria ainda mais e continuei “e quando pensamos que
já vimos de tudo ainda não vimos nada” e ela fazia sinal de concordância com a
cabeça para cima e para baixo, rindo com os olhos escuros muito brilhantes, mas
sem grande espanto, de certo modo, aceitando, como se aceitam as brincadeiras
das crianças. Ela não vivia as coisas da mesma maneira que eu. Não lhes dava
intensidade. Continuava calma e tranquila, a uma certa margem de tudo. E assim
que ele a chamava, ela apressava-se a apagar o fogo, dizendo “sim, senhor
engenheirinho, sim senhor engenheirinho”. E se ele tivesse um dia cheio de
reuniões, como muitas vezes acontecia, ela ia ter com ele, no espaço entre uma
e outra reunião, dizendo “tem dez minutinhos para fazer um xixizinho e lavar as
mãozinhas”. Diria isto esfregando as mãos uma na outra, no seu ar
aprumadíssimo, de secretária fidelíssima e exemplar, enquanto ele olhava para
ela sem saber se ela estava a gozar com ele ou não.
Quanto a mim, ria, ria, mas ria de gosto, só que por dentro. E não era pouco o
esforço que fazia para não o dar a perceber. Estava sempre à espera de que um
dia, numa destas caricatas situações, a coisa explodisse.
Dado o recado, LQ acabava sempre seguindo o seu caminho como que não tendo
ouvido nada e a Catarina voltava para o seu lugar, continuando com as mãos
apertadas uma na outra, no seu andar teso, muito direita, com as saias
demasiado curtas e as perninhas de rã, como na brincadeira lhe
chamávamos.
Mas esta briga não duraria muito. Esperta e sobretudo rápida no
gatilho, rapidamente IC lhe daria a volta e ele não tinha como resistir aos
seus encantos e ficaria tão contentinho que dias depois, traria para nós,
trufas da floresta negra, na Alemanha, onde tinha estado há poucas semanas
atrás e daria às suas duas secretárias uma a cada uma, vindas directamente do
bolso das suas calças para as nossas mãos, sem papel, sem nada, todas meladas e
com um aspecto de vomitado. E, claro, não esquecendo que ainda teríamos que
dizer “obrigada” porque, segundo ele, não eram umas trufas quaisquer.
Só que, da mesma maneira que vinham dos bolsos dele para as nossas mãos, assim
que virou costas, do mesmo modo foram das nossas mãos direitinhas para o lixo.
E lá foi ele em direcção ao seu cantinho, tirando trufas dos bolsos e comendo,
uma atrás da outra.
Os Assessores ganhavam muito bem, não era qualquer ninharia. Eram pagos a peso de ouro. Mas faziam-nos rir e isso não há dinheiro que pague. É justo (!)...